Opinião

O entendimento do STJ sobre a prescrição trienal da responsabilidade contratual

Autores

  • Anderson Schreiber

    é professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da Fundação Getúlio Vargas procurador do estado do Rio de Janeiro e advogado.

  • Rafael Mansur

    é mestrando em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) pesquisador da Clínica de Responsabilidade Civil da Uerj e sócio do Schreiber Advogados.

21 de abril de 2019, 6h42

Iniciou-se, em 20 de março, o julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial 1.281.594, no qual o STJ pretende encerrar controvérsia que, desde a edição do Código Civil de 2002, tem lançado sombra de insegurança sobre as relações contratuais: qual deve ser o prazo prescricional aplicável às pretensões reparatórias fundadas na responsabilidade civil contratual?

Embora o artigo 206, parágrafo 3º, V, do Código Civil determine que “prescreve em três anos a pretensão de reparação civil”, sem fazer distinção entre responsabilidade extracontratual e contratual, a 2ª Seção do STJ havia, no ano passado, fixado o entendimento de que o prazo aplicável à responsabilidade contratual deveria ser o de 10 anos[1], constante do artigo 205 do Código Civil[2]. Iniciado o julgamento pela Corte Especial, o relator, ministro Benedito Gonçalves, sustentou a incidência do prazo trienal. O voto foi acompanhado pelo ministro Raul Araújo. Em seguida, o julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Felix Fischer. O intervalo proporciona um período de reflexão, que deve ser aproveitado pela doutrina para uma discussão mais detida sobre o tema.

A interpretação literal do artigo 206, parágrafo 3º, V, advoga pela sua incidência, tendo em vista que o dispositivo, como dito, não faz distinção entre a reparação civil contratual e a aquiliana, indicando que o legislador pretendeu reservar tratamento uniforme à prescrição nesse particular. A 2ª Seção do STJ havia rejeitado, contudo, a interpretação literal, ao argumento de que todas as “ocorrências do uso da expressão ‘reparação civil’ estão contidas no Título IX, do Livro I, da Parte Especial do CC/02[3], que versa sobre responsabilidade civil extracontratual. Nas hipóteses em que o CC⁄02 se refere à inadimplemento contratual, tal como o Título IV do Livro I da Parte Especial (arts. 389 a 405), não há menção à expressão ‘reparação civil’”.

A ideia de que o Código Civil teria segregado o tratamento da responsabilidade contratual e extracontratual em títulos distintos não resiste a uma investigação mais cuidadosa. Encontram-se no título “Do Inadimplemento das Obrigações” preceitos aplicáveis a ambas as modalidades de responsabilidade, como o artigo 402, que prevê a ressarcibilidade dos lucros cessantes (“o que razoavelmente deixou de lucrar”), bem como o artigo 403, que consagra a teoria da causalidade direta e imediata[4].

Por outro lado, identificam-se sob o título “Da Responsabilidade Civil” regras indiscutivelmente aplicáveis à responsabilidade contratual, como o artigo 947, que alude ao equivalente pecuniário, ou o artigo 927, parágrafo único, que a doutrina tem reconhecido incidir também sobre a responsabilidade contratual[5].

Particularmente elucidativo da abrangência conferida pelo Código Civil à noção de “reparação” é o artigo 943: “O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança”. Embora localizado no título dedicado à “Responsabilidade Civil”, o referido artigo emprega a expressão “reparação” para se referir à transmissibilidade causa mortis do dever de reparar tanto na responsabilidade extracontratual quanto na responsabilidade contratual. Tudo a confirmar que o termo “reparação” é empregado pelo legislador como sinônimo perfeito de “responsabilidade”, seja de qual espécie for.

A parcela da doutrina que tem defendido a aplicação do prazo de dez anos enfatiza a necessidade de distinção entre os regimes de responsabilidade contratual e extracontratual, rejeitando a chamada corrente monista da responsabilidade civil. Entretanto, a adoção pelo código de um mesmo prazo prescricional não implica monismo. Dizer que a ordem jurídica reserva regimes distintos para cada tipo de responsabilidade não afasta, logicamente, a possibilidade de que haja identidade em relação a certos aspectos do regime — como o prazo prescricional — nem justifica que o intérprete realize uma interpretação “corretiva” com base em um mandamento de diferenciação que não é adotado textualmente pelo legislador.

Diferentemente do que se passa em outras experiências jurídicas, como a italiana, o legislador brasileiro optou, legitimamente, por não distinguir o prazo prescricional. Não se trata de uma “jabuticaba” jurídica, mas de escolha igualmente realizada em outras ordens jurídicas, como a alemã e a francesa. Tal escolha não é apenas tecnicamente possível, mas também adequada, a nosso ver, considerando a multiplicação de figuras que, não se enquadrando perfeitamente na dicotomia clássica, suscitam dúvidas acerca de sua natureza contratual ou aquiliana. É o caso, por exemplo, das responsabilidades pré-contratual, pós-contratual e por lesão ao crédito: todas espécies de responsabilidade que, para parte da doutrina, enquadram-se no gênero da responsabilidade contratual, mas, para outra parte, ostentam natureza extracontratual, havendo, ainda, quem as considere tertium genus. Criação — por via puramente hermenêutica — de uma diferenciação do prazo prescricional faria nascer um problema que o legislador, talvez astutamente, tenha contornado ao prever um prazo só para a “reparação civil”: a insegurança acerca do prazo aplicável às referidas figuras.

A 2ª Seção do STJ sustentou, todavia, que uma distinção do prazo prescricional aplicável à responsabilidade contratual e extracontratual seria imposta por razões sistemáticas:

“Considerando a logicidade e a integridade da legislação civil, por questão de coerência, é necessário que o credor esteja sujeito ao mesmo prazo para exercer as três pretensões que a lei põe à sua disposição como possíveis reações ao inadimplemento. Não parece haver sentido jurídico nem lógica a afirmação segundo a qual o credor tem um prazo para: (i) exigir o cumprimento da prestação; e (ii) outro para reclamar o pagamento das perdas e danos que lhe são devidos em razão do mesmo descumprimento. Se, em uma determinada situação que não ocorreu a prescrição, o contratante ainda pode exigir o cumprimento integral do objeto contratado (ou a execução pelo equivalente), carece de lógica negar-lhe a possibilidade de pleitear a indenização dos danos originados pelo mesmo descumprimento. Nesse sentido, o art. 205 do CC⁄02 mantém a integridade lógica e sistemática da legislação civil. (…) Nesse contexto, visando a preservação da coerência do CC/02 e para lhe atribuir a melhor significação e evitar antinomias, a melhor interpretação sistemática dos dispositivos normativos em julgamento mostra-se aquela que atribui a mesma regra prescricional para as consequências negativas originadas do mesmo fato e com mesmos fundamentos jurídicos. Em resumo, para as mesmas causas, as mesmas consequências devem ser observadas.”

A preservação da unidade do ordenamento, com efeito, é tarefa da qual não pode jamais descurar o intérprete, mas o entendimento da 2ª Seção, embora engenhoso, não é capaz, a nosso ver, de conferir ao sistema a coerência desejada. Ao se referir à necessidade de atribuir “para as mesmas causas, as mesmas consequências”, o acórdão ignora que execução do contrato (ou sua resolução) e responsabilidade civil possuem causas distintas. Enquanto a pretensão de execução do contrato (seja in natura, seja pelo equivalente pecuniário) encontra fundamento direto no inadimplemento contratual, a pretensão reparatória tem fundamento apenas mediato no inadimplemento, exigindo um fato jurídico ulterior para o seu nascimento: a ocorrência de um dano[6]. Justamente por isso tais pretensões podem possuir termos a quo distintos, quando o dano ocorre posteriormente ao inadimplemento. Nesses casos, de nada adianta ter um prazo idêntico para as pretensões, pois seu curso seguirá desencontrado.

O exercício hermenêutico realizado pela 2ª Seção parece, portanto, desnecessário, dirigido a um falso problema. Responsabilidade contratual e execução do contrato não são efeitos de um mesmo fato e, portanto, não precisam estar sujeitos a um mesmo prazo. Ainda que fossem efeitos de um mesmo fato, nossa ordem jurídica, em sua sistematicidade, não imporia prazo único. O artigo 206 do Código Civil estrutura os prazos prescricionais com base na pretensão sujeita a tal prazo[7], e não no fato jurídico que lhe dá origem ou no fato ao qual reagem, para usar a expressão empregada pela 2ª Seção. A própria codificação prevê expressamente, em outras passagens, prazos distintos para reações diferentes que permite sejam adotadas diante de um mesmo acontecimento.

Por exemplo, o recebimento de uma coisa com vícios redibitórios pode autorizar o adquirente a escolher entre uma ou mais de diferentes reações, a saber: (a) a redibição (artigo 441); (b) o abatimento no preço (artigo 442); e (c) a reparação das perdas e danos (artigo 443). Enquanto as duas primeiras reações sujeitam-se ao prazo decadencial de 30 dias ou um ano, conforme a coisa seja móvel ou imóvel (artigo 445), a pretensão de reparação sujeita-se ao prazo de três ou dez anos, como vier a decidir a Corte Especial. Vale dizer: decida o que decida o STJ, o adquirente de coisa viciada terá pretensões distintas, subordinadas a prazos distintos. Muitos outros exemplos poderiam ser dados. A suposta uniformidade de prazos para pretensões originárias de um mesmo “fato” não existirá de qualquer modo, razão pela qual não pode servir de fundamento à alegação de que o prazo da responsabilidade contratual deve ser de dez anos para que seja idêntico ao prazo da pretensão de cumprimento dos contratos.

Como se vê, a adoção do prazo decenal para a responsabilidade civil contratual não é imposta por nosso texto normativo — que sugere o contrário no artigo 206, parágrafo 3º, V — nem decorre de uma suposta razão sistemática que é afastada expressamente pelo próprio legislador quando elege o critério da pretensão (e não do seu fato gerador) para definir os prazos prescricionais (artigo 189 c/c 206) e quando traz especificamente prazos distintos para reações distintas ainda que dentro do mesmo quadro fático (artigos 441-445, entre outros).

Aliás, aqui convém notar que o argumento sistemático funciona para os dois lados. A 2ª Seção sustenta que o prazo da responsabilidade contratual deve ser de dez anos para que seja idêntico ao prazo da pretensão de cumprimento do contrato, o qual seria decenal por força da aplicação da regra geral do artigo 205. Ora, o argumento sistemático poderia ser utilizado para questionar a aplicação do prazo decenal à pretensão de cumprimento. Embora não configure forma de reparação, tal pretensão poderia ser encarada como uma das possíveis reações ao inadimplemento, razão pela qual poderiam ambos os prazos ser reunidos sob a rubrica do prazo trienal. Aliás, em dúvida quanto a reunir todas as pretensões sob um prazo previsto especificamente pelo legislador (prazo trienal da reparação civil) ou sob um prazo geral e subsidiário, aplicável apenas na ausência de previsão legal específica (prazo decenal), bem poderia se prestigiar a explícita opção do legislador. Como se vê, o critério do prazo uniforme para diferentes reações a um mesmo fato não diz nada por si só, podendo resultar em unificação quer sob o prazo decenal, quer sob o prazo trienal.

Ainda no plano sistemático, não se pode deixar de notar que a opção por um prazo prescricional de dez anos para a responsabilidade contratual resultaria em um prazo equivalente ao dobro do prazo de cinco anos estipulado para a pretensão de reparação dos danos causados ao consumidor pelo fato do produto ou do serviço (CDC, artigo 27). Tal disparidade de tratamento, em desfavor do consumidor, afronta o dever fundamental do Estado à “defesa do consumidor” (CR, artigo 5º, XXXII) e, também, o princípio constitucional da isonomia substancial. Pretender conferir a um credor comum um prazo amplamente superior àquele atribuído ao consumidor (vulnerável) para a mesma pretensão de reparação de danos representa franco atentado às normas constitucionais[8].

Todas essas considerações evidenciam que a palavra final sobre essa matéria não deveria ser buscada em razões sistemáticas que se revelam artificiais diante da complexidade do tratamento reservado pelo Código Civil à prescrição, mas, sim, em razões substanciais que decorrem do compromisso com os valores que a ordem jurídica brasileira pretende ver concretizados nas relações privadas. Nesse sentido, a elevação do prazo prescricional da responsabilidade contratual de três para dez anos parece contrariar aquela que é doutrinariamente reconhecida como a principal diretriz seguida pelo Código Civil nesse campo: a promoção de maior segurança jurídica, por meio da redução dos prazos prescricionais em uma realidade marcada pelo dinamismo e celeridade da vida negocial. 

A possibilidade do exercício de uma pretensão reparatória pelo prazo de dez anos cria uma situação evidente de insegurança que pode mesmo comprometer a cooperação necessária entre os contratantes no desenrolar do processo obrigacional, ao permitir que qualquer das partes venha, oito ou nove anos depois de um descumprimento contratual qualquer, pretender reparar danos longínquos contra os quais não se insurgiu no momento oportuno. Deve-se evitar que a Corte Especial, ancorada em argumentos literais e sistemáticos que poderiam ser usados em qualquer sentido, acabe por atingir conclusão que venha a abrir as portas do Poder Judiciário para conflitos calcados em descumprimentos contratuais ocorridos há nada menos que uma década, com todas as dificuldades de prova que decorreriam desse longo distanciamento temporal. O prazo de três anos parece mais que suficiente na realidade atual para permitir e esgotar tentativas de composição entre as partes, sem, de outro lado, permitir que a propositura da ação judicial se afaste tanto do momento do descumprimento contratual que dificulte seu julgamento justo.

Essas breves considerações revelam que os argumentos usados pela 2ª Seção do STJ para concluir pela aplicação do prazo decenal devem ser objeto de cuidadosa reflexão crítica. O tema em debate na Corte Especial exprime bem a necessidade de se evitar a insegurança jurídica nas relações privadas, prestigiando o exercício diligente das eventuais pretensões dos contratantes. Vale aqui a advertência de Bruno Troisi, que, sobre a prescrição, afirmou: “parece quase uma ironia do destino que um instituto dirigido, segundo a opinião dominante, a garantir a certeza seja ele próprio fonte de profundas incertezas”[9]. É essa incerteza que a Corte Especial deve evitar.


[1] STJ, 2ª S., EREsp 1.280.825/RJ, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26.6.2018.
[2] “Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.”
[3] O acórdão destaca os artigos 932, 942, 943 e 953.

[4] Confirmando a aplicação da teoria à responsabilidade aquiliana: STF, 1ª Turma, RE 130.764-1, Rel. Min. Moreira Alves, j. 12/5/1992.
[5] Sobre a aplicação da regra à responsabilidade contratual, cf. Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, Código Civil Comentado, v. IV, São Paulo: Atlas, 2008, p. 342.
[6] “A falta de cumprimento da obrigação só dá lugar à obrigação de indenizar se, como geralmente sucede, o credor sofrer com ela um prejuízo. Sem dano – patrimonial ou não patrimonial – não há obrigação de indenizar, não existe responsabilidade civil” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v. II, 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 105).

[7] Seja consentido remeter a Anderson Schreiber, A Decadência da Prescrição?, in Direito Civil e Constituição, São Paulo: Atlas, 2013, especialmente pp. 80-82.
[8] Gustavo Tepedino, A prescrição trienal para a reparação civil, disponível em: https://bit.ly/2Mqfs4R.
[9] Bruno Troisi, La prescrizione come procedimento, Camerino: E.S.I., 1980, p. 12-13.

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