Direito Civil Atual

Sobre a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado da condenação

Autor

8 de abril de 2019, 9h40

ConJur
Aproxima-se o julgamento da ação declaratória de constitucionalidade que pretende, intempestivamente, confirmar a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) sob o argumento de que ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Argumenta-se que o texto da Constituição confirma a regra do CPP, de modo que o Supremo Tribunal Federal não poderia deixar de reconhecer a constitucionalidade do dispositivo processual penal.

Lembre-se que a jurisdição constitucional, quando não tem condições de realizar interpretação conforme, pode negar a norma (interpretação possível) que deriva do texto legal para, reconstruindo-a, conformá-la ao sentido da Constituição. Trata-se de poder implícito ao de declarar a inconstitucionalidade. Isso acontece quando são proferidas as decisões ablativas, aditivas ou substitutivas — ditas decisões manipulativas[1] —, todas utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal sob as vestes de declaração parcial de inconstitucionalidade e de interpretação conforme à Constituição.

O STF, na ADI 1.127, alterou vários artigos do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94). Não só excluiu, por inconstitucionalidade, parcelas dos próprios dispositivos, mas, sob a afirmação de estar fazendo interpretação conforme, pronunciou norma — sem declarar a inconstitucionalidade do texto — que nitidamente exigiria acréscimo de conteúdo ao dispositivo legal ou a sua própria alteração [2]. O mesmo modo de decidir foi adotado na ADPF 132 [3]. Nesse caso, realizou-se interpretação conforme à Constituição do artigo 1.723 do Código Civil — que afirma que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher …”. A despeito da circunstância de que o STF deveria ter proferido “decisão manipulativa”, já que não há como fazer interpretação conforme contra o texto de um dispositivo legal [4], o que importa é que a Corte, ao rejeitar a constitucionalidade do artigo 1.723 do Código Civil, teve que elaborar sofisticada e adequada justificativa para também negar o texto do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal.

Ora bem, como o STF, ao decidir por unanimidade, não admitiu que pode “reinventar” a Constituição, ele indiscutivelmente fixou um critério ou uma diretiva para a sua interpretação, que evidentemente não é uma diretiva presa ao texto da Constituição ou às doutrinas que lhe deram origem. Aliás, isso está confessado na unanimidade dos votos dos Ministros que afirmaram a inconstitucionalidade do artigo 1.723 do Código Civil e advertiram para a circunstância de que a Corte, diante da realidade da vida em sociedade, não pode se render à literalidade do texto da Constituição.

Atualmente todos estão de acordo que a unidade do direito é fundamental para garantir a segurança jurídica, a liberdade e a igualdade. Daí a importância dos precedentes, responsáveis pela definição do sentido do direito e destinados a evitar a variação frívola do entendimento dos juízes e tribunais diante de casos que exigem a mesma resposta jurídica. O próprio STF, como é óbvio, não pode ignorar os seus precedentes, sob pena de contribuir para o desmantelamento do império do direito e da autoridade do Poder Judiciário. No entanto, quando se considera uma Corte Constitucional, responsável pela legitimidade do direito infraconstitucional e pela atribuição de significado ao direito constitucional, exige-se mais: há que se olhar com cautela para as diretivas de interpretação do texto constitucional, frisando-se a necessidade de a Corte não variar a sua metodologia de interpretação diante de casos diferentes.

Não há como negar que uma Corte Constitucional deve contas à sociedade a respeito dos seus métodos de julgamento. Uma Corte que julga um caso afirmando a possibilidade de uso de determinada diretiva interpretativa não pode negá-la quando está diante de outro caso, substancialmente distinto. Um Juiz Constitucional não terá credibilidade se manipular os métodos de interpretação para alcançar um resultado preconcebido. Antonin Scalia, na Suprema Corte dos Estados Unidos, não teria alcançado respeito caso tivesse se portado apenas algumas vezes como um originalista [5].

No caso brasileiro, a totalidade dos ministros do STF, ao optar por uma diretiva interpretativa funcional — indo obviamente além das diretivas linguística e sistemática —, adotou claramente a diretiva que preceitua que ao texto constitucional deve ser atribuído significado conforme aos objetivos que a Constituição deve alcançar segundo as valorações do Juiz Constitucional, necessariamente amarradas aos fatos e valores sociais contemporâneos.

Diante disso, não há como imaginar que algum ministro da Corte possa declarar que a prisão em segundo grau é inconstitucional com base no dispositivo da Constituição que afirma que “ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Em primeiro lugar porque este dispositivo não diz que ninguém será preso antes do trânsito em julgado da condenação. A prisão é um efeito da sentença condenatória, ao passo que a atribuição de responsabilidade penal é pressuposto para qualquer condenação, inclusive para a sentença condenatória proferida pelo juiz de primeiro grau de jurisdição. O trânsito em julgado da sentença que declara a responsabilidade penal tem a ver com a coisa julgada material. Como é óbvio, a ninguém poderá ser atribuído o estado jurídico de “culpado” — próprio da coisa julgada — antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, assim como a ninguém pode ser atribuído o estado jurídico de pai antes do trânsito em julgado da sentença que julga procedente o pedido de investigação de paternidade. Entretanto, é equivocado imaginar que ninguém possa ser obrigado a pagar alimentos antes do trânsito em julgado da sentença que julga procedente o pedido de investigação de paternidade e que ninguém possa ser preso depois de a sentença de condenação ter sido confirmada por Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal.

Todo e qualquer efeito executivo da sentença tem autonomia em relação à coisa julgada material. A execução de uma sentença nada mais é do que opção pela realização prática da prestação jurisdicional, nada tendo a ver com trânsito em julgado ou com definição de responsabilidade. Isso significa que nem mesmo a interpretação literal do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal permite chegar na conclusão de que ninguém poderá ser preso antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

O problema, porém, é certamente mais complexo. A “presunção de inocência” não significa proibição de prisão antes do trânsito em julgado da condenação. “Presunção de inocência” constitui standard que expressa a ideia de que ninguém, antes de uma justificativa decisional pautada em juízo e raciocínio abertos ao contraditório e às provas, pode ser considerado culpado. Em outras palavras, a presunção de inocência é um slogan que expressa que a prova do crime e da autoria é do titular da pretensão punitiva, constituindo-se num direito fundamental processual de natureza negativa [6].

A condenação que observa o duplo grau é ato não apenas “conforme os fatos se passaram”, mas ato legítimo e justo praticado depois da observância de contraditório regular e pleno. Chega a ser curioso imaginar que ainda possa existir presunção de inocência depois de dois juízos terem analisado a responsabilidade do réu. Bem por isso, a ideia de que ninguém pode ser preso, mesmo depois de dois juízos repetitivos acerca da conduta atribuída ao demandado, soa como uma tentativa de procrastinação da justiça penal em qualquer região do planeta.

A impossibilidade de se outorgar efeitos à sentença condenatória confirmada pelo tribunal, além de retirar a autoridade dos juízes e tribunais que atribuíram responsabilidade ao réu, transformando-os em porta-vozes de meras proclamações retóricas, elimina a efetividade da ordem jurídica, acenando para a ideia de que a responsabilização penal deve atingir somente aqueles que não podem suportar o custo financeiro de um advogado que os leve ao exaurimento do processo perante a Corte Constitucional. A realidade contemporânea atesta que muitos condenados em primeiro e segundo graus deixam de cumprir pena em virtude da demora inerente ao processamento dos recursos no STJ e no STF, bem como demonstra que algumas penas, quando cumpridas muito depois, deixam de ter o seu devido significado para a sociedade.

Portanto, não há como interpretar o inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, diante da realidade social contemporânea e da necessidade de preservar o Estado de Direito — outorgando-se efetividade e autoridade à lei penal —, como se o dispositivo constitucional proibisse a prisão após a observância do duplo grau de jurisdição. Bem vistas as coisas, entender de modo contrário, privilegiando-se a impunidade e a ineficácia da ordem jurídica penal, é necessariamente esquecer a diretiva interpretativa que já levou o STF a proferir tantas decisões importantes para o desenvolvimento harmônico da vida dos brasileiros.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


1 G. Silvestri, Le sentenze normative della Corte costituzionale, Giurisprudenza costituzionale, 1981, p. 1684 e ss; M. D’Amico, Un nuovo modello di sentenza costituzionale?, Giurisprudenza costituzionale, 1993, II, p. 1803 e ss; G. Branca, L’illegittimità parziale nelle sentenze della Corte costituzionale, La giustizia costituzionale, Firenze: Vallecchi, 1966, p. 57 e ss; A. Guarino, Le sentenze costituzionali “manipolative”, Studi in onore di Giocchino Scaduto, Padova: Cedam, 1979, p. 353 e ss.

2 ADI 1127, Rel. Ministro Marco Aurélio; Rel. para o acórdão Ministro Ricardo Lewandowski, DJ 26.05.2006.

3 ADPF 132-RJ, Rel. Min. Ayres Britto, DJ 16.05.2011.

4 Como deixa claro Zagrebelsky, as decisões manipulativas operam além do caso de pluralidade de interpretações possíveis – que justificam o recurso às decisões interpretativas –, já que objetivam a “transformazione del significato della legge”, e não apenas “la sua eliminazione o la sua mera interpretazione conforme alla Costituzione” (G. Zagrebelsky, Processo costituzionale, Enciclopedia del Diritto, v. 36, p. 654).

5 Antonin Scalia, A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law, Princeton: Princeton University Press, 1998.

6 Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, Direitos Fundamentais Processuais, in Sarlet, Marinoni, Mitidiero, Curso de Direito Constitucional, 7ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2019.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!