Observatório Constitucional

Critérios de valoração racional da prova e standard probatório para pronúncia no júri

Autor

  • Gilmar Mendes

    é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

6 de abril de 2019, 8h05

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Em sessão do dia 26 de março, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal firmou relevante posicionamento no que toca às tensões relacionadas à busca por uma persecução efetiva para verificação dos fatos imputados com a sanção de culpados — materializada no in dubio pro societate — e a preservação das garantias individuais — com o prevalecimento do in dubio pro reo. No Agravo em Recurso Extraordinário 1.067.392/CE, de minha relatoria, restou consignado que a invocação do princípio do in dubio pro societate não seria critério legítimo a fundamentar reforma de sentença de impronúncia proferida em processo penal.

No caso em apreço, após extensa dilação probatória, o juízo de primeiro grau, ao final da primeira fase de procedimento do júri, entendeu pela impronúncia de dois dos três acusados, face à inexistência, nos autos, “de qualquer indício de autoria do crime ora perpetrado”. Para tanto, o juiz reproduziu trechos de depoimentos de seis testemunhas presenciais, em que não se verificou a concorrência dos recorrentes para o cometimento do delito. Por fim, consignou-se ser “imperativo, em um raciocínio lógico, que a testemunha que presenciou os fatos possa descrever com mais fidedignidade os acontecimentos do que aquela que tomou conhecimento dos fatos por ouvir dizer (testemunha de 2º grau)”.

Instado a se manifestar, o Tribunal de Justiça do Ceará deu provimento à apelação interposta pelo Ministério Público. Em lugar de testemunhas presenciais que foram ouvidas em juízo, deu-se maior valor a relato obtido somente na fase preliminar, os quais, não submetidos ao contraditório em juízo, não poderiam ser considerados elementos com força probatória razoável.

Inadmitido o recurso extraordinário, foi protocolado o agravo em comento, buscando-se impugnar o acórdão proferido pelo TJ-CE. Em obediência ao teor da Súmula 279/STF, a turma decidiu, por unanimidade, negar seguimento ao recurso. Contudo, tendo em vista a importância e sensibilidade da demanda, por maioria, decidiu-se pela concessão da ordem de Habeas Corpus de ofício, em favor dos dois recorrentes.

O julgado apresenta relevantes contribuições para o aprimoramento do sistema penal brasileiro, especialmente em matéria penal, a partir de dois prismas: da necessidade de uma teoria da valoração racional da prova penal; e do standard probatório para a decisão de pronúncia, junto à incongruência do in dubio pro societate.

No tocante ao primeiro aspecto, deve-se consignar que a “reconstrução dos fatos” passados é um ponto fundamental do processo penal, considerando-se a sua função de verificar a acusação imputada a partir do lastro probatório produzido nos autos. Contudo, o momento da valoração na formação da decisão judicial carece de maior atenção da doutrina e da jurisprudência[1].

Superada a primazia da teoria da prova tarifada, em que o julgador ficava vinculado a critérios de valoração abstratamente fixados na lei, houve a consolidação do sistema de “livre convencimento motivado”, determinando que “a eficácia de cada prova para a determinação dos fatos seja estabelecida caso a caso, seguindo critérios não predeterminados, discricionários e flexíveis, baseados essencialmente em pressupostos racionais”[2].

Contudo, saindo de um sistema em que os critérios eram totalmente vinculados, passou-se para um modelo de “livre convencimento”, em que uma pretensa liberdade do julgador ocasionou total abertura à discricionariedade no juízo de fatos. Segundo Michele Taruffo, “o uso degenerativo que às vezes se faz desse princípio abre caminho para a legitimação da arbitrariedade subjetiva do juiz ou, no melhor dos casos, a uma discricionariedade que não se submete a critérios e pressupostos”[3].

Diante disso, fortalece-se a necessidade de uma teoria racionalista da prova, em que, embora inexistam critérios de valoração rigidamente definidos na lei, o juízo sobre fatos deva ser orientado por critérios de lógica e racionalidade, podendo ser controlado em âmbito recursal[4]. Para tanto, a valoração racional da prova impõe-se constitucionalmente, a partir do direito à prova (artigo 5º, LV, CF) e do dever de motivação das decisões judiciais (artigo 93, IX, CF).

Um pressuposto fundamental para a adoção de uma teoria racionalista da prova é a definição de standards probatórios, denominados “modelos de constatação” por Knijnik[5]. Trata-se de níveis de convencimento ou de certeza, que determinam o critério para que se autorize e legitime o proferimento de decisão em determinado sentido. E o ponto central é que o atendimento a tal standard deve ser controlável intersubjetivamente.

Aqui se insere o segundo aspecto ressaltado: o standard probatório para a decisão de pronúncia e a incongruência do in dubio pro societate. Em seu acórdão, o TJ consignou que “a decisão vergastada trouxe argumentos plausíveis a absolvição dos apelados”, mas também afirmou que “ali se admitiu que havia outros elementos que apontavam para a culpabilidade dos réus”, reconhecendo assim claramente uma situação de dúvida.

Entretanto, em lugar de considerar a motivação do juízo de primeiro grau, formada a partir de relatos de testemunhas presenciais ouvidas em juízo, que afastaram a participação dos pacientes nas agressões, o TJ optou por dar maior valor a depoimento de ouvir-dizer e declarações prestadas por testemunha na fase investigatória e não reiteradas em juízo, porque não arrolada pelo Ministério Público.

Considerando tal narrativa, percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto “princípio in dubio pro societate”, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova. Além de desfocar o debate e não apresentar base normativa, o in dubio pro societate desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia. Diante, disso, afirma-se na doutrina que:

“Ao se delimitar a análise da legitimidade do in dubio pro societate no espaço atual do direito brasileiro não há como sustentá-la por duas razões básicas: a primeira se dá pela absoluta ausência de previsão legal desse brocardo e, ainda, pela ausência de qualquer princípio ou regra orientadora que lhe confira suporte político-jurídico de modo a ensejar a sua aplicação; a segunda razão se dá em face da existência expressa da presunção de inocência no ordenamento constitucional brasileiro, conferindo, por meio de seu aspecto probatório, todo o suporte político-jurídico do in dubio pro reo ao atribuir o ônus da prova à acusação, desonerando o réu dessa incumbência probatória”[6].

Nesse sentido, em crítica à aceitação de um in dubio pro societate, afirma-se que “não se pode admitir que juízes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário”[7]. Assim, ressalta-se que “com a adoção do in dubio pro societate, o Judiciário se distancia de seu papel de órgão contramajoritário, no contexto democrático e constitucional, perdendo a posição de guardião último dos direitos fundamentais”[8].

A questão aqui em debate, em realidade, deve ser resolvida a partir da teoria da prova no processo penal, em uma vertente cognitivista, que acarreta critérios racionais para valoração da prova e standards probatórios a serem atendidos para legitimação da decisão judicial sobre fatos.

Sem dúvidas, para a pronúncia, não se exige uma certeza além da dúvida razoável, necessária para a condenação. Contudo, a submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória. Ou seja, requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias. Nos termos assentados pela doutrina:

“Não se exige, pois, que haja certeza de autoria. Bastará a existência de elementos de convicção que permitam ao juiz concluir, com bom grau de probabilidade, que foi o acusado o autor do delito. Isso não se confunde, obviamente, com o in dubio pro societate. Não se trata de uma regra de solução para o caso de dúvida, mas sim de estabelecer requisitos que, do ponto de vista do convencimento judicial, não se identificam com a certeza, mas com a probabilidade. Quando a lei exige para uma medida qualquer que existam ‘indícios de autoria’, não é preciso que haja certeza da autoria, mas é necessário que o juiz esteja convencido de que estes ‘indícios’ estão presentes. Se houver dúvida quanto à existência dos ‘indícios suficientes de autoria’, o juiz deve impronunciar o acusado, como consequência inafastável do in dubio pro reo[9].

Assim, ainda que se considere os elementos indicados para justificar a pronúncia em segundo grau e se reconheça um estado de dúvida diante de um lastro probatório que contenha elementos incriminatórios e absolutórios, igualmente a impronúncia se impõe. Se houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio pro reo, imposto nos termos constitucionais (artigo 5º, LVII, CF), convencionais (artigo 8.2, CADH) e legais (artigos 413 e 414, CPP) no ordenamento brasileiro.

Como apontado alhures e à luz de toda a fundamentação exposta, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria, decidiu pelo não conhecimento do agravo em recurso extraordinário, mas, em contrapartida, concedeu, de ofício, o writ constitucional. Trata-se, portanto, de meio para proteção efetiva pelo Judiciário que extrapola, por definição, os rigores formais da noção processual da inércia da jurisdição.

Outrossim, a argumentação utilizada para embasar a concessão da ordem encontra guarida em outros precedentes desta corte, vez que, nas palavras do ministro Celso de Mello:

“Não se revela admissível, em juízo, imputação penal destituída de base empírica idônea, ainda que a conduta descrita na peça acusatória possa ajustar-se, em tese, ao preceito primário de incriminação. Impõe-se, por isso mesmo, ao Poder Judiciário, rígido controle sobre a atividade persecutória do Estado, notadamente sobre a admissibilidade da acusação penal, em ordem a impedir que se instaure, contra qualquer acusado, injusta situação de coação processual”[10].

Da mesma ordem, em julgamento de Habeas Corpus da lavra do ministro Sepúlveda já se consignava a insuficiência do princípio in dubio pro societate para a deflagração de sentença de pronúncia. Conforme dispôs o ministro, “[o] aforismo in dubio pro societate que — malgrado as críticas procedentes à sua consistência lógica, tem sido reputada adequada a exprimir a inexigibilidade de certeza da autoria do crime, para fundar a pronúncia —, jamais vigorou no tocante à existência do próprio crime, em relação a qual se reclama esteja o juiz convencido. (…) O convencimento do juiz, exigido na lei, não é obviamente a convicção íntima do jurado, que os princípios repeliriam, mas convencimento fundado na prova: donde, a exigência – que aí cobre tanto a da existência do crime, quanto da ocorrência de indícios de autoria, de que o juiz decline, na decisão, ‘os motivos do seu convencimento’[11].

Tem-se, pois, que o confronto entre in dubio pro societate e a preservação de direitos fundamentais é temática essencial ao processo penal de um Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal parece, portanto, dar mais um passo na direção de consolidar uma hermenêutica constitucional que compatibilize a necessidade uma persecução penal efetiva com a preservação das garantias constitucionais.


[1] KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Forense, 2007. p. 6.
[2] TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Trotta, 2011. p. 387, tradução livre.
[3] Ibidem, p. 398, tradução livre.
[4] FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Marcial Pons, 2007. p. 64.
[5] KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Forense, 2007. p. 37.
[6] NOGUEIRA, Rafael Fecury. Pronúncia: valoração da prova e limites à motivação. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2012. p. 215.
[7] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. Saraiva, 2018. p. 799.
[8] DIAS, Paulo T. F. A decisão de pronúncia baseada no in dubio pro societate. EMais, 2018. p. 202.
[9] BADARÓ, Gustavo H. Ônus da prova no processo penal. RT, 2004. p. 390- 391.
[10] STF, Inquérito 1.978-0, Rel. Ministro Celso de Mello, Plenário, J. 13/09/2006 DJ de 17/08/2007.
[11] STF, HC 81.646, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, j. 04/06/2002, DJ de 09/05/2002.

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    é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

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