Tribuna da Defensoria

A lei do usuário do serviço público e sua relação com a Defensoria Pública

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23 de abril de 2019, 13h06

Tema pouco explorado na doutrina institucional guarda relação com a Lei n. 13.460/2017 e a regulamentação das normas básicas para participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente pela administração pública.

Em nossa vivência no órgão de correição da Defensoria Pública temos nos deparado com uma interpretação proposta pelos colegas Lincoln Cesar de Queiroz Lamellas e Eliane Maria Barreiros Aina, ambos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro, no sentido de aplicação da Lei dos Usuários do Serviço Público no cotidiano da instituição.

Apesar de a lei tratar das relações do usuário com a administração pública, o que significaria afastar o seu âmbito de incidência do regime jurídico da Defensoria Pública, em razão da autonomia administrativa concedida à instituição no art. 134, §§2º e 3º da CRFB, é certo que a lei tem incidência no plano da assistência jurídica estatal.

Embora essa assertiva se confirme pela leitura do art. 2º, III da Lei n. 13.460/2017, quando considera, para fins de administração pública, a Defensoria Pública, é importante considerar que o objetivo do legislador não foi o de atrair a Defensoria Pública ao conceito de administração pública, mas tão somente utilizar-se de uma técnica legislativa que evitasse a repetição de conceitos no corpo da lei.

Portanto, a Defensoria Pública é considerada como administração pública apenas no tocante à disciplina da lei do usuário de serviços públicos, mas não integra, na conformação do sistema jurídico, a administração pública, assim compreendida no Poder Executivo, inclusive com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

A Lei n. 13.460/2017 procura ser muito clara em sua proposta quando afirma que o usuário de um serviço público é tanto uma pessoa física, bem como as jurídicas que se beneficiam ou utilizam, efetiva ou potencialmente de um serviço público (art. 2º, I). Há aqui um total alinhamento com o art. 4º, V da LC n. 80/94, quando institui a função institucional de prestação de assistência jurídica às pessoas naturais e jurídicas.

Um dos primeiros direitos do usuário de serviços públicos é o de se manifestar por meio de reclamações, denúncias, sugestões, elogios e demais pronunciamentos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos e a conduta de agentes públicos na prestação e fiscalização de tais serviços.

A referida norma deve ser interpretada em conjunto com o parágrafo único do art. 105-C da LC n. 80/94, quando confere à Ouvidoria Geral o encargo de receber representações e encaminhá-las à Corregedoria e art. 105, V que estabelece à Corregedoria Geral o dever de receber e processar as representações.

Essa interpretação deve ocorrer no sentido da facilitação dos meios de recepção das proposições dos usuários, cabendo à Defensoria Pública implementar todos os meios aptos à absorção dessas manifestações, levando em conta todas as suas condições (pessoas analfabetas, com deficiência física e estrangeiros, dentre outros.

Quando presta o serviço de assistência jurídica, o corpo da Defensoria Pública (membros, servidores e estagiários, dentre outros) deve observar a urbanidade, o respeito e a cortesia no atendimento aos usuários, na forma do art. 5º, I da Lei n. 13.460/2017.

A simplicidade de parcela do público alvo da instituição exige também que a administração superior invista em capacitação do corpo de integrantes da Defensoria Pública, de modo que o atendimento seja o mais humanizado possível.

Pode parecer algo óbvio, mas o bom serviço público é aquele prestado na equivalência da iniciativa privada. Ainda que a atividade pública seja uma atividade de massa e, no caso da Defensoria Pública essa assertiva se confirma pelo seu atendimento diário, a instituição precisa se organizar para ter mão de obra que possa prestar atendimento com qualidade e eficiência, a exemplo da criação de órgãos com observância ao critério do art. 107 da LC n. 80/94 (regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional) e implantação de órgãos de recepção e prestação de informações ao públicos nos mais variados meios de comunicação.

Nessa linha de pensamento, o art. 7º da Lei n. 13.460/2017 determina a divulgação de uma Carta de Serviços, um documento que assegure o acesso à informação concernente à prestação do serviço, requisitos para atendimento, o protocolo adotado no atendimento, a previsão de tempo – algo que na área jurídica não é de fácil implantação -, além dos canais destinados à recepção de manifestações dos usuários.

A natureza do vínculo que se estabelece entre a Defensoria Pública e o assistido lhe garante que o Defensor Público e demais agentes encarem sempre o usuário em uma perspectiva de boa-fé, mesmo quando se verifique, por exemplo, que uma pretensão é manifestamente incabível, tal como disposto no art. 5º, II da novel lei. Não se trata de acreditar piamente no que o assistido narra, mas atendê-lo partindo da premissa de que suas assertivas são verdadeiras, ainda que, ao final, não seja capaz de demonstrá-las.

O art. 5º, incisos III (atendimento por ordem de chegada, ressalvados casos de urgência e aqueles em que houver possibilidade de agendamento, asseguradas as prioridades legais às pessoas com deficiência, aos idosos, às gestantes, às lactantes e às pessoas acompanhadas por crianças de colo), V (igualdade no tratamento aos usuários, vedado qualquer tipo de discriminação), VI (cumprimento de prazos e normas procedimentais), VII (definição, publicidade e observância de horários e normas compatíveis com o bom atendimento ao usuário) e IX (autenticação de documentos pelo próprio agente público, à vista dos originais apresentados pelo usuário, vedada a exigência de reconhecimento de firma, salvo em caso de dúvida de autenticidade) contêm diretrizes que já são asseguradas pelas normas que regem a Defensoria Pública, tal como previstos nos arts. 4º, XI; 4º-A, I; art. 108, III; e art. 129, II, todos da LC n. 80/94).

Embora a lei traga regras já existentes no plano institucional, mencione-se que certas diretrizes em prol dos usuários são verdadeiros alertas normativos à organização da Defensoria Pública, a exemplo do art. 5º, incisos VIII e X que asseguram a adoção de medidas visando a proteção à saúde e a segurança dos usuários e a manutenção de instalações salubres, seguras, sinalizadas, acessíveis e adequadas ao serviço e ao atendimento. O conforto do atendimento também exige que a instituição ofereça um espaço condigno para atendimento.

Se, por um lado, a Defensoria Pública deve prestar seus serviços em ambiente adequado, cabe a ela, ao mesmo tempo e no exercício de suas funções, assegurar que outras repartições também apresentem condições mínimas. A realidade de alguns espaços públicos ainda é lastimável, a exemplo da área de saúde e segurança pública.

Como forma de desburocratizar o serviço público e facilitar o seu acesso, o art. 5º, incisos IV (adequação entre meios e fins, vedada a imposição de exigências, obrigações, restrições e sanções não previstas na legislação), XI (eliminação de formalidades e de exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco envolvido) e XV (vedação da exigência de nova prova sobre fato já comprovado em documentação válida apresentada) destacam diretrizes que simplificam o atendimento ao usuário do serviço, evitando-se que motivos inidôneos sejam utilizados como obstáculo.

O inciso XII é um verdadeiro alerta às Corregedorias das Defensorias Públicas, de modo que haja a observância de códigos de ética ou de conduta aplicáveis à carreira. No plano nacional e nos planos estaduais não é comum encontrarmos uma disciplina normativa da ética no âmbito da Defensoria Pública, mas tão somente a existência de um Código de Ética elaborado pelo Colégio Nacional de Corregedores Gerais, entidade que não integra a estrutura orgânica da Defensoria Pública[1], cujo conteúdo vem sendo paulatinamente incorporado.

No plano de compreensão do serviço público, os incisos XIII e XIV representam verdadeira simplificação na compreensão dos serviços públicos quando o legislador determina o emprego de soluções tecnológicas para a simplificação dos processos e procedimentos de atendimento ao usuário e de compartilhamento de informações além da obrigação de emprego de linguagem simples e compreensível, evitando o uso de siglas, jargões e estrangeirismos.

Há um rol de direitos básicos assegurados no art. 6º, muitos dos quais também são encontrados nas normas que regem as Defensorias Públicas, principalmente no plano dos Estados[2].

A Lei do Usuário de Serviços Público regula uma relação jurídica de caráter bilateral, o que significa dizer que não só a Defensoria Pública possui deveres, mas também aqueles que dela tomam o serviço. E nessa linha o art. 8º na norma disciplina os seguintes deveres: a – utilizar adequadamente os serviços, procedendo com urbanidade e boa-fé; b – prestar as informações pertinentes ao serviço prestado quando solicitadas; c – colaborar para a adequada prestação do serviço; d – preservar as condições dos bens públicos por meio dos quais lhe são prestados os serviços.

Com o acesso à justiça não pode representar o abuso de direitos é possível que a violação de um dever possa, em caso excepcional, representar a cessação da atividade institucional. Ainda que a Defensoria Pública tenha a obrigação constitucional de prestar assistência jurídica integral, o seu uso nocivo pode ser interrompido se verificado que o usuário compreende os seus deveres e ainda assim, voluntariamente, se recusa a observá-los. Tome-se como exemplo o assistido que se indispõe com um grande número de membros da Defensoria Pública, tornando inviável a aplicação das regras de substituição.

Por fim, pensamos que o Conselho Superior da Defensoria Pública deve regulamentar a figura do Conselho de Usuários prevista no art. 18 da Lei n. 13.460/2017, um organismo composto por usuários que tem o encargo de acompanhar a prestação e avaliação dos serviços públicos.

Esse órgão, de natureza preponderantemente consultiva deve acompanhar a prestação dos serviços, participar da consequente avaliação e propor melhorias na sua prestação. Além disso, o conselho exerce papel propositivo, oferecendo contribuições na definição de diretrizes para atendimento adequado, inclusive avaliando e acompanhando a atuação do ouvidor.

Pensamos que o Conselho de Usuários deve ser constituído ao lado da Ouvidoria Geral e com ela realizando atividade concertada, considerando a afinidade de funções de ambos os órgãos.

Entretanto, o Conselho de Usuários não se constitui como um órgão da Defensoria Pública, já que a edição de normas relativas à organização da instituição depende da observância do critério previsto no art. 134, §1º da CRFB, qual seja, a edição de Lei Complementar regulando a matéria.

O Conselho de Usuários, então, é uma simples forma de organização da sociedade civil, em paralelo com a Ouvidoria, sendo obrigação da Defensoria Pública o seu fomento em virtude do seu papel de expressão e instrumento da democracia.

Por essa razão é que o processo de constituição da composição do conselho deve ser lido em conjunto com as regras da Defensoria Pública. Enquanto o art. 19 da Lei dos Usuários tem plena aplicabilidade quando determina a observância de critérios de representatividade e pluralidade das partes interessadas, com vistas ao equilíbrio em sua representação e que a escolha seja feita em processo aberto ao público e diferenciado por tipo de usuário a ser representado, pensamos que o art. 20 não possuam a mesma incidência.

O referido dispositivo determina que o conselho possa ser consultado quanto à indicação do Ouvidor. O art. 105-B, §1º da LC n. 80/94 determina que o Conselho Superior regulamente o critério de formação da lista tríplice para o cargo de Ouvidor Geral, ficando a cargo dele próprio também o processo de escolha. Portanto, apenas com a regulamentação do Conselho é que o art. 20 possa ser compatibilizado com o regime jurídico da Defensoria Pública. Talvez essa seja a principal razão do art. 22 determinar que cada Poder e esfera de governo disponha sobre a organização e funcionamento do Conselho de Usuários.

Além da regulamentação do Conselho de Usuários é importante que a Defensoria Pública se organize para criar o sistema de avaliação dos serviços, na forma preconizada pelo art. 23 da Lei n. 13.460/2017, levando em consideração os critérios de satisfação, qualidade, cumprimento de prazos e compromissos, número de manifestações e medidas adotadas para melhoria, compatibilizando com o papel da Ouvidoria Geral (art. 105-C, II, III e IX da LC n. 80/94).


[1]http://www.defensoria.ms.gov.br/images/images-defensoria/Rennan/pdf/Código_de_Ética_DPGE.pdf

[2] Art. 6o São direitos básicos do usuário:
I – participação no acompanhamento da prestação e na avaliação dos serviços;
II – obtenção e utilização dos serviços com liberdade de escolha entre os meios oferecidos e sem discriminação;
II – acesso e obtenção de informações relativas à sua pessoa constantes de registros ou bancos de dados, observado o disposto no inciso X do caput do art. 5º da Constituição Federal e na Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011;
IV – proteção de suas informações pessoais, nos termos da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011;
V – atuação integrada e sistêmica na expedição de atestados, certidões e documentos comprobatórios de regularidade; e
VI – obtenção de informações precisas e de fácil acesso nos locais de prestação do serviço, assim como sua disponibilização na internet, especialmente sobre:
a) horário de funcionamento das unidades administrativas;
b) serviços prestados pelo órgão ou entidade, sua localização exata e a indicação do setor responsável pelo atendimento ao público;
c) acesso ao agente público ou ao órgão encarregado de receber manifestações;
d) situação da tramitação dos processos administrativos em que figure como interessado; e
e) valor das taxas e tarifas cobradas pela prestação dos serviços, contendo informações para a compreensão exata da extensão do serviço prestado.

Autores

  • é defensor público do estado do Rio de Janeiro, mestre e doutor em Direito Processual pela Uerj. Professor da Universidade Cândido Mendes, da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro – FESUDEPERJ e de cursos preparatórios para a carreira da Defensoria Pública. Membro da Banca do I Concurso para Ingresso na Carreira de Defensor Público do Estado do Paraná.

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