Anuário da Justiça

Criatividade e conectividade qualificam o trabalho da Justiça

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17 de abril de 2019, 8h00

*Artigo publicado no Anuário da Justiça Rio de Janeiro 2019, que será lançado nesta quarta-feira (17/4) no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Spacca
Mais um ano forense se inicia. A título pessoal, um marco importante, por a mim ter sido confiada, pelos colegas, a mais alta posição do Poder Judiciário fluminense – não sem muitos desafios.

O primeiro deles continua a ser a crise econômica, e, por conseguinte, social do estado do Rio de Janeiro. Ninguém ignora que a população ainda sofre os efeitos decorrentes de um passado recente nefasto em âmbito administrativo e moral: a corrupção, prática pretensamente silenciosa, quando revelada, é capaz de ensurdecer.

O fenômeno é, essencialmente, jurídico: subindo os níveis de desemprego e definhados os serviços públicos mais essenciais, a única porta aberta – permanentemente aberta[1] – é a do Judiciário. O princípio do acesso à Justiça, de que tanto se fala, ganha contornos reais, de esperançosa aposta de tantos cidadãos. Consequentemente, irrompem processos, muitos deles repetitivos (porque o drama, infelizmente, costuma ser repetitivo), a ocupar os juízos de nosso tribunal de Justiça.

Mesmo diante desse quadro, a missão constitucional de prestar o serviço público jurisdicional de maneira célere e satisfatória – essência arvorada ao patamar de norma fundamental processual[2] – tem sido adequadamente cumprida. A experiência recente na Corregedoria-Geral da Justiça do estado do Rio de Janeiro o comprova: alcançou-se uma redução de 100 mil processos em nosso acervo, na primeira instância, em pouco mais de um ano (de janeiro de 2017 a abril de 2018).

No último biênio, permeou o tribunal a realidade de contenção de despesas. Com acerto e sóbria consciência acerca da quadra pela qual se passava, a Administração enxugou gastos outrora ordinários, imprimindo um novo sentimento em todos os servidores públicos que compõem a corte, serventuários e magistrados. A motivação passou a ser o fiel cumprimento das atividades cotidianas, em autêntica postura de serviço.

Com efeito, a correta compreensão da atividade empreendida por cada membro administrativo e judicante do tribunal foi a principal finalidade perseguida na CGJ-RJ. Não raro, servidores e magistrados atuaram, voluntariamente, para diminuir o acervo de determinados juízos, demonstrando a grandeza de alma exigida para enfrentar os desafios contemporâneos.

Diante das adversidades, várias alternativas são criadas, demonstrando o empenho, o entusiasmo e a operosidade[3] de magistrados e servidores. Encontram-se saídas que geram resultados, satisfação e reconhecimento da sociedade.

Apesar das restrições orçamentá-rias, a demanda continua a crescer. O Judiciário deve imprimir um modelo gerencial e adotar medidas criativas e eficientes, com a ampliação dos seus serviços e da sua atuação, decorrentes das exigências da comunidade, gerando satisfação e reconhecimento da população.

O princípio da eficiência, que, por ditame constitucional, informa toda a Administração Pública, calca-se no aumento da produtividade, com minimização do desperdício, equacionando a ótima relação de custo-benefício que deve marcar os serviços públicos. Mas, não apenas.

Existe outro elemento fundamental para a boa administração, que é o acertamento qualitativo[4]. O atendimento de metas matemáticas não pode prescindir da manutenção do adequado padrão de qualidade, sobretudo quando se está diante de tão essencial prestação, que substitui a vontade das partes e pacifica o conflito. Soluções definitivas, como aquelas dadas pelo Judiciário, devem ostentar a melhor qualidade possível.

Para atender a tão sublime objetivo, diversas frentes merecerão particular enfoque.

Especificamente sobre o nosso tribunal de Justiça, há necessidade de aperfeiçoamento da parte tecnológica, investindo no setor de tecnologia da informação, bem como no de pessoal, com a qualificação dos nossos servidores. Criatividade e conectividade são as palavras-chaves a impulsionar e qualificar o trabalho.

As novas tecnologias, de fato, parecem ter chegado de vez ao Judiciário[5]. Diversos grupos de estudo se desenrolam pelo país afora para verticalizar a compreensão das possíveis contribuições práticas que a modernização técnica pode oferecer à prestação jurisdicional. Naturalmente, não poderá o Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro ignorar tais aportes científicos.

Veja-se um exemplo concreto: o Código Fux investiu, como é sabido, em potente sistemática de precedentes judiciais, valorizando diversas espécies de decisões jurisdicionais, agora vinculativas. Destacam-se os casos repetitivos[6], gênero do qual são espécies o IRDR e os recursos repetitivos. O potencial dos institutos é inegável e, faça-se justiça, já é uma realidade. No entanto, não por completo. E isso porque a prática, como dito, coloca seus desafios. A suspensão dos processos em curso, elemento bastante central sob a ótica da economia processual macroscópica, é determinada pelo órgão jurisdicional que definirá a tese jurídica e comunicada aos juízos todos que possuam processos que versem, a qualquer título[7], sobre a questão jurídica.

Um primeiro problema pragmático: como se dará essa comunicação? Basta um e-mail aos juízes com competência, em abstrato, para a matéria? Há que se indagar a respeito, vez que deverá se mostrar real, e não meramente formal. A comunicação não é um entrave burocrático ao seguimento do julgamento, mas condição sine qua non para o alcance das esperadas isonomia e segurança jurídica motivadoras da criação dos repetitivos[8].

Outro ilustrativo e posterior questionamento: presumindo que tenha tomado verdadeira ciência da instauração do incidente, como deverá proceder o juiz natural para que efetivamente ocorra a suspensão dos processos de sua competência sobre o tema? A resposta não é nada óbvia, e nem pode ser simplista, tendo em vista os volumosos acervos, do conhecimento de todos os colegas, que desafiam aqueles que exercem atividade judicante na atual quadra.

Precisamente aí está um capítulo que se pretende escrever no biênio que se inicia: o da conciliação entre a cativante teoria e a espinhosa prática.

É perceptível que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem muito a contribuir, na vanguarda do Judiciário pátrio, com a concretização de institutos que somente se mostrarão poderosos se os atores do sistema de Justiça os tomarem como próprios.

Os recentes sucessos de produtividade[9] verificados precisarão, para serem mantidos, e, como se pretende, intensificados, de uma postura gerencial da Administração do Poder Judiciário fluminense. Nessa linha, na Corregedoria, enfoquei a preciosa contribuição dos magistrados para maior celeridade na resolução do mérito processual.

Em algumas ocasiões, dialogando e refletindo com colegas que exercem a atividade judicante nas mais variadas comarcas deste estado, propus que se buscassem sentenças mais breves, suficientes para o julgamento do caso concreto. Muito comumente, citam-se longos trechos doutrinários e coleções de ementas que, para fins de convencimento do jurisdicionado, se mostram desnecessários.

Note-se que não se aceita qualquer afastamento do preceito constitucional da motivação das decisões judiciais, condição essencial para um pronunciamento válido. A exigência de externar a ratio decidendi permanece incólume, sempre relacionada ao processo sob julgamento. Uma vez exposta, porém, pode o juiz passar ao dispositivo com a clareza que se almeja nele encontrar. Sintetiza bem a ideia a célebre frase comumente atribuída a Pascal: “Fiz esta carta longa porque não tive tempo de fazê-la curta.” Isto é ato de julgar gerencial e eficiente: enfrentamento suficiente dos argumentos na litigância repetitiva somado ao debruçamento mais detido sobre os hard cases.

Outra frente vocacionada à contribuição para a boa administração dos casos sub judice é o aperfeiçoamento das decisões alternativas de solução conflitual. Os primeiros passos, que são o estímulo à sua adoção e o concreto implemento das estruturas necessárias, já foram dados.

Para o futuro, crucial será o alargamento dos diálogos institucionais, levando a autocomposição para esferas extrajudiciais. Destaco a viabilidade do desenlace da lide na esfera interna das agências reguladoras e em plataformas de facilitação de solução de imbróglios em matéria de consumo[10] – sempre no mesmo sentido dado pelo Judiciário para os conflitos análogos,[11] o qual deverá, portanto, exercer prudente função fiscalizadora dos mecanismos.

O exercício da análise de setores mais abarrotados do próprio tribunal, com auxílio tecnológico adequado, permite, em complemento às soluções pré-processuais, o implemento de mutirões de conciliação, em cooperação e autêntica integração interinstitucional com a Ordem dos Advogados do Brasil, a Defensoria Pública, o Ministério Público e os procuradores. Tal prática, de notória produtividade, deve ser ampliada.

Os desafios, portanto, não são pequenos – como também a vontade de arregaçar as mangas e trabalhar com os olhos bem postos no usuário do serviço público prestado.

A jornada humana é uma sucessão de etapas que se superpõem, as quais nos cabe procurar conduzir. Somos, até certo ponto, os detentores do nosso futuro. Em grande parte, o rumo da nossa existência depende de nossa vontade, nossa determinação, nossa persistência, nossa perseverança, nossa crença e nossa fé.

Estou convicto de que todo o trabalho do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro é, e continuará a ser, direcionado à construção de uma nova sociedade. Porque podemos e devemos crer em uma sociedade mais justa, em que o direito não seja suplicado, mas concedido; em que a obrigação não seja uma imposição, mas um compromisso; em que a liberdade seja fruto da conquista e permeie a atividade humana; em que o Estado Democrático de Direito seja a construção sólida fundada no alicerce da segurança jurídica.

 


[1] Especial atenção merecerá, em nossa Administração, a melhoria da estrutura física e da logística do Plantão Judiciário, bem como a correção da compensação quando o plantão for de 24 horas.

[2] O artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal foi repetido e esmiuçado pelos artigos 4º e 6º do Código de Processo Civil, norma processual geral do ordenamento.

[3] Sobre a operosidade, continua atual o conceito de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, delineado em 1999: “Esse princípio significa que as pessoas, quaisquer que sejam elas, que participam direta ou indiretamente da atividade judicial ou extrajudicial, devem atuar da forma mais produtiva e laboriosa possível para assegurar o efetivo acesso à justiça.” (CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 63).

[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 85.

[5] Sobre algumas implicações das novas tecnologias nos direitos fundamentais, preciosa a leitura de exposição do ministro Luis Felipe Salomão, disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/leia-palestra-salomao-novas-tecnologias.pdf.

[6] Para uma abordagem mais completa sobre o tema, ver: MELLO PORTO, José Roberto Sotero de. Teoria Geral dos Casos Repetitivos. Rio de Janeiro, GZ: 2018.

[7] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: Sistematização, Análise e Interpretação do Novo Instituto Processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 112.

[8] “A estabilidade e a previsibilidade da ordem jurídica, assim, são elementos do Estado de Direito. Nesse sentido, a variação injustificada da interpretação judicial acaba violadora da paz social pretendida.” (PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Jurisdição e Pacificação: Limites e Possibilidades do Uso dos Meios Consensuais de Resolução de Conflitos na Tutela dos Direitos Transindividuais e Pluri-individuais. Curitiba: CRV, 2017, pp. 166-167).

[9] De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, a corte estadual é a mais produtiva do país: http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/80546-tribunal-de-justica-do-rio–se-destaca-por-maior-produtividade-no-pais.

[10] Cita-se, a título de exemplo, o consumidor.gov.

[11] A predominância da interpretação judicial foi expressamente consignada nos artigos 985, parágrafo 2º, e 1.040, IV, do CPC.

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