Opinião

Gastone Righi deixou seu legado para magistratura e advocacia

Autor

18 de abril de 2019, 16h01

Gastone Righi deixou o seu legado para a magistratura e a advocacia. Apresentou o primeiro projeto de lei para a interiorização da Justiça Federal no Brasil. O da cidade de Santos. Depois, conseguiu o próprio prédio onde até hoje está a Justiça Federal.

Ele era líder do PTB na Câmara dos Deputados e o partido tinha o ministro da Indústria e Comércio, o Roberto Cardoso Alves, ao qual estava subordinado o Instituto Brasileiro do Café (IBC), então em processo de extinção. Isto foi decisivo para definir a destinação do prédio para a Justiça Federal em Santos.

Na Constituinte, como líder, teve papel fundamental na defesa da advocacia e da magistratura.

Ele foi cassado na primeira lista do AI-5, em 30 de dezembro de 1968. Naquela época ele era “meio comunista”, como brincava ao lembrar. O mundo sofria a polarização da Guerra Fria. Ele era um advogado de classe média em ascensão, na cidade conhecida como a “Moscou Brasileira”, por causa da expressiva votação obtida pelo PCB na eleição da década de 40.

Ele acabou entrando na política por vocação e pelo momento histórico. O Governo de 64 havia deslocado o navio inativo Raul Soares do Rio para Santos, para funcionar como prisão. Eram tantos civis e militares cassados na região, com ordem de prisão, que alguém teve a ideia desastrada do navio-calabouço. Fundearam o navio arrasado na baía de Santos. Foi um desastre humanitário. O navio era fétido, insalubre. Mas ninguém queria defender os presos. O Gastone era sócio no escritório do Francisco Prado de Oliveira Ribeiro, que era vice na prefeitura e na OAB de Santos.

A pedido das famílias, assumiu a defesa dos presos do navio Raul Soares. Depois de muitas idas e vindas, conseguiu o primeiro habeas corpus para soltar um preso do Raul Soares. Foi uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal.

O Francisco Prado foi cassado e preso. Muitos anos depois, foi secretário de Estado com o Mario Covas e o Alckmin. Quando veio a eleição de 66, o Francisco Prado não podia concorrer para deputado federal e então o Gastone entrou. Ele fez “dobrada” com o Esmeraldo Tarquínio, candidato a deputado estadual. Esmeraldo era negro, elegante, advogado e grande orador.

Na época em que o Santos Futebol Clube esgotou a era Pelé e teve que conviver com elencos sofríveis, Esmeraldo levantava nas sociais da Vila Belmiro e fazia discursos memoráveis em protesto. Trocamos o Deus negro dos gramados pelo grande orador das arquibancadas, a Vila Belmiro em silêncio para ouvi-lo. Eu era garoto, adolescente, e me sentava perto do Esmeraldo, esperando o vexame em campo e o espetáculo na arquibancada. O Esmeraldo chegou a ser eleito prefeito de Santos, mas não assumiu, porque foi cassado.

Na eleição de 66 o Gastone foi eleito deputado federal, ainda jovem. Foi cassado na primeira lista do AI-5 porque era o homem de ligação do Jânio na Frente Ampla. O único político de expressão nacional integrante desta primeira lista do AI-5 foi o Lacerda. Lacerda apoiou 64, mas se arrependeu quando percebeu que o poder não seria devolvido aos civis tão rapidamente. Cada político de expressão nacional tinha um líder de sua confiança para representá-lo na Frente Ampla. Gastone representava o Jânio e por isto foi cassado na primeira hora.

Em 68, os ataques terroristas contra civis e militares, a guerrilha, assassinatos, assaltos e sequestros foram somados com a Frente Ampla e veio o AI-5 em dezembro. Gastone foi preso e só retornou na eleição de 82, quando logo virou líder na Câmara dos Deputados. Apresentou um dos primeiros projetos para a convocação da Assembleia Nacional Constituinte.

Aprovou a primeira lei proibindo a pesca das baleias.

Fez o projeto de lei da retomada da autonomia política de Santos, então sob intervenção federal.

Foi responsável direto por esta que foi uma das maiores vitórias cívicas da História da cidade. O presidente Figueiredo conduzia a abertura, mas a linha-dura resistia. Não queria a volta das eleições nos municípios declarados áreas de segurança nacional. Santos era um símbolo.

O Gastone negociou com o Figueiredo e o vice Aureliano Chaves. Em uma viagem internacional do Figueiredo, o Aureliano assinaria decreto devolvendo a autonomia, para dizer que o Executivo estava tomando a iniciativa. E o Gastone deixaria o projeto dele parado.

Assim foi feito e Santos voltou a ser a terra da caridade e da liberdade, em um dos momentos históricos mais importantes para a vida dos santistas.
Fui promotor eleitoral na primeira eleição realizada em Santos, na Zona sediada no Santos Futebol Clube.

Na Constituinte, o seu gabinete era a sede da AMB, então presidida pelo Odyr Porto. Um jovem líder acompanhava o Odyr, o Regis de Oliveira, tio do Jaime, ambos presidentes da mesma AMB.

Na Constituinte, como líder, foi fundamental para a Advocacia e a Magistratura. O tribunal de justiça de São Paulo fez questão de reconhecer isso, outorgando-lhe o Colar do Mérito Judiciário. Também foi homenageado pela OAB.

Na Constituinte, Gastone apoiou as Forças Armadas. Não guardava nenhum rancor e tinha admiração e respeito pelos militares. Só debochava do Erasmo Dias. O Gastone era advogado da família do Erasmo. De vez em quando, o Erasmo acordava a tropa de madrugada e prendia o Gastone em casa. Minha tia de camisola, com as crianças pequenas, no meio dos soldados sonolentos, com velhas metralhadoras. Tudo sem necessidade. Depois o Erasmo divulgava com estardalhaço. O Gastone dizia que o Erasmo fazia isso para aparecer e poder acumular as muitas aposentadorias. No quartel do Exército em São Vicente, o Comandante era o General Oliva, homem sério, preparado e respeitado. Pai do Aloisio Mercadante. Os presos políticos eram bem tratados pelo General Oliva. Eles passavam o tempo jogando snooker no rancho dos oficiais, sob o olhar do General Oliva.

Depois de retornar à liderança do PTB, foi o líder mais longevo no colégio de líderes da Câmara. Só perdeu a liderança quando o presidente Collor o traiu. Quando o Collor chegou em Brasília não tinha relação no Congresso. Explicou ao Gastone que iria fazer um deputado de Alagoas líder do Governo. Mas como este deputado não tinha experiência, pediu para o Gastone ser o vice-líder do governo e tocar a pauta. Era o Renan Calheiros, o líder inexperiente.

Anos depois, o Collor se associou com uns empresários e fez uma renovação no PTB. Por motivações que não eram de filosofia partidária. O Gastone foi afastado da liderança. Quando veio o impeachment, os deputados pesquisaram o deputado que o Collor havia feito mais mal. Chegaram ao Gastone, logo escolhido presidente da comissão de impeachment.

Durante o processo, tudo foi tocado com amor à brevidade. Os líderes já disputavam espaço no futuro governo. O Gastone queria deferir algumas diligências requeridas pelo Collor. Cassado pelo AI-5, sem direito de defesa, Gastone disse que não faria o mesmo nem com quem o traiu. Mas Collor já estava derrotado na imprensa e na opinião pública e deputados interessados nas futuras posições de governo “vazaram” que o Gastone estava protegendo o Collor indevidamente. A imprensa não estava interessada nos fatos e o Gastone, que havia sido escolhido por ser inimigo do Collor, virou seu melhor amigo na narrativa enviesada.
O rolo compressor da mídia acabou com a carreira política dele. Não se reelegeu mais. Venceu o ostracismo do AI-5, mas não a calúnia opressiva da imprensa.

Continuou participando da vida política do Brasil nos bastidores. Os velhos políticos têm uma espécie de clube fechado, onde o que menos importa são os partidos. Eles são todos muito vividos. Deixam o efêmero das circunstâncias pelo interesse real da sociedade. Estão sempre se comunicando, muito atualizados. Dão conselhos. Influenciam. Gastone viveu nesta confraria até o fim. E a sua grande devoção ao Santos Futebol Clube também.

Eu era advogado e nunca havia pensado em entrar em carreira de Estado. Mas uns amigos, cujos parentes foram desembargadores no TJSP, me convenceram a fazer o concurso. Me inscrevi no Ministério Público de São Paulo e no Tribunal de Justiça de São Paulo. Fiz a prova do MP. Na da magistratura, na semana seguinte, nem compareci. Com sucesso na primeira prova do MP, acabei levando o concurso até o final. Aprovado, fiquei na encruzilhada. O Gastone me convenceu a assumir. Fiquei 5 anos no MP, mas não era meu lugar. Quando comuniquei ao Gastone que iria me exonerar e voltar para a advocacia, ele me convenceu a fazer o primeiro concurso de juiz federal substituto. Os tribunais regionais federais haviam sido criados. Para este concurso eu estudei seriamente.
Nós fomos aprovados em 19, mas o tribunal só tinha 5 cargos. Eu e outros 4 assumimos e os demais ficaram esperando. O Homar Cais me pediu para mobilizar o Gastone no Congresso. Ele pegou o projeto de lei com afinco e o aprovou. Aí a segunda turma do meu concurso tomou posse nas novas vagas.

Em 97, eu entrei na lista tríplice do TRF-3, para desembargador. O Gastone já estava fora do Congresso. O presidente era Fernando Henrique Cardoso. Na eleição de 1985, o presidente FHC havia tirado a famosa foto na cadeira de prefeito e o Jânio e o Gastone fizeram a cena da limpeza. Para piorar, eu havia ganho, no MP,  o prêmio Melhor Arrazoado Forense, de 1989, com um trabalho pioneiro de defesa dos direitos do cidadão. Mas o contrato que eu defendi naquele caso era de interesse da Telma de Souza, eleita prefeita de Santos pelo PT, então inimigo público número um da alta burocracia judiciária, anos depois sua fiel e devotada parceira. Para piorar ainda mais, eu havia sido convidado, no MP,  para substituir o promotor de justiça José Celso de Mello Filho, hoje decano no STF, mas líder da oposição naquela época dentro do MP.

Entrei na lista tríplice com duas colegas, a minha amiga Marisa Santos e a Therezinha, hoje presidente do tribunal. A dona Ruth estava na defesa das mulheres nos cargos públicos. A Marisa, juíza séria e independente, havia dado liminar para liberar a rádio Eldorado, do Grupo Estado, da Hora do Brasil. Eu ia no avião para Brasília lendo o Estadão, com matérias enormes elogiando a Marisinha.

Mas eu tinha o apoio de todos os partidos políticos. Convivi e convivo, pela proximidade com o Gastone, com políticos de todas as crenças. E construi minha carreira levando a independência de juiz ao limite. O político está acostumado com a vitória e a derrota. Ele só não respeita o juiz oportunista. Pode até não gostar da decisão contrária e protestar, mas respeita.

As bancadas congressuais de SP e MS me apoiaram. Com a exceção da Marta Suplicy, que foi leal e me procurou para dizer que não poderia deixar de apoiar as mulheres que concorriam comigo.

Nesta ocasião, o TRF-3 enfrentava um problema sério. O grupo que havia construído o TRT também havia ganho a licitação para erguer prédio suntuoso no Ibirapuera para a sede do TRF3. Eu falei com o Gastone e ele abriu as portas dos gabinetes do Pedro Malan e do Pedro Parente. Graças ao trabalho discreto do Malan e do Parente, o TRF3 tem o seu prédio na Paulista. O Jorge Scartezzini, presidente do TRF3 na época, foi correto e reconheceu isto. 

Deu o Colar do Mérito Judiciário a eles. Na entrega da homenagem, eu fiz o discurso para o Malan em uma cerimônia discreta no Ministério da Fazenda. A licitação do prédio do Ibirapuera recebeu um despacho de duas linhas: prejudicada. Todos foram importantes para este desfecho, que começou com o Gastone, que havia se relacionado com o Pedro Parente em Brasília. 

Foram mais de 60 anos de atividade política e relações por todo Brasil.
No meio destas tensões, acasos e coincidências, que constituem a política vivida por figuras brilhantes como o Gastone, eu, que nunca sonhei com a carreira pública, acabei sendo nomeado o primeiro desembargador federal de toda nossa geração.

Apesar e por causa do Gastone.

O presidente FHC não foi rancoroso. Não puniu o sobrinho do desafeto político, nem quem só atuou com independência na defesa de um contrato público.

Lamento muito a morte do Gastone, uma das inteligências mais brilhantes que conheci, entre as muitas com as quais tive e tenho a oportunidade de conviver.

Foi um grande parceiro na minha vida. Com as suas vitórias e derrotas, ao longo de 83 anos encerrados ontem, aprendi muito.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!