Observatório Constitucional

Omissão normativa ou excesso institucional? Mais um dilema do Supremo

Autor

  • Marcelo Casseb Continentino

    é doutor em Direito pela UnB/Università degli Studi di Firenze professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Ufersa procurador do estado de Pernambuco advogado e sócio efetivo do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).

13 de abril de 2019, 8h05

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O Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucional por Omissão (ADO 26) e do Mandado de Injunção (MI 4733), em que examina a alegação de omissão inconstitucional oriunda do Congresso Nacional que, até a presente data, não teria criminalizado a prática de conduta homotransfóbica.

Muitos aspectos sensíveis envolvem esse julgamento, não obstante haja largo consenso sobre a inadmissibilidade de práticas discriminatórias em face da orientação sexual de cada pessoa ou de sua identidade de gênero. Assim não se espera outra decisão do STF senão o mais completo e inequívoco rechaço às condutas cuja prática se busca coibir através da jurisdição constitucional.

Contudo, o aspecto que nos interessa na presente análise reside na dimensão processual constitucional, mais precisamente nos limites, possibilidades e riscos da própria ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção nesse caso em apreciação pelo STF. Sobretudo, quer-se destacar a inovação que, a prevalecer o voto do ministro Celso de Mello, ocorrerá na técnica decisória em sede de ADO.

É preciso ressaltar que, embora o STF tenha optado por julgar conjuntamente a ADO 26 e o MI 4733, embora unidos pela mesma razão, a inércia do legislador quanto à criminalização da homotransfobia, os procedimentos da ADO e do MI são distintos entre si quanto à natureza processual, constitucional e política.

Do ponto de vista histórico, ambas as ações têm genealogia diferente, ainda que voltadas ao combate da secular e contumaz “inatuação” constitucional brasileira. A ADO[1] inspira-se decisivamente na Constituição de Portugal[2], ao passo que o MI, embora não tenha suas raízes bem assentadas doutrinariamente, aproxima-se da tradição anglo-americana do direito (equity, writ of inuction)[3].

ADO e MI diferenciam-se, também, quanto à natureza de cada um. A ADO é processo de natureza objetiva, isto é, não se volta à tutela das situações subjetivas e concretas nem se deixa reger pela integralidade das regras do processo civil ordinário. Antes, seu escopo é a defesa da ordem jurídica constitucional, razão por que responde a outras normas e teorias processuais[4].

Já o MI é ação constitucional essencialmente voltada à tutela de situações subjetivas do cidadão, um procedimento de garantia institucional destinado à tutela subjetiva dos direitos da pessoa e de suas liberdades constitucionais, que deve seguir o rito sumaríssimo dos remédios constitucionais de emergência, a exemplo do mandado de segurança e do habeas data.

Outro ponto importante a apartar as duas ações. Enquanto o MI é um processo subjetivo de garantias dos direitos fundamentais do cidadão, podendo por consequência ser impetrado por qualquer pessoa, a ADO constitui processo de natureza objetiva, de modo que apenas o apertado rol de legitimados, previsto no art. 103 da Constituição Federal, pode manejá-la.

Deriva da legitimidade processual ativa que, no primeiro caso, a decisão, em princípio, é restrita à parte autora; no segundo, seus efeitos são gerais e contra todos. O MI e ADO, pois, têm índoles bem diversas, o que se desdobra nos efeitos da própria decisão.

O MI, consoante se extrai da própria Constituição, art. 5, inciso LXXI, há de colmatar a falta de norma regulamentadora que obsta o exercício dos direitos e liberdades constitucionais, devendo a ordem de injunção propiciar o imediato exercício dos direitos obstados.

Já a ADO tem vocação constitucional diversa, porquanto, em princípio, não se destina à imediata solução da omissão normativa inconstitucional. As decisões, nela, proferidas têm outra natureza, a depender da autoridade em face da qual se propõe a ação. Conforme disposto no art. 103, § 2, se a autoridade a quem se reputa a omissão é executiva, a decisão a ela determinará que adote as providências cabíveis no prazo de trinta dias, hipótese em que assume natureza mandamental; se a autoridade inerte é legislativa, a decisão judicial dará ciência ao órgão para adoção das providências necessárias sem fixação de prazo; a natureza da decisão será declaratória da inconstitucionalidade omissiva.

Não obstante, por muito tempo, o STF terminou por confundir esses dois institutos em sua jurisprudência.

Em relação ao MI, desde o precedente do MI 107, de 1989, o STF limitou-o a uma ação declaratória da inconstitucionalidade por omissão, reduzindo-o em seu escopo e equiparando-o à ADO. O MI, a despeito do teor da Constituição, não se prestou a viabilizar o exercício do direito constitucional não regulamentado no caso concreto. Configurou-se a denominada tese não concretista dos efeitos da decisão do MI.

Essa tese foi reafirmada no MI 20, em que o STF decidiu que o direito de greve do servidor público constitui norma de eficácia limitada, razão pela qual seria imprescindível a edição de lei federal para seu regular exercício. Destarte, julgou procedente o pedido para reconhecer o Congresso Nacional em mora, comunicando-lhe o teor da decisão para que tomasse as providências indispensáveis ao exercício do direito de greve[5].

A superação da tese não concretista ocorreu com o julgamento dos MIs 670, 708 e 712, todos sobre o exercício do direito de greve de servidor público, quando o STF autorizou sob certas condições o exercício da greve mesmo sem a edição da lei específica. Adotou-se a “tese concretista”, conferindo-se ao MI o efeito que se esperava desde a Constituinte[6].

Do ponto de vista da ADO, dada a literalidade da Constituição, o efeito da decisão é dar ciência ao Poder Legislativo para que adote as cautelas necessárias para suprir a omissão normativa.

Houve, porém, com o caso da criação de novos municípios uma significativa inovação na jurisprudência do STF. A Corte procedeu ao julgamento um conjunto de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 2240, 3316, 3489) e de uma ação direta por omissão (ADI 3682), todas relacionadas com a norma do art. 18, § 4, da Constituição, porquanto o Congresso Nacional não editou a lei complementar reclamada constitucionalmente desde a edição da Emenda 15, de 1996.

Sobre as ADIs, o STF declarou a inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade das respectivas leis estaduais criadoras de Município, mantendo porém sua validade pelo prazo de vinte e quatro meses. Quanto à omissão (ADI 3682), o STF declarou o estado de mora do Congresso Nacional e fixou o lapso temporal de dezoito meses para que adotasse as providências legislativas necessárias ao cumprimento do dever constitucional imposto do art. 18, § 4, da Constituição.

A decisão representou uma grande inovação no combate à inconstitucionalidade por omissão, algo similar à técnica alemã do “apelo ao legislador”[7]. A novidade residiria na possibilidade de se estabelecer um “lapso de tempo razoável” para fixação de um parâmetro temporal ao legislador, após cujo transcurso os efeitos da decisão de inconstitucionalidade se operariam.

Até aqui, portanto, a jurisprudência sobre a ADO e o MI, de maneira geral, vinha trilhando caminhos próprios.

Mas, e agora? Com os votos até então proferidos na ADO 26 e no MI 4733, parece que o STF voltará a confundi-las novamente, mas sob outra perspectiva.

A determinação do julgamento conjunto da ADO 26 e do MI 4733 sobre a criminalização da homotransfobia parece sugerir essa nova mudança de rumo. O min. Celso de Mello profere voto inédito, ao – no âmbito da ADO – determinar que, de imediato (com a publicação do acórdão), seja colmatada a omissão inconstitucional relativa à não criminalização. Observe-se que a tônica da decisão não é mais determinar a providência cabível, ainda que dentro de uma margem de tempo razoável (“apelo ao legislador”), mas a de declarar a inconstitucionalidade para preencher o vazio normativo imediatamente, até que o legislador venha a regulamentar a matéria.

Sem dúvida, essa é uma decisão que projeta o STF em novo patamar na difícil e tensionada relação entre os três poderes. O Supremo, em sede de ADO, formula a solução jurídica a viabilizar a aplicação da norma constitucional, como se estivesse julgando o MI.

A questão de fundo, o mérito da criminalização da homotransfobia, sobre a qual reina amplo consenso, não mais se afigura o ponto crítico da decisão.

O que realmente se deve discutir, nesse contexto institucional das relações entre poderes, a nosso ver, é até que ponto, para um Supremo já tão bombardeado quanto à legitimidade de várias de suas decisões, acusado de substituir-se ao legislativo e de invadir esferas de competências alheias, seria compreensível assumir mais esse ônus. Configuraria essa decisão mais um capítulo dessa série de decisões excessivas do Poder Judiciário?

Em particular, em se tratando de tema afeto à matéria penal, onde reina o princípio da legalidade estrita, decisão judicial que, na prática, termina por considerar típica conduta (que por mais reprovável que seja), que antes não era, certamente, suscita a crítica severa, por mais cuidadosa e sofisticada que tenha sido a fundamentação do min. Celso de Mello[8].

É possível, assim, admitir que de uma só vez esteja o Supremo, por essa decisão, extrapolando as recomendações de dois dos grandes pensadores de nossas instituições políticas e constitucionais: de Kelsen, quando justificava que o tribunal constitucional deveria ser um “legislador negativo”, jamais “legislador positivo”; de Montesquieu, ao advertir que “se o poder de julgar não for separado do poder legislativo (…) o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador”[9].

Concluindo, para além da questão da criminalização da homotransfobia, o que o STF também precisa enfrentar, na ADO 26 e no MI 4733, é a sua própria autocompreensão, refletir criticamente sobre seu papel e sua história institucional bem como sobre a integridade de suas decisões. Na verdade, esse vem sendo um dos principais clamores da sociedade em relação ao guardião maior da Constituição, e a ausência da autocrítica a causa maior de muitos dos desacertos. E a Constituição Federal de 1988, por óbvio, seria um excelente ponto de partida.


[1] Cf. CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão. In: Processo nos Tribunais Superiores (Coord. Marcelo Andrade Féres e Paulo Gustavo M. Carvalho). São Paulo: Saraiva, 2006, p. 437-469.
[2] A Constituição de Portugal, no art. 279, prevê: “Quando a Constituição não estiver a ser cumprida por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais, o Conselho da Revolução poderá recomendar aos órgãos legislativos competentes que as emitam em tempo razoável”.
[3] Sobre sua origem histórica, ver: CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Uma reflexão histórica sobre o mandado de injunção e a eficácia subjetiva das decisões. In: Mandado de Injunção: Estudos sobre sua Regulamentação (Coord. Gilmar Ferreira Mendes et ali). São Paulo: Saraiva, 2013, p. 57-94.
[4] Sobre esse tema, vide: MEDINA, Marcelo Borges de Mattos. Elementos para uma teoria do processo objetivo de defesa da constituição. In: Processo nos Tribunais Superiores (Coord. Marcelo Andrade Féres e Paulo Gustavo M. Carvalho). São Paulo: Saraiva, 2006, p. 339-361.
[5] Houve julgamentos específicos em que o STF ensaiou mudanças de rumo, a exemplo do MI 232, de 1994, quando decidiu pela auto-aplicabilidade da norma do art. 195, § 7, da Constituição, para assegurar a imunidade tributária para entidades filantrópicas.
[6] Houve, posteriormente, variações por parte do STF, a exemplo do MI 695, de 2007, em que reconheceu a mora legislativa do Congresso e notificou-o para regulamentar o direito ao aviso prévio proporcional, e do MI 721, também de 2007, no qual determinou que a contagem de tempo especial para aposentadoria de servidora pública fosse realizada mediante aplicação da legislação do regime geral de previdência.

[7] Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: controle de normas no Brasil e na Alemanha. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 245-246.
[8] Conforme sustentou o min. Celso de Mello: “…estou a propor, como anteriormente acentuei, limita-se à mera subsunção de condutas homotransfóbicas aos diversos preceitos primários de incriminação definidos em legislação penal já existente (a Lei nº 7.716/89, no caso), na medida em que atos de homofobia e de transfobia constituem concretas manifestações de racismo, compreendido este em sua dimensão social: o denominado racismo social”.
[9] MONTESQUIEU. O espírito das leis. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 168.

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    é procurador do estado de Pernambuco, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco (UPE) e doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB)/Università degli Studi di Firenze.

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