Opinião

Estados não avançam para receber transferências federais compensatórias

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9 de abril de 2019, 14h25

Autoridades econômicas, estaduais e municipais continuam a se referir à Lei Kandir como sinal do retrocesso e da crise financeira vivida por estados e municípios.

As soluções são tão simplórias quanto extremadas. De um lado, se chega a instigar aos estados que troquem repasses pelo restabelecimento da cobrança do seu Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre exportações — um evidente desarranjo da federação brasileira que depois de séculos foi interrompido por aquela lei (princípio teórico e experiência mundial recomendam que apenas um imposto e federal incida sobre as vendas ao exterior). De outro, se prefere retaliar a negativa federal com uma proposta legislativa que resultaria em repasses de bilhões de reais — que, tanto mais volumoso se torna, menos crível e realista se constitui.

No meio do impasse, mais uma vez o Supremo Tribunal Federal é chamado para tentar pacificar o imbróglio federativo, o que fez arrastando para o epicentro da crise institucional o órgão auxiliar do Legislativo, o Tribunal de Contas da União, que deveria suprir com cálculos e normas o que o Congresso deixou de conceber. A morosidade no cumprimento da medida, contudo, levou o Supremo a dilatar o prazo para que o Congresso aprove a lei ou que o tribunal a substitua temporariamente.

Os holofotes se voltam para o processo legislativo. Objeto de discussão em Comissão Mista da Câmara dos Deputados, em princípio, a solução já foi intentada pelo Projeto de Lei Complementar 511/2018[1], que teve visibilidade intensificada no cenário político nos últimos dias. O Projeto surgiu, justamente, como resposta à decisão tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 25, na qual o STF entendeu, unanimemente, pela existência de abstenção inconstitucional por parte do legislativo federal, ante a ausência de regulamentação do artigo 91 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)[2].

Chama-se a atenção, desde já, que não foi precisamente a Lei Kandir o objeto de declaração de inconstitucionalidade. Qual, então, a relação? A referida lei, de nº 87, de 13 de setembro de 1996, estabeleceu as diretrizes gerais necessárias à aplicação do ICMS. Dentre elas, a desoneração das exportações (artigo 3º, inciso II), que estendeu a não incidência do imposto — que pelo texto constitucional contemplava, tão somente, “produtos industrializados, excluídos os semi-elaborados definidos em lei complementar” — a todas as operações e prestações destinadas ao exterior, inclusive de produtos primários, e permitindo-lhes o aproveitamento de créditos (artigo 32).

Considerou-se, no entanto, o impacto que essas medidas acarretariam aos cofres dos estados e do Distrito Federal, a quem cabe a instituição e cobrança do tributo (artigo 155, inciso II, CF/88), pelo que a própria Lei Kandir previu que a União lhes entregaria recursos correspondentes à arrecadação realizada no período anterior à desoneração — 25% destes a serem redistribuídos aos municípios —, conforme redação original do artigo 31, em uma perspectiva compensatória.

Com o advento da Lei Complementar 102, de 2000, contudo, a definição dos recursos a serem entregues a cada ente deixou de seguir o critério proporcional e objetivo, anteriormente estipulado no chamado “seguro-receita”, e passou a se dar conforme percentuais fixados por negociações políticas, aplicáveis à montante estipulado voluntariamente nos orçamentos anuais. É importante atentar que, desde este ato, os repasses deixaram de atender sua finalidade inicial ou de sequer guardar qualquer relação objetiva com os impactos experimentados pelos estados.

Em 2003, a desoneração introduzida pela Lei Kandir foi alçada à esfera constitucional pela Emenda Constitucional 42. Conjuntamente, os impactos também foram tratados pela introdução do artigo 91 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que previu a criação, por meio de lei complementar, de repasses obrigatórios que, sugestivamente, considerariam “as exportações para o exterior de produtos primários e semi-elaborados, a relação entre as exportações e as importações, os créditos decorrentes de aquisições destinadas ao ativo permanente e a efetiva manutenção e aproveitamento do crédito” do ICMS.

Desde então, a questão passou para a esfera constitucional. Cabe a ressalva de que o parágrafo 3º do dispositivo transitório, objetivando suprir lacuna normativa que se instauraria, determinou que continuasse a ser aplicado o mecanismo de entrega de recursos do artigo 31 e Anexo da Lei Kandir, até a edição da lei complementar que instituiria o novo sistema.

A primeira conclusão que se extrai da análise do contexto jurídico é, portanto, a existência de um equívoco semântico quando se fala em “acabar com a Lei Kandir”, seja pela desoneração do ICMS-exportação e repasses correspondentes constituírem apenas um fragmento do que essa lei regulamenta, seja pela controvérsia já estar em outro plano: da Constituição, mais especificamente do artigo 91 do ADCT.

Os critérios de repasse da Lei Kandir já tiveram seu óbito anunciado pelo dispositivo constitucional transitório, bastava a edição da lei complementar devida para sedimentar seu fim, de modo automático, uma vez que clara a utilização do mecanismo predecessor exclusivamente como regramento “tampão”. A nova lei, portanto, não precisaria fazer qualquer referência à Lei Kandir para deixar o seu sistema de repasses no passado. Por outro lado, o que se vislumbra é o ressuscitamento parcial de seus critérios de rateio dentro do novo modelo de repartição previsto pelo PLP 511/2018.

Conforme o texto do citado projeto, a repartição do montante de R$ 39 bilhões ocorreria, em proporção igual a 60%, segundo dois critérios variáveis: (i) 40%, conforme exportações de produtos primários e semielaborados; e (ii) 20%, conforme os saldos positivos da balança comercial. A repartição dos outros 40% se daria por coeficientes fixos, obtidos pela média aritmética entre o rateio fixado pela LC 115/2002, que alterou a Lei Kandir, e o rateio médio do Auxílio Financeiro para Fomento das Exportações (FEX) nos cinco últimos exercícios.

Ainda que de modo mitigado, insiste-se na repartição arbitrária constante do anexo da Lei Kandir. Não por qualquer imposição legal ou judicial, ao contrário, mas por vontade (ou viabilidade?) política, que reaviva os critérios já moribundos ao invés de sepultá-los.

Além disso, referidos critérios estariam, per si, eivados de inconstitucionalidade, na medida em que sua aleatoriedade e caráter anti-isonômico agravam a distorção causada pela desoneração do ICMS-exportação, indo de encontro ao pacto federativo. Aliás, o montante de R$ 39 bilhões foi concebido com base na ideia de que os repasses previstos deveriam objetivar uma compensação global das perdas supostamente acumuladas desde a promulgação da Lei Kandir, as quais seriam recompostas nos próximos 30 anos.

Há uma distorção conceitual grave no atual debate. Os repasses previstos pelo artigo 91 do ADCT não têm o propósito de ressarcir os estados, integralmente e precisamente, por suas perdas. De sua redação infere-se um intuito de equalização de prejuízos, a fim de corrigir a injustiça federativa e reequilibrar os entes federados, independentemente de isso ser feito no exato montante do que cada estado estaria arrecadando hoje não fosse pelas modificações que se sucederam a partir de 1996.

Chama atenção, também, o fato de a proposta afastar as “restrições contidas na LRF e nas leis de diretrizes orçamentárias (LDOs) envolvendo a ampliação dos gastos públicos federais”. A mesma não faz menção à origem do recurso ou estimativa de impactos para os cofres federais, o que se viabilizaria pela inclusão de previsão de excepcionalidade no artigo 17, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ignora-se, contudo, que a Emenda Constitucional 45, de 2016, tornou constitucional a obrigatoriedade de se estimar impacto orçamentário e financeiro, pela introdução do artigo 113 do ADCT[3].

O que se evidencia, com a imposição de um número mágico, sem fundamento objetivo, é o acirramento de um conflito federativo, no qual os estados projetam o mero repasse de ônus (financeiro e resolutivo) para o Executivo Federal, enquanto este, por sua vez, usufrui de toda falta de consenso e razoabilidade para vetar as propostas de repasse — e, possivelmente, até deixar de transferir o pouco que entregava antes. No outro extremo, também é igualmente falso supor que revogar a Lei Kandir permitiria restabelecer a taxação estadual das exportações, ignorando que a isenção se tornou imunidade e ora está cravada na Constituição, exigindo uma emenda para sua revogação.

Mais se visualiza uma guerra do que a construção de um consenso. E uma guerra ultrapassada, com agendas defasadas e o aprisionamento à velha Lei Kandir como um dogma. Não se descarta a ideia de que esse apego ao passado e ao impasse possa até garantir sucesso político ao projeto. Mas até que ponto é válido o sucesso político quando a resolução de uma faceta do desequilíbrio federativo caminha às custas da geração de novas instabilidades?

O novo prazo para atuação do Congresso Nacional, conferido por decisão ad referendum do ministro relator Gilmar Mendes, em 21 de fevereiro[4], só se esgota em 2020. Nessa perspectiva, deve-se reconhecer que, por mais urgente que seja para os estados a estipulação de devido mecanismo de entregas — afinal, qualquer repasse na atual situação faz efetiva diferença nas economias estaduais e na consequente concretização de políticas públicas —, ainda há tempo para se reavaliar o contexto e, possivelmente, voltar olhares para o futuro e para a construção de novas teses e discursos.

Antes de tudo, é preciso desapegar da obsessão retrógrada de querer acabar com algo que não está na Lei Kandir. O que a Constituição prevê na norma citada, e o STF atentou com precisão e cobra a regulamentação, é uma transferência federal que tem por objetivo ajudar a compensar os estados exportadores, que honram créditos tributários geradores de débitos e arrecadação para outros estados. O que torna transitória a transferência é a gradual adoção do princípio de destino na cobrança do ICMS nas operações interestaduais, findando a transferência de créditos entre unidades diversas (artigo 91, parágrafo 2º).

Acaso a omissão inconstitucional seja formalmente suprida pelo PLP 511/2018, em sua atual redação, não se concretizaria de modo real e eficaz o mandamento constitucional transitório do artigo 91. O que o equacionamento da crise federativa exige é a liberação dos conceitos e preconceitos do passado. A atenção para o que realmente está escrito nos atos legais e judiciais vigentes — no presente — em muito ajudaria a finalmente avançar para um futuro com mais justiça e equilíbrio federativo, que poderia passar por novas transferências federais aos estados e seus municípios de caráter compensatório e temporário.


[1] Desde o recebimento do projeto de lei no Plenário da Câmara dos Deputados, em maio de 2018, foram realizados sete Requerimentos de Inclusão na Ordem do Dia, quatro deles apenas entre fevereiro e março do presente ano. Ver: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2176283>.
[2] Tema já analisado pelos autores em outra oportunidade, em coautoria com Celso de Barros Correia Neto. Ver: <http://periodicos.ufc.br/nomos/article/view/20362>.
[3] Evidente que um dispositivo constitucional transitório não se sobrepõe ao outro, mas, no caso dos repasses do artigo 91, o artigo 113 concorre no que tange à estipulação do montante, uma vez que não é fixado pelo próprio texto (como, por exemplo, no caso do Fundeb). Não pode obstar a concretização da transferência, mas deve ser observado para sua mensuração.
[4] Questão de Ordem na ADO 25/DF.

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