Interesse Público

Acumulação lícita de cargos não está limitada a 60 horas semanais

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25 de abril de 2019, 8h05

Spacca
A acumulação de cargos, empregos e funções públicas desde há muito tempo é tratada como possibilidade excepcional no Direito brasileiro, pois a regra é o exercício de um único cargo, emprego ou função, subordinado ao regime de dedicação integral (que não se confunde com dedicação exclusiva).

Essa vedação teve origem no Decreto de Regência, de 8/6/1822, da lavra de José Bonifácio de Andrada, e, em nossa história constitucional, a vedação é repetida sistematicamente desde a primeira Carta Republicana, sendo que as exceções começaram a ser previstas com a Constituição de 1934, que excluiu da proibição “os cargos do magistério e técnico-científicos, que poderiam ser exercidos cumulativamente desde que houvesse compatibilidade horários de serviço” (artigo 172, parágrafo 1º).

Todas as Constituições brasileiras subsequentes dispuseram de idêntica forma, possibilitando a acumulação quando determinados cargos — e apenas estes — pudessem ser exercidos sem prejuízo das respectivas jornadas de trabalho (compatibilidade de horários).

A Constituição de 1988 seguiu a tradição e, após algumas alterações pontuais, dispõe que:

“Art. 37,
XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
a) a de dois cargos de professor; (Incluída pela Emenda Constitucional no 19, de 1998)
b) a de um cargo de professor com outro, técnico ou científico; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas; (Redação dada pela Emenda Constitucional no 34, de 2001)”.

Para além da natureza do cargo ou emprego (técnico, professor ou de profissionais de saúde com profissões regulamentadas), o constituinte exigiu a compatibilidade de horários — obviamente porque a acumulação dos cargos não poderia trazer prejuízos ao exercício de ambos os cargos ou empregos ocupados pelo servidor. Registre-se a inexistência de qualquer definição específica sobre o número de horas trabalhadas semanalmente pelo servidor, em ordem a determinar qual seria o montante máximo a determinar a possibilidade ou não de acumulação dos cargos, empregos ou funções públicos.

Acontece, todavia, que, nos idos de 1998, a Advocacia-Geral da União emitiu o Parecer Normativo GQ-145 (com força vinculativa para a administração federal[1]), no sentido de que “a acumulação de cargos públicos exige compatibilidade de horários para ser considerada legal, sendo o limite máximo do somatório das jornadas de trabalho 60 horas”.

Esse parecer, com o devido respeito, fez uma indevida analogia entre as disposições sobre servidores públicos estatutários (não regidos pela CLT) e as regras da Consolidação das Leis do Trabalho. A CLT prevê descanso mínimo diário de 11 horas para o trabalhador (artigo 66), com uma hora de intervalo para descanso ou alimentação (artigo 71). Assim sendo, restaram 12 horas diárias de trabalho e 12 x 5 dias = 60 horas/semana.

O Tribunal de Contas da União, que antes não reconhecia a limitação constante do parecer, passou a se manifestar favoravelmente a partir do Acórdão 2.133/05 (1ª Câmara, ministro Marcos Bemquerer), revendo, todavia, este mesmo posicionamento em julgados mais recentes, como se pode verificar do Acórdão 1.412/2016 (Plenário), do Acórdão 5.827/2018 (1ª Câmara), do Acórdão 9.098/2018 (2ª Câmara) e do Acórdão 2.296/2019 (2ª Câmara).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, também prevalecia o entendimento contrário ao Parecer GQ 145 da AGU, até que a 1ª Seção, no julgamento do MS 19.336/DF, DJE 14/10/2014, passou a compreender que “a acumulação de cargos constitui exceção, devendo ser interpretada de forma restritiva, de forma a atender ao princípio constitucional da eficiência, na medida em que o profissional da área de saúde precisa estar em boas condições físicas e mentais para bem exercer as suas atribuições, o que certamente depende de adequado descanso no intervalo entre o final de uma jornada de trabalho e o início da outra, o que é impossível em condições de sobrecarga de trabalho. Desse modo, revela-se coerente o limite de 60 (sessenta) horas semanais, fato que certamente não decorre de coincidência, mas da preocupação em se otimizarem os serviços públicos, que dependem de adequado descanso dos servidores públicos. É limitação que atende ao princípio da eficiência sem esvaziar o conteúdo do art. 37, XVI, da Constituição Federal”.

Em trabalho de doutrina, escrito em parceria com o professor Fabrício Motta[2], tivemos a oportunidade de criticar a mudança de posicionamento do STJ, ao asseverar que a mudança jurisprudencial não se afigurava adequada “sendo que o próprio TCU (cuja antiga orientação é citada como alicerce do leading case no STJ) já reviu seu posicionamento sobre o tema. A atual jurisprudência do TCU, acertada, registra a necessidade de apuração da compatibilidade caso a caso. Havendo extrapolação da carga horária de sessenta horas semanais, a instância responsável pela análise da viabilidade da acumulação deve verificar, junto à autoridade hierarquicamente superior ao servidor, a qualidade e o não comprometimento do trabalho, fundamentando sua decisão e anexando ao respectivo processo administrativo a documentação comprobatória”.

Os fundamentos apresentados para a crítica foram:

(a) o STJ partiu de uma presunção, a de que a jornada de trabalho superior a 60 horas semanais afronta o princípio constitucional da eficiência, para concluir pela incompatibilidade de horário. Essa presunção não pode ser uma presunção absoluta, admitindo, portanto, prova em contrário;

(b) não existe norma constitucional ou legal que estabeleça essa presunção de impossibilidade de acumulação de cargos quando a jornada somada seja superior a 60 horas;

(c) a acumulação, embora seja uma exceção, é um direito constitucionalmente assegurado ao servidor, que tem a prerrogativa de comprovar que é capaz de desempenhar ambos os cargos cumulativamente, sem prejuízo do escorreito exercício de suas funções.

Em 27 de março, mediante acórdão divulgado no DJe de 3/4/2019, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça voltou atrás no seu anterior entendimento para, com esteio um julgados da suprema corte, novamente compreender como indevida a orientação do Parecer GQ 145 da AGU, que limita a jornada cumulada dos servidores em 60 horas semanais. O acórdão apresente a seguinte ementa:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS REMUNERADOS. ÁREA DA SAÚDE. LIMITAÇÃO DA CARGA HORÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. REQUISITO ÚNICO. AFERIÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES DO STF. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. A Primeira Seção desta Corte Superior tem reconhecido a impossibilidade de acumulação remunerada de cargos ou empregos públicos privativos de profissionais da área de saúde quando a jornada de trabalho for superior a 60 (sessenta) horas semanais.
2. Contudo, ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, posicionam-se "[…] no sentido de que a acumulação de cargos públicos de profissionais da área de saúde, prevista no art. 37, XVI, da CF/88, não se sujeita ao limite de 60 horas semanais previsto em norma infraconstitucional, pois inexiste tal requisito na Constituição Federal" (RE 1.094.802 AgR, Relator Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 11/5/2018, DJe 24/5/2018).
3. Segundo a orientação da Corte Maior, o único requisito estabelecido para a acumulação é a compatibilidade de horários no exercício das funções, cujo cumprimento deverá ser aferido pela administração pública. Precedentes do STF.
4. Adequação do entendimento da Primeira Seção desta Corte ao posicionamento consolidado no Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
5. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 1767955/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/03/2019, DJe 03/04/2019).

Com efeito, nos julgamentos do RE 1.023.290 AgR-segundo (ministro Celso de Mello, 2ª Turma, julgado em 6/10/2017 – processo eletrônico DJe-251, divulgação em 31/10/2017, publicação em 6/11/2017), do ARE 859.484 AgR (ministro Dias Toffoli, 2ª Turma, julgado em 12/5/2015 – processo eletrônico DJe-118, divulgação em 18/6/2015, publicação em 19/6/2015), no MS 31.256 (ministro Marco Aurélio, 1ª Turma, julgado em 24/3/2015 – processo eletrônico DJe-073, divulgação em 17/4/2015, publicação em 20/4/2015), no RE 679.027 AgR (ministra Rosa Weber, 1ª Turma, julgado em 9/9/2014 – acórdão eletrônico DJe-185, divulgação em 23/9/2014, publicação em 24/9/2014) e no MS 24.540 (ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 19/5/2004 — DJ 18/6/2004, PP-00045 ement. vol. 02156-01, PP-00175 RTJ vol 00191-02 PP-00540), os eminentes ministros do STF afirmaram a convicção de que a acumulação lícita de cargos acumuláveis não se encontra limitada ao patamar de 60 horas semanais, restabelecendo, desta feita, as balizas constitucionais sobre o tema.

Magister Dixit!


[1] Parecer aprovado pelo presidente da República e publicado na íntegra no Diário Oficial de 1º de abril de 1998, p.10. De acordo com o artigo 40 da LC 73/93, “os pareceres do Advogado-Geral da União são por este submetidos à aprovação do Presidente da República. § 1º O parecer aprovado e publicado juntamente com o despacho presidencial vincula a Administração Federal, cujos órgãos e entidades ficam obrigados a lhe dar fiel cumprimento”.
[2] Capítulo constante da seguinte obra coletiva: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabricio; FERRAZ, Luciano. Servidores Públicos na Constituição Federal. 3. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015. v. 1. 238p.

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