Opinião

STJ julga se cabe ação rescisória baseada em precedente posterior

Autor

23 de abril de 2019, 13h54

A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça está revisitando tema de enorme importância para a segurança e estabilidade de nosso sistema jurídico: a possibilidade de processamento de ação rescisória para a modificação da coisa julgada material em razão da superveniência de precedente repetitivo do tribunal, inexistente na época da prolação do julgado rescindendo.

Na ação originária discutiu-se a exigibilidade da contribuição ao Incra de 0,2% sobre a folha de salários. Em 2005, o acórdão rescindendo da 1ª Turma do STJ negou provimento ao recurso especial do Incra para, em homenagem aos “precedentes de ambas as Turmas de Direito Público”[1], assentar a revogação da contribuição ao Incra, prevista pela Lei Complementar 11/71, pela Lei 7.787/89[2].

Depois do trânsito em julgado do acórdão rescindendo, em 2008, a 1ª Seção do STJ superou os precedentes anteriores e definiu, em recurso repetitivo, que a exigência não estava revogada (Tema 83)[3]. Com base nisso, o Incra propôs ação rescisória em que pretende rescindir o acórdão de 2005 para aplicar o entendimento posterior.

Para superar o óbice da Súmula 343 do STF (“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”), o Incra contextualizou o tema em sua inicial a partir de normas e princípios constitucionais, o que na sua visão possibilitaria contornar o entendimento da Súmula para fins de adequação do julgado rescindendo ao precedente do STJ posterior a ele.

Essa tese está sendo encampada pelo voto do ministro Herman Benjamin, relator da Ação Rescisória 4.443. De acordo com o ministro, haveria uma questão constitucional subjacente[4], o que possibilitaria a superação do óbice da Súmula 343/STF, que seria aplicável em matéria constitucional apenas quando houvesse oscilação de jurisprudência do próprio STF. Citou, nesse sentido, voto proferido pelo saudoso ministro Teori Zavascki, em 2015, no Agr AR 2.370.

Mesmo que por amor ao debate se admitisse haver algum ângulo constitucional no acórdão rescindendo (o que comprovadamente não existe[5]), a alegação de questão constitucional não pode se transformar numa panaceia apta a reabrir a esmo casos transitados em julgado em prejuízo da segurança jurídica.

De fato, a autoridade da coisa julgada material (art. 502 do CPC) é garantida constitucionalmente em função do vetor axiológico da segurança jurídica e tem por desiderato estabilizar as relações jurídicas e sociais (art. 5º, caput, XXXVI, da CF) do Estado Democrático de Direito[6]. Segundo o STF, a coisa julgada constitui cláusula pétrea constitucional”[7], razão por que é intangível e imutável, “do que decorre a excepcionalidade da rescisão”[8]. Sua desconstituição realiza-se por meio de ação rescisória, cujo cabimento depende da existência de algum dos graves vícios constantes da legislação, verificável no momento da prolação da decisão rescindenda, e não depois!

Em atenção ao postulado da segurança jurídica é que foi editada a Súmula 343/STF, segundo a qual não cabe ação rescisória quando, à época da prolação do julgado rescindendo, os tribunais controvertiam a respeito da melhor solução jurídica para determinada questão. Isto é, quando havia mais de uma interpretação razoável acerca do tema em debate. Nessa ordem de ideias, com maior razão a Súmula 343/STF seria aplicável quando, à época da prolação do julgado rescindendo, o tribunal prolator da decisão possuía entendimento pacífico no mesmo sentido daquele adotado pelo acórdão rescindendo.

Essa é exatamente a hipótese em julgamento. Para além do debate jurídico que envolve a intangibilidade da coisa julgada em função da segurança jurídica, há paradoxos de ordem lógico-formal que impedem o processamento de ação rescisória. Por exemplo:

Como seria possível dizer que um acórdão transitado em julgado divergiu de um precedente repetitivo que nem sequer existia quando de sua prolação? (Não é possível, a menos que os julgadores originários tivessem o dom da vidência!)

Como seria possível dizer que um acórdão transitado em julgado violou a literalidade de lei quando ele apenas seguiu a interpretação pacífica que existia no seio do próprio tribunal? (Não é possível, a menos que se admitisse que, à época da prolação da decisão, os julgadores reiteradamente violassem a lei!)

Como seria possível invalidar a coisa julgada material mediante a aplicação “para trás” de um precedente se em nosso sistema jurídico nem a lei pode operar retroativamente[9]? (Não é possível, a menos que precedentes judiciais possuíssem status supralegal e supraconstitucional!)

Por todas essas razões, a Corte Especial e demais seções do STJ assentaram a impossibilidade de “manejo de ação rescisória para adequação do julgado”, ainda que o precedente posterior tivesse sido editado “por ocasião de julgamento de recurso repetitivo[10]. Julgou-se que “tampouco prospera a alegação de que, em se tratando de tema de ordem constitucional, deveria ser relativizada a incidência da Súmula nº 343/STF. Isso porque os precedentes mais recentes do Supremo Tribunal Federal firmaram entendimento no sentido da aplicabilidade da Súmula nº 343/STF inclusive quando a controvérsia se basear na aplicação de norma constitucional, não servindo a ação rescisória como instrumento voltado à uniformização de jurisprudência.” (AgInt no RE nos EDcl no AgInt no AREsp 1100126/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, CORTE ESPECIAL, DJe 03/12/2018).

Essa posição da Corte Especial do STJ – que já havia sido adotada em ação rescisória idêntica a que está em debate na 1ª Seção[11] – deve ser mantida. Primeiro, porque não cabe à 1ª Seção do STJ modificar a jurisprudência da Corte Especial do mesmo Tribunal. Segundo, porque a posição da Corte Especial é a que melhor preserva os postulados constitucionais da coisa julgada e segurança jurídica, em consonância com o entendimento mais recente do STF sobre a questão.

Realmente, não parece correto sustentar, de forma singela, que a Súmula 343/STF é inaplicável quando haja alguma questão constitucional subjacente.

Sob a sistemática das repercussões gerais, o STF estabeleceu que a Súmula 343/STF permanece aplicável ainda quando em jogo matéria constitucional.


 

De acordo com o STF, ‘o Verbete nº 343 da Súmula do Supremo deve de ser observado em situação jurídica na qual, inexistente controle concentrado de constitucionalidade, haja entendimentos diversos sobre o alcance da norma (…)’ (trecho da ementa do RE 590.809, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, Repercussão Geral, DJe 24/11/2014).

 

Isso não significa que a Súmula 343/STF sempre impedirá o ajuizamento de rescisória em questões constitucionais. Há exceções estabelecidas pelo próprio julgado do STF, tais como as situações em que tenha havido, em controle concentrado de constitucionalidade, a declaração de inconstitucionalidade ou a constitucionalidade da norma que serviu de substrato para o acórdão rescindendo.

Veja-se, a propósito, o voto condutor do precedente da lavra do Exmo. Ministro Marco Aurélio:

Vê-se não se tratar de referência a ato por meio do qual o Supremo assentou, com eficácia maior, a inconstitucionalidade de norma. Estivesse envolvida declaração da espécie, poderia até cogitar, com muitas reservas, do afastamento do verbete em favor do manejo da rescisória apenas para evitar a vinda à balha indiscriminada de decisão judicial, transitada em julgado, fundada em norma proclamada inconstitucional, nula de pleno direito. Mas não é este o caso ora examinado. (p. 3 do voto do Relator, Ministro Marco Aurelio).

Quando houver controle de constitucionalidade da norma que embasou o acórdão rescindendo justifica-se o afastamento da Súmula 343/STF em razão da força normativa[12] da Constituição. Porém, fora dessa hipótese a Súmula 343/STF permanece absolutamente hígida, ainda que eventual ângulo do tema tenha fundamentação possível em norma ou princípio constitucional. E isso porque a integridade[13] e a força normativa da Constituição implicam a necessária consideração de todos os seus princípios, dentre os quais o da segurança jurídica.

Nesse sentido são os recentes julgados do próprio Supremo Tribunal Federal, segundo os quais “torna-se aplicável a Súmula 343 do STF aos casos em que se cogite interpretação controvertida de questão constitucional nos tribunais” (Pleno – AR 2457 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Pleno, DJe: 24/08/2017), sendo “irrelevante a natureza da discussão posta no feito rescindendo (se constitucional ou infraconstitucional) para a observância do enunciado da Súmula STF nº 343” (Pleno – AR 2572 AgR – Rel. Min. Dias Toffoli – DJe: 21/03/2017)[14].

Esses julgados foram proferidos pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal posteriormente ao voto apresentado pelo saudoso Ministro Teori Zavascki na AR 2370 AgR, o que denota a superação daquela posição mais restrita de S. Exa. quanto à aplicabilidade da Súmula 343/STF em questão constitucional.

Nesse contexto, para se cogitar do afastamento da Súmula 343/STF nas ações regidas sob a égide do CPC/73[15], é preciso que o acórdão rescindendo esteja ancorado em norma jurídica[16] que tenha sido declarada constitucional ou inconstitucional pelo STF em sede de controle de constitucionalidade em momento anterior a sua prolação[17]. A mera alegação de ofensa à Constituição não possibilita o afastamento da Súmula 343/STF. Até porque, em razão da natureza analítica da Constituição, esse tipo de discurso poderia ser realizado em absolutamente qualquer questão jurídica em debate no País, o que esvaziaria a Súmula 343/STF e transformaria a rescisória em mero sucedâneo recursal.

Por fim, é importante observar que o acórdão rescindendo atacado pela rescisória em julgamento na 1ª Seção não menciona uma única norma constitucional e o STF nunca declarou a inconstitucionalidade ou constitucionalidade das leis que foram apreciadas na ocasião (Lei Complementar 11/71 e Lei 7.787/89). Mais que isso, o STF possui entendimento de que o tema apreciado pelo acórdão rescindendo possui índole infraconstitucional[18], o que já existia na época da prolação do julgado! Portanto, o que se tem no caso em julgamento na 1ª Seção do STJ é apenas uma inicial de ação rescisória que articula o tema a partir de normas e princípios constitucionais para tentar burlar a incidência da Súmula 343/STF.

Em suma, o que está em jogo nesse julgamento é a possibilidade de os cidadãos confiarem na estabilidade das sentenças transitadas em julgado mesmo quando haja alteração posterior da jurisprudência. Trata-se de questão de segurança jurídica inerente a qualquer Estado que se proponha a ser Democrático e de Direito e que independe da qualificação da matéria como legal ou constitucional.


[1] “em relação à extinção da contribuição destinada ao INCRA, há precedentes de ambas as Turmas de Direito Público desta Corte no sentido de que ocorreu com a edição da Lei 7.787/89” (acórdão rescindendo – 1ª Turma, REsp n. 465.126/RS, Rel. Min. Denise Arruda, DJ 24.10.2005).

[2] Esse acórdão transitou em julgado em abril de 2008.

[3] 1ª Seção – REsp 977.058/RS – Rel. Min. Luiz Fux – DJe: 10/11/2008.

[4] Isso porque (i) o repetitivo superveniente do STJ teria utilizado normas e princípios constitucionais para contextualizar a contribuição ao INCRA como uma contribuição de intervenção no domínio econômico e não como uma contribuição previdenciária e (ii) porque haveria uma repercussão geral do STF para apreciar o tema.

[5] O acórdão rescindendo apoia-se exclusivamente em matéria infraconstitucional e jamais houve pronunciamento do STF em sentido contrário. Há uma repercussão geral do STF relacionada à contribuição ao INCRA que não discute o o tema da revogação da contribuição pela Lei 7.787/89, apenas “a recepção ou não da contribuição destinada ao INCRA pela Constituição Federal de 1988 e a roupagem da referida contribuição após a edição da EC nº 33/01, abarcando, ainda, a questão da referibilidade” (RE 630.898 RG/RS – J: 03/11/2011). O repetitivo superveniente do STJ citou alguns dispositivos constitucionais apenas para uma “colocação topográfica da matéria constitucional” que serviu para contextualizar o histórico da contribuição e sua caracterização como CIDE, “até o alcance da norma infraconstitucional”.


 

[6] “A segurança jurídica, trazida pela coisa julgada material, é manifestação do estado democrático de direito (CF 1º, caput)” (Nery Junior, Nelson, Princípios do processo na Constituição Federal, 12 ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 66)

 

[7] AR 2341 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski – Dje: 30/05/2018.

[8] Idem.

[9] Com exceção das leis mais benéficas ao jurisdicionados e das normas processuais, as leis – em regra – não devem retroagir (arts. 5º, XXXIX e XL, 150, III, ‘a’ da CF e 6º da LINDB).

[10] AR 5028/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, 1ª Seção, DJ 11/11/2017.

[11] AgRg no RE nos EDcl no AgRg na AR 4.668/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, CORTE ESPECIAL, DJe 24/02/2016.

[12] HESSE, 1991: 26-27.

[13] DWORKIN, 2007: 271-272.

[14] Vide: AgRg na AR n. 1.959/DF, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 25.03.2015; AgRg na AR n. 2.236/SC, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 08.06.2015.

[15] Sob a égide do CPC/15 é possível o manejo de ação rescisória contada da prolação da decisão do STF, conforme preconiza o art. 535, § 8º do atual código. De toda forma, entendemos que esse dispositivo é inconstitucional: SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa, A coisa julgada em matéria tributária à luz do CPC/2015: Análises acercada Arguição de Inexequibilidade do título judicial, da nova hipótese de rescisão de julgado a partir da decisão proferida pelo STF e das relações jurídicas continuativas. Revista de Estudos Tributários, v. 19, p. 237-261, 2016.

[16] “É descabida a ação rescisória com a finalidade de discutir a aplicação de dispositivo legal que não foi oportunamente examinado pelo acórdão rescindendo, em virtude da preclusão.” (AgInt na AR 6.257/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe 22/11/2018)[16]. Isso se aplica independentemente de a norma tida por violada ser infraconstitucional ou constitucional (AR 4.992/SC, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, 1ª SEÇÃO, DJe 31/03/2017; STF – Pleno – AR 1.752 AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJ: 20/05/2005).

[17] “Contudo, a circunstância de uma questão constitucional chegar ao Supremo Tribunal Federal após o trânsito em julgado de decisões sobre a mesma questão certamente não é motivo para a admissão da retroatividade do pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a coisa julgada” (MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel, Novo Curso de Processo Civil, 3ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 698.)

[18] RE 491349 AgR-ED-EDv-ED-AgR, Rel. Min. Dias Tóffoli – DJe:19/10/2018.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!