Opinião

Decreto que extingue conselhos federais não alcança Conselho Nacional de Saúde

Autores

  • Lenir Santos

    é advogada sanitarista doutora em saúde coletiva pela Unicamp professora colaboradora da Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa).

  • Francisco Funcia

    é economista coordenador de projetos da FGV-SP e mestre em Economia Política pela PUC-SP.

16 de abril de 2019, 6h51

1. Democracia participativa
A Constituição prevê em diversos dispositivos a participação da sociedade na administração pública como expressão viva do exercício da cidadania no Estado Democrático de Direito, em que o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos pelo voto direto e pela par­ticipação popular no exercício do poder político. Não basta votar; é preciso participar e ter voz. É democracia direta, participativa, com a sociedade atuando na formação de determinados atos de governo, expressa na Constituição em vários dispositivos, como:

  • participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos (artigo 10);
  • representação dos empregados nas discussões com os empregadores (artigo 11);
  • controle dos munícipes sobre as contas dos municípios (artigo 31, parágrafo 3º);
  • participação do usuário na administração pública (artigo 37, parágrafo 3º);
  • controle social sobre irregularidades econômico-finan­ceiras (artigo 74, parágrafo 2º);
  • gestão quadripartite da seguridade social (artigo 194, VII);
  • participação da comunidade no SUS (artigo 198, III, e artigo 77, parágrafo 3º, do ADCT);
  • participação popular na assistência social (artigo 204, II);
  • gestão democrática do ensino (artigo 206, VI);
  • proteção do patrimônio cultural (artigo 216, parágrafo 1º).

Leis infraconstitucionais cuidaram dessas disciplinas constitucionais, como a Lei 10.205, de 2001, que prevê a participação de entidades civis no controle da política do sangue (artigo 14, IX); a Lei 13.303, de 2016, artigo 22, que regulamenta as empresas estatais e exige que seus conselhos de admi­nistração tenham 25% de composição independente do Estado; a Lei 12.527, de 2011, que trata do acesso à informação; e a Lei 13.460, de 2017, dentre outras. O direito da população de controlar os atos dos administradores públicos é direito público subjetivo por expressar o constitucional direito de a vontade popular ser respeitada pelos poderes públicos.

No caso da saúde, o texto constitucional de 1988 enuncia, como uma das diretrizes do SUS, a “participação da comunidade”, que se efetiva mediante a sua integração em órgãos colegiados de­cisórios, como são os conselhos de saúde, quando o povo participa da formação de comandos legais imperativos, da construção de realidades exigidas pelo bem comum, desempenhando, em parceria com o Estado, o pa­pel que lhe cabe constitucionalmente no Estado Democrático de Direito. É a comunidade agindo no sentido das duas possibilidades de par­ticipação e cobrança: fornecendo subsídios às autoridades gesto­ras do sistema, propondo ou reivindicando medidas específicas de interesse da coletividade, atuando na tomada de decisão com a formulação de políticas de saúde e controlando, a posteriori, os atos praticados pelos administradores e ainda avaliando a execu­ção das políticas.

O Decreto 9.759, de 2019, interdita a democracia direta ao impor regramentos que a contrariam a participação social sob o pretexto de reorganizar os colegiados da administração pública federal, cometendo violação dos cânones da democracia, de princípios constitucionais da República, cujo poder emana do povo, que o exerce de forma representativa ou direta.

Trata-se de interdição da voz do povo, com a extinção maciça de colegiados federais e a permissão de sua recriação, desde que subordinados a parâmetros e critérios cerceadores da participação social, da garantia de legitimidade aos atos de governo, definição de políticas públicas, fiscalização de sua execução e transparência. Este artigo pretende analisá-lo à luz da participação social na saúde pública (SUS).

2. A participação da comunidade no SUS
No SUS, a participação do cidadão em sua gestão pressupõe o exercício da participação e do controle dos atos dos administradores públi­cos, uma vez que a Lei 8.142, de 1990, reza que os conselhos de saúde atuam na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde, inclusive nos aspectos econômicos e finan­ceiros (parágrafo 2º do artigo 1º), com a LC 141, de 2012, dispondo sobre as atribuições de controle, fiscalização e formação de atos do governo, tendo o próprio TCU elencado 17 delas no Manual de Gestão do SUS.

No tocante ao controle econômico e financeiro da aplicação dos recursos do SUS, a EC 29, de 2.000, no ADCT, artigo 77, parágrafo 3º, instituiu o controle social ao propugnar que os recursos da saúde serão destinados aos fundos de saúde, que será acompanhado e fiscalizado por conselho de saúde.

A participação da comunidade no SUS significa, toman­do emprestada a expressão utilizada por Britto[1], “o povo assumindo enquanto instância deliberativa, tanto quanto se assu­mem como instância deliberativa os ‘representantes eleitos’ por esse mesmo povo”.

3. O Conselho Nacional de Saúde (CNS)
O CNS, em acordo ao que discorre Santos & Carvalho[2], na obra Comentários à Lei Orgânica da Saúde,

“foi criado em 1937, pela lei n. 378, de 13 de janeiro, ar­tigo 67, que considerava os conselhos de saúde e o de educação como órgãos de cooperação do Ministério da Educação e Saúde Pública: “art. 67 Além do Conselho Nacional de Educação, assistirá o Ministério o Conselho Nacional de Saúde. A sua organização deveria observar os parâmetros do Conselho Nacional de Educação, nos termos da lei n. 174, de 6 de janeiro de 1936. Ambos os conselhos atuavam como órgãos consultivos dos poderes federais e estaduais em matéria afeta a sua área. Esta lei foi revogada, no tocante ao conselho, pela lei que criou em 1953, lei n. 1.920, de 25 de julho, após a extinção do Ministério da Educação e Saúde Pública, o Ministério da Educação e o da Saúde, ficando afeto a este último os problemas ati­nentes à saúde humana, e, em 1954. A partir desta data, todas as reformas, efetuadas pelos novos Governos quanto à organização da Presidência da República e seus Ministérios, mantiveram na estrutura do Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Saúde. (A reforma do atual governo, Medida Provisória n. 870, de 1º de janeiro de 2019, manteve na estrutura do Ministério da Saúde, o CNS.)[3]

Em 1990, o decreto n. 99.438, de 7 de julho de 1990, regulamentou as novas atribuições do CNS e definiu as en­tidades e órgãos que comporiam o novo plenário, com 30 membros.

Mais duas mudanças se seguiram, devendo ser destacada a do decreto n. 5.839, de 11 de julho de 2006, que atendeu as deliberações da 12ª Conferência Nacional de Saúde, passando o Conselho a ter a atribuição de es­colher seus próprios membros, mediante processo eleitoral inter­no e eleger ainda o seu presidente”.

São, pois, ao todo, 82 anos de existência do Conselho Nacional de Saúde.

4. As leis vigentes referentes aos conselhos de saúde
A partir da Constituição de 88, artigo 198, III, foi a Lei 8.080, a primeira a tratar dos conselhos, ainda que vetados seus artigos 11 e parágrafos, e o artigo 42, mas mantidos os artigos 12, 26 e 37 que deles tratavam. Em razão de negociação entre Executivo e a sociedade, foi editada a Lei 8.142, 1990, que dispôs sobre os conselhos e conferências de saúde.

Em 2011, a LC 141, de 2011, definiu diversas atribuições para os conselhos e para o CNS. Outras leis referem-se ao CNS, como a Lei 12.401, que determina a participação do CNS na Conitec; Lei 10.972, de 2004, que dispõe sobre a composição do Conselho de Administração da Hemobrás, artigo 10, V, do qual o CNS deve participar; Lei 9.961, de 2000, que determina a participação do CNS na Câmara de Saúde Suplementar. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) do CNS, ainda que criada pela Resolução CNS 196/96, foi referendada por leis que a mencionam no tocante às pesquisas com seres humanos.

5. Competências do Conselho Nacional de Saúde
Pelo que foi descrito acima, vê-se que são muitas as competências do CNS previstas em lei, especialmente a Lei 8.142, que define de modo nuclear a sua competência, composição e forma de atuação. Apesar de sua estrutura organizacional estar regulada no Decreto 5.839, de 2006, o qual observou esse feixe central de composição, competência e forma de decisão, isso deverá obrigatoriamente ser observado por qualquer decreto que venha a alterar o ora vigente, sob pena de ilegalidade.

São competências do CNS, fixadas em leis:

Lei 8.080, de 1990:

  • criar comissões intersetoriais de âmbito nacional, subordinadas ao Conselho Nacional de Saúde em diversas áreas, sendo obrigatórias as no campo da: alimentação e nutrição; saneamento e meio ambiente; vigilância e farmacoepidemiologia; ciência e tecnologia; saúde do trabalhador; integração entre serviços de saúde e instituições de ensino profissional e superior (artigo 12; 13; 14);
  • aprovar os critérios e valores para a remuneração de serviços e os parâmetros assistenciais (artigo 26, caput);
  • definir diretrizes para a elaboração dos planos de saúde (artigo 37);
  • participar da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (parágrafo 1º, do artigo 19Q).

Lei 8.142, de 1990:

  • definir estratégias para as políticas de saúde e realização do controle de sua execução nos aspectos econômicos e financeiros;
  • para os estados e municípios receberem as transferências da União, devem comprovar obrigatoriamente a existência de conselhos de saúde;
  • convocar, excepcionalmente, a Conferência Nacional de Saúde a cada quatro anos;
  • composição e caráter permanente e deliberativo.

Lei Complementar 141, de 2012 (são 14 atribuições, mas citaremos apenas algumas):

  • avaliar o relatório quadrimestral de gestão, devendo indicar medidas corretivas ao chefe do Poder Executivo, e aprovar ou reprovar o relatório anual de gestão;
  • fiscalizar o Fundo Nacional de Saúde;
  • recomendar aos órgãos in­tegrantes do Sistema Nacional de Auditoria (SNA) e da Comissão Corregedora Tripartite, a realização de audi­torias e avaliações especiais;
  • deliberar sobre as despesas com saneamento básico de domicílios ou de pequenas comunidades;
  • deliberar sobre as diretrizes para o estabelecimento de prioridades para as ações e serviços públicos de saúde;
  • deliberar sobre a metodologia pactuada na CIT para definição dos critérios e montantes a serem transferidos pelo Ministério da Saúde para estados e municípios.

Decreto 7.508, de 2011 (regulamenta a lei orgânica da saúde)

  • monitorar a execução do contrato organizativo da ação pública da saúde quanto ao cumprimento das obriga­ções do Ministério da saúde. 

Lei 10.972, de 2004: integrar o Conselho de Administração da Hemobrás

Lei 9.961, de 2000: integrar a Câmara de Saúde Suplementar.

6. Da composição do CNS
A composição do CNS, que deve ser compatível com as suas atribuições, contará, obrigatoriamente, por força da Lei 8.142, de 1990, com representação dos segmentos de usuários dos serviços do SUS, trabalhadores de saúde, prestadores de serviços e governo.

Esta composição deve obrigatoriamente considerar 50% de membros-usuários de serviços em relação aos demais segmentos, devendo, pois, ser um conselho que tenha capacidade de atender a determinação constitucional de o SUS, em sua organização, ser capaz de cumprir com seus deveres constitucionais e legais.

7. Periodicidade e tempo de reuniões
O CNS, em razão de suas atribuições, terá que se reunir em periodicidade e tempo de reunião compatíveis com suas obrigações legais.

8. O Decreto 9.759, de 2019 e a interdição da democracia direta
O Decreto 9.759, de 2019, que extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal, editado em 11 de abril, define o prazo do dia 28 de junho para a extinção dos colegiados que, nos termos do seu artigo 1º, tenham sido instituídos por decreto, incluídos aqueles mencionados em leis nas quais não conste a indicação de suas competências ou dos membros que o compõem, ato normativo inferior a decreto e ato de outro colegiado.

No tocante ao CNS, ainda que tenha sido criado por lei específica desde 1937 — hoje amparado na MP 870, de 2019 — e a sua estrutura organizacional esteja prevista no Decreto 5.839, de 2006, há menção de sua existência na Constituição, inciso III do artigo 198; no ADCT, artigo 77, parágrafo 3º; na Lei 8.080, de 1990; na Lei 8.142, sua lei nuclear. As suas competências estão também definidas em lei, como a Lei 8.080, artigos 12, 26 e 37; Lei Complementar 141, de 2012, dentre outras, sendo a Lei 8.142, de 1990, a que define sua estrutura essencial: caráter deliberativo e permanente, composição e competência.

Nesse sentido, o núcleo de sua atuação, composição e competência está regulado na Lei 8.142, de 1990; outras competências, previstas em outras leis, como as da LC 141, de 2012, exigem que qualquer decreto de estrutura do CNS não desborde desses dispositivos legais. O conselho atua nas políticas de saúde, que abarca uma gama imensa de ações pelo fato de existirem 47 políticas de saúde em âmbito nacional.

Por todo o exposto, conclui-se que o Decreto 9.759, de 2019, não alcança o Conselho Nacional de Saúde pelo fato de sua existência decorrer de lei, com fundamento na Constituição, tanto quanto suas competências e composição não poder admitir se adequar aos ditames do referido decreto, por incompatibilidade, como o número de membros, o prazo de duração das reuniões e sua periodicidade.

Essas competências e composição legais do CNS se irradiam nas normas regulamentares, não permitindo que decreto dispondo sobre a sua estrutura organizativa, definindo competências e composição, desbordem dessas normas. Não cabe a um decreto interditar a democracia direta estabelecida na Constituição Federal e nas respectivas normas legais do SUS. Se constituiria ilegal submeter o CNS aos ditames do recente decreto que o extinguiria para depois submetê-lo a novo decreto limitador do pleno exercício da participação da comunidade no SUS, o que representaria grave risco ao interesse público.

Além do mais, ainda que o decreto não alcance o CNS, entendemos que o mesmo fere disposições constitucionais de participação social, por ser limitador de seu funcionamento. Não basta a existência de conselhos se a sua organização violar o exercício da democracia direta, participativa, prevista na Constituição, como no parágrafo 3º do artigo 37 e as demais normas citadas no presente artigo; ele interdita a participação da sociedade na gestão pública, ferindo a Constituição que a prevê em diversos dispositivos.


[1] BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre controle social do poder e participação popular. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, jul-set, 1992.
[2] SANTOS, lenir; CARVALHO, Guido Ivan. Comentários à Lei Orgânica da Saúde, 5ª edição. Campinas: Saberes Editora, 2018.
[3] Medida Provisória 870, de 1/1/2019, que dispõe sobre a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, artigo 48. Integram a estrutura básica do Ministério da Saúde: I – o Conselho Nacional de Saúde.

Autores

  • Brave

    é advogada, especialista em Direito Sanitário pela Universidade de São Paulo (USP), doutora em Saúde Pública pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente do Idisa — Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

  • Brave

    é economista, coordenador de projetos da FGV-SP e mestre em Economia Política pela PUC-SP.

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