Tribuna da Defensoria

O uso da reclamação constitucional coletiva para questionar o sistema prisional

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16 de abril de 2019, 8h05

Diante do já reconhecido estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro, há de se inquirir quais são as medidas judiciais cabíveis para a superação desse quadro. Este texto visa defender o manejo da reclamação constitucional coletiva como uma imprescindível solução a ser adotada pelas Defensorias Públicas.

Pontes de Miranda é apontado como o primeiro a sustentar que a reclamação teria natureza de ação[1], ideia desenvolvida posteriormente por outros autores que demonstram, por exemplo, ser medida judicial — e não administrativa — apta a coibir desobediências que partam inclusive de entes de outros Poderes, sem que haja quebra da independência ou da harmonia[2]. A reclamação só passou a gozar de status constitucional na Constituição da República de 1988, sendo previsto no artigo 102, inciso I, alínea “l”, com o objetivo de preservar a competência do Supremo Tribunal Federal e garantir a autoridade de suas decisões. Com o advento da Emenda Constitucional 45 e a introdução da súmula vinculante, a reclamação constitucional pode ser também manejada, vide o disposto no artigo 103-A, parágrafo 3º, Constituição da República, para assegurar o cumprimento do verbete vinculante.

Recentemente se viu novamente ampliado o manejo da citada ação constitucional pelo Código de Processo Civil de 2015, que revogou as disposições da Lei 8.038 e prevê em seu artigo 988: I – preservar a competência do tribunal; II – garantir a autoridade das decisões do tribunal; III – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência.

Porém, antes mesmo de discorrer sobre a possibilidade de a reclamação constitucional ser manejada coletivamente, ainda mais em uma quadra histórica marcada por incabível revisionismo, constitui uma premissa insuperável de qualquer estudo jurídico a manutenção do valor democrático contido no texto constitucional de 1988.

Neste texto, três são os aspectos de que devem ser apresentados, debatidos e, principalmente, depois conjugados para a defesa do pleno cabimento da modalidade coletiva da reclamação constitucional.

A uma, até mesmo como forma de superar um passado autoritário em que a força determinava o exercício do poder estatal, a nova carta magna rompeu com toda uma tradição estrutural normativa e, após enunciar em seu preâmbulo que se estava a instituir Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, iniciou o seu texto externando peremptoriamente que a dignidade da pessoa humana é o princípio estruturante da ordem sociopolítica brasileira, passando então a enunciar de forma exemplificativa a positivação de direitos e garantias fundamentais.

A duas, em razão do reconhecimento de que o regime democrático não se restringe ao governo da maioria, ao Poder Judiciário foi conferido imprescindível papel de garantidor dos direitos fundamentais às minorias e grupos vulneráveis — o papel contramajoritário. Como consequência dessa transformação, o Supremo Tribunal Federal, que outrora foi tido como um desconhecido por um dos seus integrantes[3], atualmente se mostra capaz de gerar ácidos debates na sociedade em razão de suas decisões.

A três, o texto constitucional justamente por demonstrar a sua real preocupação com a construção de uma sociedade mais justa e solidária, recrudescimento da previsão de assistência jurídica gratuita por meio de órgãos público, já disposta na Constituição de 1934, entretanto promovendo ampliação e aprofundamento no modelo salaried staff, escolhendo como modelo a ser adotado nacionalmente a Defensoria Pública do Rio de Janeiro[4], ou seja, de uma carreira oriunda do Ministério Público e com este completamente identificada em prerrogativas e vedações, já expressamente autônoma em diversos aspectos (extrapoder), contudo voltada à promoção dos diretos humanos e da defesa e proteção, de forma integral e gratuita, em todos os graus, das pessoas e grupos vulneráveis (contrapoder)[5].

Esses três fatores devem ser conjugados na construção argumentativa do cabimento da reclamação constitucional coletiva, dialogando, no caso concreto, com a decisão tomada em controle concentrado de constitucionalidade, embora em caráter liminar, na ADPF 347.

De fato, após ser devidamente provocado, o Supremo Tribunal Federal constatou a falha estrutural do sistema prisional brasileiro e que ecoa diuturnamente na vulneração dos direitos e garantias fundamentais dos presos[6], tendo reconhecido o estado de coisas inconstitucional.

Luís Carlos Valois aponta para a necessidade de este provimento jurisdicional proferido pelo STF na citada ADPF não se restringir ao aspecto simbólico, devendo, portanto, o ECI balizar todo o trabalho hermenêutico e repercutir nas políticas públicas, de forma a que se tome a solução prisional como a última possível:

“Assim, a declaração de ‘estado de coisas inconstitucionais’ deve servir como princípio para a interpretação e aplicação das leis relativas ao sistema penitenciário, a inconstitucionalidade de cada situação, verificado o caso específico, devendo ser sempre ressaltada, lembrada, para que realmente se faça da prisão ‘ultima ratio’”[7].

Muito embora a reclamação constitucional não possua previsão expressa para o seu cabimento coletivo, não resta dúvida de não existe qualquer óbice para a sua utilização nesse sentido. Ora, se a sua finalidade é a absorção da insegurança[8], conservar os precedentes do Estado democrático e a higidez constitucional[9], nada mais apropriado do que a sua utilização coletiva, em vez da atuação pulverizada em casos individuais. Ademais, em se tratando de questionamento do sistema prisional levado a cabo pela Defensoria Pública que tenha como paradigma a MC na ADPF 347, somente com o questionamento concentrado é que a falha estrutural própria do estado de coisas inconstitucional poderá ser superada.

Por outro lado, causaria estranheza que o STF tomasse decisões em controle concentrado, erga omnis, ou mesmo em processos coletivos, como mandados de segurança coletivos ou mandados de injunção coletivos ou, ainda, em processos originariamente individuais, mas que passaram por um processo de “objetificação”, como o recurso extraordinário com repercussão geral, e não admitisse que a decisão tomada nestes processos seja protegida por ação processual com amplitude similar, mas apenas timidamente com decisões em processos individuais.

Ademais, o manejo coletivo da reclamação constitucional reforçaria a prevalência dos direitos e garantias fundamentais e o relevantíssimo papel do Poder Judiciário no Estado democrático brasileiro, bem como se adequaria às realidades próprias das Defensorias Públicas, isto é, de precariedade na instituição de um dever estatal estabelecido em 5 de outubro de 1988 e que constitui a dimensão organizacional[10] da garantia do acesso à ordem jurídica justa e social justa. Não obstante tenha sido reconhecida a relevância da instituição na nova ordem constitucional, subsiste uma injustificável mora em sua integral implementação, o que, inclusive, gerou a confissão expressa na Emenda Constitucional 80.

Ainda com lastro na MC na ADPF 347 e considerando a notória resistência de determinados atores jurídicos em realizarem a audiência de custódia[11][12], o manejo coletivo da reclamação constitucional poderá se mostrar um instrumento idôneo para efetivação de direitos fundamentais, vide o ocorrido com a decisão proferida na Reclamação Constitucional 27.206, que, enfim, pôs fim à exclusão dos casos de violência doméstica do sistema de audiência de custódia no Rio de Janeiro. No HC coletivo 143.641, marco na superação do prisma individualista do Habeas Corpus através de uma leitura constitucional e sistêmica[13], ficou consignado pelo relator que “a ação coletiva emerge como sendo talvez a única solução viável para garantir o efetivo acesso destes à Justiça, em especial dos grupos mais vulneráveis do ponto de vista social e econômico”.

Neste viés, a reclamação constitucional coletiva se aproxima da tutela dos direitos coletivos e a tutela coletiva de direitos[14], atendendo ao preconizado na segunda onda de acesso à Justiça, da representação de interesses coletivos em juízo[15], promovendo maior efetividade, uniformidade e economia processual.

É chegado o momento de concluir. Da mesma forma como outrora medidas não previstas expressamente na legislação serviram para a tutela de direitos, vide a liminar em Habeas Corpus preventivo no caso histórico do governador Mauro Borges ou todo o desenvolvimento da doutrina brasileira do Habeas Corpus, mesmo o seu uso na tutela coletiva[16], as Defensorias Públicas, até por vivenciarem um período de limitação de recursos e por não ser essa carência escusa válida para a sua missão constitucional de promoção dos direitos humanos, devem manejar a modalidade coletiva da reclamação constitucional para questionar o sistema prisional, representando os indivíduos ou coletividades vulneráveis ou, ainda, em nome próprio na busca do respeito ao precedente que àqueles beneficie, como custos vulnerabilis[17].

Nunca é demais frisar que somente em razão da ousadia e da criatividade dos atores jurídicos comprometidos com a irrestrita defesa das liberdades públicas é que, perante as complexidades sociais, se mostra possível a construção constante de inesgotáveis soluções judiciais e extrajudiciais, para além das fronteiras positivadas[18].


[1] Comentários ao Código de Processo Civil, tit. V, p. 384.
[2] Marcelo Navarro Ribeiro Dantas. Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. 2000.
[3] BALEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
[4] ROCHA, Jorge Bheron. O Histórico do Arcabouço Normativo da Defensoria Pública: da Assistência Judiciária à Assistência Defensorial Internacional. In: Os Novos Atores da Justiça Penal. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2016.
[5] ROCHA, Jorge Bheron. Escolha Democrática: Defensoria Pública e Advocacia tem Missões, Funções e Membros Distintos. In Defensoria Pública, Democracia e Processo. Florianópolis: Empório do Direito. 2017.
[6]Reputa-se estado de coisas inconstitucional uma realidade violadora da Constituição, assim reconhecida por uma decisão judicial, originada de uma inconstitucionalidade por omissão qualificada por um bloqueio perene (falha estrutural), que conspurca direitos fundamentais de uma coletividade” (FONTELES, Samuel Sales. O inconstitucional estado de coisas: ficção e realidade. In: Revista de Processo Comparado, volume 7, 2018, versão digital.
[7] VALOIS, Luís Carlos. Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: D´Plácido, 2019. p. 22.
[8]O instituto da reclamação emerge como um instrumento de decisão no ordenamento jurídico, cuja finalidade é a absorção da insegurança, não no sentido de eliminar o conflito, porque o transforma, visto que as autoridades criarão sempre novas situações de incompatibilidade — invasão de competência e/ou desobediência — e, por essa rotatividade, a reclamação ingressa como via de proteção da Jurisdição Constitucional (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) no sistema, numa visão pragmática.” (GOÉS, Gisele Santos Fernandes. Reclamação Constitucional. In: DIDIER JÚNIOR, Fredie. (organizador). Ações Constitucionais. 2. ed. Salvador: Juspoivm, 2007. p. 468-469.
[9] LOBO, Arthur Mendes. Reclamação ao Supremo Tribunal Federal Proteção de Interesses Coletivos. Curitiba: Juruá, 2015.
[10] FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
[11] ROSA, Alexandre Moraes. Quando os juízes não querem fazer audiência de custódia? Disponível em: http://www.justificando.com/2019/02/20/quando-os-juizes-nao-querem-fazer-audiencia-de-custodia
[12] CNJ – Acompanhamento de Cumprimento de Decisão – Processos Administrativos 0000985-32.2019.2.00.0000 e 0000986-17.2019.2.00.0000
[13] Habeas Corpus Coletivo no Brasil: Uma Necessidade de Superação Definitiva do Prisma Individualista. Boletin Informativo Red de Justicia. Red Latinoamericana y del Caribe para la democratización de la Justicia. Número 3 / Septiembre 2018. p. 17-20.
[14] Título do seu renomado livro de Teori Zawaski: Processo Coletivo – Tutela e Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos – 7ª Ed. . São Paulo: Revista dos Tribunais. 2017.
[15] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
[16] STF HC 143.641.
[17] STF Reclamação 30.973.
[18] KETTERMANN, Patrícia. Defensoria Pública. Coleção Para Entender. Marcelo Semer (org.). São Paulo: Estúdio Editores, 2015.

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  • Brave

    é defensor público do Rio de Janeiro e mestre em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela Universidade Estácio de Sá.

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    é defensor público do Ceará, professor de Direito Penal e Processo Penal e Civil, doutorando em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (Unifor), mestre pela Universidade de Coimbra, Portugal (com estágio na Georg-August-Universität Göttingen, Alemanha) e pós-graduado em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará.

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