Opinião

O voluntarismo judicial e as regras do jogo: a advertência de Paulo Bonavides

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13 de abril de 2019, 6h18

1. Introdução
Caríssimos leitores do Consultor Jurídico, este é o terceiro texto de uma breve e simples trilogia na qual estou abordando o tema do “voluntarismo judicial”.

No presente texto, rendo uma homenagem especial ao professor Paulo Bonavides, focando o caráter vanguardista de sua obra com relação a esse aspecto da função jurisdicional e, portanto, da decisão judicial. Isso não significa que outros juristas brasileiros também não tenham abordado o tema com obras de fôlego em período mais recente, apresentando-se como referências atuais sobre o tema. Entre todos, cito o professor Lenio Streck e sua vigorosa obra em torno da jurisdição constitucional, da hermenêutica e da decisão judicial.

Contudo, agora, um pouco desse brilhante constitucionalista brasileiro, que desenvolveu sua extensa atividade de professor entre o Brasil e a Europa.

2. A advertência de Paulo Bonavides
Paulo Bonavides, em seu Curso de Direito Constitucional, lançado em 1982 com o título Direito Constitucional, citando a bibliografia e a experiência germânicas, afirmava que as normas constitucionais em geral, e aquelas alusivas aos direitos fundamentais em particular, não poderiam ser consideradas pelo aplicador da lei mediante o emprego do silogismo lógico nem interpretadas a partir da visão clássica de C. F. Savigny e seus métodos hermenêuticos.

Segundo ele, em linha com as mesmas conclusões verberadas por Bobbio e Barroso, cujas ideias foram mencionadas no segundo texto da trilogia, esse tipo de norma requer outra mentalidade no seu trato, a que ele se referiu como “nova hermenêutica”, sobretudo porque o desafio que elas põem é no sentido de sua concretização, não, propriamente, de sua interpretação: “[…] há na Constituição normas que se interpretam e normas que se concretizam. A distinção é relevante desde o aparecimento da Nova Hermenêutica, que introduziu o conceito novo de concretização, peculiar à interpretação de boa parte da Constituição, nomeadamente dos direitos fundamentais e das cláusulas abstratas genéricas do texto constitucional”[1].

Para o professor Paulo, essa reviravolta teria origem na necessidade de substituir a própria visão da Constituição que, de documento formal, cristalizador dos valores incontestados do Estado liberal dos séculos XVIII e XIX, deveria passar a documento político vivo, em constante atualização, cuja interpretação e concretização estariam vinculadas à busca pelo seu sentido mais profundo, como instrumento destinado “a estabelecer a adequação rigorosa do Direito com a Sociedade; do Estado com a legitimidade que lhe serve de fundamento; da ordem governativa com os valores, as exigência, as necessidades do meio social, onde essa ordem atua dinamicamente, num processo de mútua reciprocidade e constantes prestações e contraprestações, características de todo sistema político com base no equilíbrio entre governantes e governados”[2].

Conforme as lições do eminente professor, o Estado liberal “professava o culto da legalidade, da Constituição sacrossanta”, porém esta já não era a visão política do século XX, uma vez que o “colapso das estruturas liberais, determinou em larga parte o observado declínio”[3] desse Direito Constitucional e dessa maneira formal de pensar o Direito.

Em tais termos, ganhava cada vez mais espaço a visão da Constituição para além de um conjunto de normas de cunho jurídico, mas de normas cuja principal marca seria o seu caráter político, pois são elas que desenham toda a estrutura política do Estado e que trazem o catálogo de direitos fundamentais. Normas com essa marca, enfatiza o professor, não podem ficar circunscritas a esquemas formais de interpretação.

Porém, ele advertia, que, enquanto não for elaborada, amadurecida e absorvida a “nova hermenêutica”, essa nova visão da Constituição continuará sujeita aos esquemas formais de interpretação do Direito e, portanto, totalmente refém daquela que é a marca dessa maneira clássica de pensar: o voluntarismo judicial.

E essa advertência foi feita ainda em maior extensão. Diz Paulo Bonavides que a nova visão da Constituição e do Direito Constitucional já estaria instalada e amadurecida, mas a “nova hermenêutica”, que deveria acompanhá-la, não, o que estaria trazendo mudanças profundas. Importante conferir suas palavras: “Na vida do direito, a interpretação, pois, já não se volve para a vontade do legislador ou da lei, senão que se entrega à vontade do intérprete ou do juiz, num Estado que deixa assim de ser o Estado de Direito clássico para se converter em Estado de justiça, único onde é fácil a união do jurídico com o social, precisamente por ocorrer o holocausto do primeiro ao segundo, com o Direito Constitucional se transformando numa Sociologia ou Jurisprudência da Constituição”[4].

O resultado, e aqui o professor refere-se à realidade alemã, foi o desenvolvimento de uma jurisprudência casuísta, “empobrecendo assim a consistência da Constituição normativa ou conduzindo-a a um estado de crise e carência que se avizinha da desintegração”[5].

Assim, sejam os inaptos métodos clássicos de interpretação, seja a nova hermenêutica ainda em desenvolvimento e, portanto, ainda não amadurecida em sua missão de tratar da nova visão da Constituição, o certo é que, segundo Paulo Bonavides, ambas têm gerado “incerteza ou insegurança manifesta com respeito ao Direito Constitucional, às suas formas, institutos, técnicas e conceitos”[6]. E arremata o professor: “Presume-se, com a apreensão de todos, que o juiz, investido de poderes decisórios extremamente dilatados, usurpe a função constituinte do povo ou da representação democrática legítima”[7].

Por nova hermenêutica deve ser compreendido o conjunto de teorias que surgiram a partir dos anos 1950 e que se propuseram a vencer dois grandes desafios intransponíveis para o positivismo e seus esquemas formais clássicos de aplicação da lei por subsunção e de sua interpretação através dos métodos clássicos: a) de um lado, promover a efetivação ou a concretização dos direitos fundamentais; b) de outro, alcançar o objetivo descrito no item anterior sem gerar mais voluntarismo judicial.

No contexto do Direito Constitucional brasileiro dos anos 1980 e 1990, a advertência de Paulo Bonavides fora lançada: a efetivação da Constituição estaria sendo alcançada, porém muito mais voluntarismo judicial estaria sendo gerado.

Ele antecipou no Brasil o debate sobre a necessidade de efetivação das normas constitucionais, com todo o entusiasmo e rigor teórico que lhe são peculiares. Contudo, não deixou de advertir: para evitar o caos judiciário, seria preciso não esquecer do problema do voluntarismo judicial, que, agora, com os textos constitucionais cheios de normas-princípios, teria a tendência de ser cada vez mais acentuado.

E mais: a nova hermenêutica não estava dando conta de vencê-lo, muito pelo contrário. Ao tratar da falha da nova hermenêutica, Paulo Bonavides chega a falar em desorientação e perplexidade na atividade dos intérpretes (juízes e tribunais), os quais “continuamente se arredam do texto para abraçar-se, em face das peculiaridades de cada situação, a um sentido concreto da norma, ou a uma valorização da regra normativa ou ainda a uma pretensa interpretação conforme a constituição, esse largo teto debaixo do qual se abrigam todas as soluções possíveis e imprevisíveis”[8].

O eminente professor paraibano, contudo, parece não ter sido ouvido. Ou melhor, parecer não ter sido compreendido por muitos.

Talvez seja porque sempre caminhou à frente do seu tempo.

3. Conclusões
Não basta compreender as transformações do Direito Constitucional, não basta vislumbrar que o Poder Judiciário pode operar importantes transformações sociais a partir da efetivação dos direitos fundamentais.

É preciso voltarmos nossa atenção também para os juízes e tribunais, indagarmo-nos como construirão as decisões judiciais nessa nova visão da Constituição e do Direito Constitucional, como farão a travessia dos fatos que lhes são apresentados para aqueles que comporão sua própria narrativa, como farão a travessia dos enunciados normativos para a norma jurídica do caso concreto[9].

O voluntarismo judicial não pode ser a regra máxima do Direito, porque isso é a sua própria negação. Contudo, se Kelsen estiver mesmo correto e não houver nada a fazer, só nos resta aplaudir e nos prepararmos para lidar com o que vem para além do voluntarismo: o iluminismo judicial do STF e seu papel de vanguarda e o pragmatismo judicial sem limites dos juízes criminais.


[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 544.
[2] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 434.
[3] BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 434.
[4] BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 435.
[5] BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 442.
[6] BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 443.
[7] BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 443.
[8] BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 442.
[9] Para compreender a construção de sentido dos enunciados normativos e dos enunciados factuais a partir da ideia de “percurso gerador de sentido”, consultar: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. São Paulo: 2018, Noeses, p.192. A teoria da decisão judicial é desenvolvida em: BEZERRA NETO, Bianor Arruda. O que define um julgamento e quais os limites dos juízes. São Paulo: Noeses, 2017.

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