Defesa do consumidor

"Grande compromisso do Procon é com a desjudicialização do consumo"

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21 de abril de 2019, 8h00

Spacca
Entre os objetivos do procurador de Justiça Fernando Capez à frente do Procon de São Paulo está nada menos que “revolucionar” o órgão. “O serviço público tem que funcionar, e hoje não funciona”, diz ele, em entrevista exclusiva à ConJur.

Capez é conhecido da cena política paulista. Membro do Ministério Público há mais de 30 anos, foi deputado estadual pelo PSDB por três mandatos e presidiu a Assembleia Legislativa do estado (Alesp) no último deles, que acabou em dezembro de 2018. Assumiu o Procon há dois meses, depois de ter sido nomeado e desnomeado pelo governador João Doria (PSDB) – era preciso passar pela eleição de uma lista tríplice antes, processo que terminou em fevereiro.

Em sua última passagem pela Alesp, experimentou em escala local o que a máquina criada pelos órgãos de persecução é capaz de fazer com seus inimigos políticos. Viu-se acusado de manipular o orçamento da assembleia para favorecer uma empresa numa licitação. Não só a empresa não havia vencido a concorrência com se descobriu depois que o delator que acusava Capez havia sido orientado a fazê-lo por interessados em vê-lo desacreditado. Era época de eleições, afinal.

Hoje à frente do Procon, Capez entende bem o que a exposição negativa é capaz de fazer. Sabe, por exemplo, que a exposição de uma empresa que reiteradamente pode ser pior que uma multa. O caso da consultoria Empiricus é um bom exemplo, diz ele. O anúncio da menina que transformou R$ 1,5 mil em R$ 1 milhão em um ano foi considerado propaganda enganosa e a empresa foi condenada a pagar multa de R$ 40 mil. Mas hoje enfrenta toda a publicidade negativa e a decorrente fuga de clientes que a condenação, ainda que administrativa, causou.

Não interessa ao Procon punir a empresa. O Procon quer que não seja lesado o consumidor. Então, se uma empresa admite o seu erro e dali para a frente estabelece uma forma de prevenir erros semelhantes, o Procon estimula esse tipo de ação”, afirma.

Uma das principais frentes de ação de Capez será a da desjudicialização, conta. Para ele, não faz sentido que demandas individuais de consumidor sejam levadas ao Judiciário. Isso tudo tem de ser resolvido por acordo ou nas vias administrativas próprias. À Justiça, diz o presidente do Procon, só vale ir com ações coletivas, para defender direitos difusos homogêneos.

E no seu raio de ação estão as empresas de telefonia, bancos, planos de saúde e comércio eletrônico. Juntas, elas respondem por 98% das queixas ao Procon, segundo Capez.

Lei a entrevista:

ConJur — Seus objetivos parecem bastante ambiciosas.
Fernando Capez —
A única que o governador João Doria me pediu em relação ao Procon foi eficiência. O serviço público tem que funcionar, e hoje não funciona.

ConJur — E o que significa essa eficiência, em relação ao Procon?
Fernando Capez —
Primeiro, dar um canal rápido, desburocratizado e simples para o consumidor fazer sua reclamação. E a resposta também tem que ser ágil. Hoje o maior desafio do Procon de São Paulo e dos Procons municipais é deixar o consumidor satisfeito, e ele é o “cliente” do Procon. Vamos tentar difundir ao máximo que isso seja feito eletronicamente, por meio de um aplicativo de celular. Será um canal imediato e direto de acesso.

Depois, vamos implantar uma série de mudanças no atendimento por telefone, pelo número 151. O principal é treinar os atendentes a ouvir as reclamações dos consumidores e orientá-los a registrar suas queixas pelo aplicativo.

ConJur — Esse aplicativo já existe? É próprio?
Fernando Capez —
O Procon estadual já possui um aplicativo, mas optamos por usar o aplicativo da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça. Queremos que seja um canal único e centralizado, para que as pessoas não fiquem perdidas entre várias formas diferentes de fazer a mesma coisa. E estamos fazendo uma série de acordos para que as empresas acessem o aplicativo e resolvam, no mínimo, 85% das reclamações. Quem atingir esse índice receberá o selo de Empresa Amiga do Consumidor. Pretendemos estar com todos os termos firmados até a primeira quinzena de maio.

ConJur — O que acontece com as reclamações não resolvidas? De acordo com os dados do Procon de 2018, das 700 mil reclamações feitas, 50 mil não foram solucionadas.
Fernando Capez —
Passarão por um filtro de admissibilidade. Se não tiver cabimento, fundamentação ou não contrariar o Código de Defesa do Consumidor, será indeferida. As que forem deferidas seguem para conciliação no próprio Procon, dentro da Diretoria de Atendimento e Orientação. Terminada esta fase, segue-se multa para a empresa ou encaminhamento do consumidor para o Juizado Cível, onde fica superada a primeira fase de acordo, porque já foi tentado. A ideia é que os fornecedores médios sejam inseridos nesse sistema num segundo momento.

ConJur — O Procon tem ou terá políticas de prevenção, em vez de só punição?
Fernando Capez —
Prevenção é a nossa linha mais importante. O Procon não deseja sair punindo ninguém, deseja que não haja violações ao CDC. Estamos criando uma escola, a Escola Paulista de Defesa do Consumidor. O foco é no consumidor, mas também antederemos fornecedores, ensinando o que diz o CDC, com vídeos no YouTube, palestras, animações. O objetivo é transformar o consumidor numa espécie de fiscal. Sabendo dos seus direitos, ele vai poder usar o aplicativo para apresentar sua reclamação.

ConJur — Haverá alguma atuação por setor?
Fernando Capez —
Desde fevereiro, já chamamos 42 instituições financeiras, todas as empresas de telefonia e TV a cabo, as companhias aéreas, as empresas de comércio eletrônico e os planos de saúde. Juntas, elas correspondem a 98% das reclamações no estado de São Paulo. Também estamos atuando em contato com os sindicatos dos postos de combustíveis, para ecoar uma informação por meio de nota técnica de como deverão ser afixados os preços de combustível. Existe, infelizmente, muita malícia nesse tipo de publicidade. Depois de avisar os postos, haverá uma ação de orientação e, se houver recalcitrância, começaremos a aplicar as multas.

ConJur — No caso dos postos, existe um cartel. O Procon, por ser o fiscal de preços, deve ser muito bom para identificar esse tipo de coisa, não?
Fernando Capez —
Sim, muito. Com relação às fraudes de combustível e outras questões mais graves, podemos fazer operações conjuntas. O Procon não é um órgão policial, é um órgão administrativo que pode impor multas. Podemos atuar em conjunto com a polícia, com o Ministério Público, Inmetro, Receita, num sistema que funcionou muito bem nos anos 1990, de forças-tarefa.

ConJur — Já existe esse tipo de ação coordenada hoje?
Fernando Capez —
Tem algumas, que estão obviamente mantidas em sigilo.

ConJur — O Tribunal de Justiça de São Paulo já enviou ao Procon e ao Ministério Público casos de financeiras que cobram juros abusivos. Um caso notório é o da Crefisa. O Procon tem alguma política para isso?
Fernando Capez — Existe jurisprudência pacífica de que as instituições financeiras estão sujeitas ao Código do Consumidor. Nesses casos, primeiro o Procon observa a jurisprudência. Se ela estabelecer limites de juros, de remuneração de capital, o Procon vai seguir e agir administrativamente. O que o Procon pode fazer, independentemente da jurisprudência, é atuar nas hipóteses de diferenciação de cobrança de juros para pessoas em situações assemelhadas. Aí, independentemente da posição jurisprudencial, é claro que se trata de uma cobrança abusiva, discriminatória e contrária ao princípio da isonomia.

ConJur — O que acha do “cadastro positivo”, aprovado recentemente pelo Congresso?
Fernando Capez —
Tenho muitas dúvidas. Primeiro, porque a aplicação da lei antes de uma regulamentação detalhada é temerária. Qual seria o critério para diferenciar o bom pagador do mau? Se houver diferenciação na cobrança de juros a partir de critérios discriminatórios gerados pelo cadastro positivo, o Procon deve agir. Se você tem débito em conta corrente, por exemplo, e o banco demora três, quatro meses para avisar e vai fazendo débito da sua conta, você é surpreendido com o seu nome no Serasa, com o rebaixamento no Cadastro Positivo. Aí você vai pedir um empréstimo, o banco aumenta os seus juros indevidamente.Qual foi esse critério? Nesse caso você foi vítima de um abuso, e o Procon precisa atuar.

ConJur — Haverá alguma política específica para essas empresas de restrição a crédito?
Fernando Capez —
Vamos olhar isso de maneira muito próxima, porque existem casos de arbitrariedade. Havendo, serão aplicadas multas e feitas ações contundentes, porque um órgão de orientação não pode se tornar também num órgão ditador, que, com seus próprios critérios, vai elegendo quem deve colocar lá. Ninguém pode ter poder absoluto. A Serasa, se abusar, pode ser revisto pelos órgãos administrativos e pelo Poder Judiciário. Por isso, o Procon está acompanhando com atenção os próximos passos da Serasa, principalmente.

ConJur — Dá para resolver conflitos de consumo fora da Justiça?
Fernando Capez —
Essa é a típica questão em que a desjudicialização é imperiosa. Temos que resolver em câmaras de conciliação. Não se justifica engrossar as fileiras do Judiciário com demandas individuais do consumidor. O grande compromisso que o Procon deve ter com a sociedade e com o Poder Judiciário é a desjudicialização. Temos que ter poucas demandas de consumidor chegando ao Judiciário e, quando elas chegarem, deve ser por ações civis públicas, tutela de interesses individuais homogêneos, coletivos, porque aí você abrange em uma só ação vários interessados. Não tem sentido, em pleno século XXI, o sujeito ir ao Judiciário fazer uma reclamação individual por causa de relação de consumo, com tantos órgãos de fiscalização. Esse tem que ser o enorme desafio: reduzir o custo do Judiciário.

ConJur — Quais são os ônus para as empresas que não cumprirem os termos de compromisso?
Fernando Capez —
Além das multas, as empresas que forem repetidamente acionadas pelas mesmas questões e não consertarem esses problemas serão expostas na mídia, o que vai afetar a credibilidade delas. O Procon também está revendo a tabela de multas. Publicaremos uma portaria para que as multas fiquem entre 1% e 6% do faturamento da empresa, de acordo com a gravidade da infração, respeitado o teto de R$ 9,6 milhões. Por causa dessa combinação de multa e exposição, tivemos várias empresas vindo até o Procon desesperadas.

ConJur — Que incentivo a empresa teria para pagar a multa?
Fernando Capez —
Estamos oferecendo oportunidades de descontos para que as empresas limpem seus nomes e paguem a multa aplicada. Se ela optar em não pagar a multa com desconto, ela vai ser protestada. Além disso, vai sofrer execução fiscal e entrar na Dívida Ativa.

ConJur — Por que dar desconto?
Fernando Capez —
Prefiro que o estado receba 50% antes do que ficar discutindo durante 30 anos e não receber nada. Algumas empresas depositam o valor em juízo e ficam dez anos discutindo a execução fiscal. Quando era deputado, apresentei um projeto que permitisse a transação durante a execução fiscal, porque também não é interessante para a empresa. Ainda que demore, ela tem que garantir o juízo.

ConJur — E como serão esses descontos?
Fernando Capez —
Estamos consultando a Procuradoria do Estado para saber se podemos aplicar descontos às multas por infrações, inclusive descontos maiores a infrações cometidas antes da publicação. O nosso entendimento é que a norma pode retroagir para beneficiar e não pode retroagir para prejudicar, mas necessitamos de uma posição oficial da Procuradoria.

ConJur — A judicialização das multas é alta?
Fernando Capez —
O Procon é muito criterioso, quase 100% das multas aplicadas são mantidas na Justiça. Se uma multa chega à última instância administrativa e é mantida, infelizmente é porque a empresa infringiu mesmo a lei. Ela tem pouca possibilidade de reverter isso na Justiça, a menos que queira ganhar tempo.

ConJur — O teto da multa não é baixo? Para grandes empresas, esses R$ 9 milhões não são nada, e são o máximo que o Procon pode cobrar.
Fernando Capez —
É, mas, imagine uma empresa gigantesca, com o faturamento de R$ 1 bilhão anual, ela toma três multas de R$ 9 milhões, essas as três são colocadas na imprensa. Uma multa de R$ 9 milhões, ainda que de pequeno valor em relação à empresa, provoca um alarido muito grande, e a imagem da empresa é muito abalada. Não interessa ao Procon punir a empresa. O Procon quer que não seja lesado o consumidor. Então, se uma empresa admite o seu erro e dali para a frente estabelece uma forma de prevenir erros semelhantes, o Procon estimula esse tipo de ação, é elogiável.

ConJur — Agora, muitos advogados reclamam também da dificuldade de se defender no Procon.
Fernando Capez —
Estamos vivenciando um surto autoritário no país, e a ação administrativa sempre tem um plus de coercitividade: ainda que exista o direito à ampla defesa, não é a ampla defesa do Judiciário. O Procon está atento a isso, hoje compreendo que o fato de uma empresa ter um grande número de reclamações não significa que ela não trabalhe bem. Às vezes é porque ela tem um grande número de clientes, por exemplo. O importante é verificar o índice de resolutividade em dez dias da empresa. Se ela, por exemplo, não polemiza, resolve os problemas, é uma empresa responsável. Agora, em alguns casos não tem jeito: se foi flagrada cometendo um ilícito, o Procon vai multar e divulgar. Sempre existe um risco, que estamos procurando minimizar com orientação constante e diálogo permanente com os fornecedores. Hoje toda empresa, pelo menos as de médio porte, precisa ter um mínimo de orientação jurídica. Não dá mais para agir de forma amadora.

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