Opinião

Julgamento antecipado do mérito em ação de improbidade: um problema atual

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12 de abril de 2019, 9h54

Spacca
No anterior Código de Processo Civil de 1973, o artigo 131 atribuía ao juízo o chamado “livre” convencimento motivado, dando-lhe margem mais ou menos flexível para valoração das provas necessárias à compreensão dos fatos.

Como digressão, nunca compreendemos “essa tal liberdade” como uma liberdade de fato. Há margem de desenvoltura, sim, para sopesamento, o que não implica dizer ausência de limites. A independência judicial sempre foi uma independência em razão da lei, e não da lei.

Daí nossa percepção de que essa flexibilidade na valoração somente quis dizer a possibilidade de o juízo avaliar as provas sem regras apriorísticas[1], rompendo com o modelo tarifado como regra — como anotou Lenio Streck em justificativa apresentada ainda na fase legislativa de proposição que viria a se tornar o CPC/2015[2].

Foi essa, então, a nosso ver, a simbologia contida na supressão da expressão “livre” do atual artigo 371 do CPC: rememorar que há regramentos rígidos a nortear a valoração, dentre eles avultando o contraditório em sua dimensão substancial.

Mas o que seria “contraditório substancial”? Já há algum tempo, abandonou-se uma visão retrógrada de identificação do contraditório com o direito de manifestação. Bem mais que isso, o contraditório deve assegurar à parte o conhecimento prévio sobre o que deva se manifestar e, ainda, meios efetivos capazes de possibilitar que possa ela influenciar — Einwirkungsmöglichkeit[3] — a decisão judicial.

Inegavelmente, são as provas via privilegiada do exercício dessa influência, devendo ser assegurado às partes o direito de (i) requerer a sua produção, (ii) participar de sua realização, (iii) falar sobre seus resultados e (iv) ter esses mesmos resultados, bem assim as manifestações a seu respeito, examinados judicialmente[4].

Foi a essa noção de contraditório que o mesmo CPC fez remissão quando positivou, em seu artigo 372, a admissibilidade da prova emprestada, autorizando a utilização, em determinado processo, de prova licitamente produzida noutro feito[5] — desde que, frise-se, “observado o contraditório”.

Discussão não tardou a surgir sobre se o contraditório a que se referiu a norma haveria de ser assegurado apenas no processo em que se fosse utilizar a prova emprestada ou se o contraditório seria exigível, também, no processo em que essa houvesse sido produzida. Embora doutrina majoritária[6] tenha se firmado no sentido da segunda posição, a jurisprudência caminhou em direção oposta, pela primeira posição[7].

Essa dicotomia já seria suficiente para atrair atenção para o tema, mas inspirou, neste espaço dedicado à improbidade administrativa, reflexões bem mais preocupantes.

É que, não raro, em sede de ações de improbidade há colheita unilateral de elementos por parte do Ministério Público em procedimentos preliminares, como é o caso, por exemplo, do inquérito civil público, expedientes esses que, como sabido, não coadunam com o contraditório[8].

Finalmente surge, então, a pergunta que inspirou o escrito desta semana: as provas emprestadas de inquérito civil público, unilateralmente produzidas, bastariam para firmar a convicção do Juízo a ponto de autorizar julgamento antecipado do mérito, condenatório, com base no artigo 355, I, do CPC/2015? De nossa parte, e à vista do contraditório substancial, decididamente, não.

Em ações de improbidade, quando houver provas eventualmente colhidas pelo Ministério Público em procedimento inquisitivo prévio, no qual não é assegurado o contraditório, entendemos que é absolutamente indispensável que se garanta à parte requerida oportunidade processual, ou bem para repetir a produção daquelas provas ou, então, para que se produzam provas outras, com o escopo de àquelas fazer frente — “no inquérito civil, invariavelmente o contraditório não é respeitado, de forma a serem repetidas em juízo todas as provas já produzidas em tal procedimento”[9].

Mais bem explicando, em nosso entender as provas produzidas em procedimento inquisitorial prévio têm como escopo fundamentar o ajuizamento de ação de improbidade, mas, jamais, isoladamente consideradas, basear condenação[10], senão quando repetidas em juízo sob o crivo do contraditório. Não por outro motivo se previu, no artigo 17, parágrafo 3º, II, do projeto da nova Lei de Improbidade (PL 10.887/2018, atualmente em curso na Câmara dos Deputados), que a petição inicial será instruída com documentos “que contenham indícios suficientes da existência do ato de improbidade”. Trata-se, pois, de elementos indiciários, cuja corroboração probatória ao longo da instrução deverá ser indispensável, com o que particularmente concorda Hugo Mazzili:

Como as investigações nele [inquérito civil público] produzidas têm caráter inquisitivo, é relativo o valor dos elementos de convicção hauridos no inquérito civil, da mesma forma que ocorre com o inquérito policial. Assim, pode haver aproveitamento daquilo que seja harmônico com a instrução judicial, não daquilo que tenha sido infirmado por provas colhidas sob o contraditório[11].

Provas colhidas em procedimento prévio, no qual não se assegura o contraditório, não podem funcionar como elemento pleno de convicção e nem se prestam a justificar julgamento antecipado condenatório. Aliás, e bem ao contrário, aquelas mesmas provas, ao invés de autorizar o julgamento antecipado, exigiriam, com muito maior força, o prosseguimento do feito à fase instrutória, fosse para repetição das provas — agora sob o pálio do contraditório —, fosse para admitir a produção de provas outras, em contraposição àquelas.

Em outras palavras, se revela paradoxal a decisão judicial que pretenda buscar apoio em provas tomadas emprestadas de procedimento no qual inobservado o contraditório para justificar a perpetuação da negativa ao contraditório na esfera judicial. Em verdade, a instrução probatória no bojo do processo, sim, é que teria o condão de colmatar a lacuna que não deixa de macular a coleta pré-processual.

Se é verdade que esse entendimento guiou importantes julgados, antigos e recentes, da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça[12], causam preocupação arestos novos emanados da 1ª Turma daquela corte, que têm chancelado o julgamento antecipado condenatório, em parte sob o patrocínio da famigerada Súmula 7 do tribunal.

Volvemos ao início: na atual quadra, vivenciamos um contraditório em dimensão hipertrofiada, contraditório esse a tornar ilícitas provas produzidas à completa revelia da parte interessada e em cerceamento de sua ampla defesa.

Tudo isso somado, a conclusão que propomos ao fim deste breve escrito é no sentido de que, em sede de ação de improbidade, o contraditório imposto como condição pelo artigo 372 inviabiliza o julgamento antecipado condenatório com fulcro no artigo 355, I, ambos do CPC de 2015. É igualmente nesse sentido a interpretação que extraímos dos parágrafos 3º, II, e 8º, I, do artigo 17 do PL 10.887/2018.


[1] AROCA, Juan Montero. Princípios sobre a prova in: Revista IOB 45/107, p. 112-113.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Art. 371. In: STRECK, Lenio Luiz et. al. (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 570.
[3] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho. Princípio do Contraditório: tendências de mudança na sua aplicação. In: Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas n. 28, jan./jun. 2009, p. 177-206.
[4] DIDIER JR., Fredie et. al. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 47.
[5] Como não há ressalva por parte do artigo 372, o processo de que se importa a prova pode perfeitamente possuir natureza cível, trabalhista, criminal, administrativa ou arbitral, desde que inexista sigilo – a não ser quando as partes sejam as mesmas do feito original. STRECK, Lenio Luiz. Art. 372. In: STRECK, Lenio Luiz et. al. (Orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 575.
[6] É a posição, entre outros, de WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et. al. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 646; CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 238; NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 16ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 1.080; e DIDIER JR., Fredie et. al. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2. 11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 134.
[7] Vale conferir os acórdãos proferidos pelo STF nas Questões de Ordem no Inquérito 2.424 e pelo STJ no MS 17.535.
[8] “No inquérito civil, invariavelmente o contraditório não é respeitado, de forma a serem repetidas em juízo todas as provas já produzidas em tal procedimento.” NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 670-671.
[9] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 670-671.
[10] A vedação ao julgamento antecipado apenas quando condenatório é corroborada, ademais, pelo § 8º, I, do artigo 17 do PL n. 10.887/2018: “Oferecida a contestação e, se for o caso, ouvido o autor, o juiz: I – procederá ao julgamento conforme o estado do processo, levando em conta a eventual manifesta inexistência do ato de improbidade;”
[11] MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 20ªed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 422.
[12] REsp 1687707/MA, rel. Min. Herman Benjamin, DJ 19/12/2017; REsp 1.554.897, rel. Min. Assusete Magalhães, DJ 10/10/2016; e REsp 476.660/MG, rel. Min. Eliana Calmon, DJ 04/08/2003.

Autores

  • é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

  • é advogado do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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