Diário de Classe

Stephen Toulmin e suas contribuições para o Direito

Autor

  • Matheus Vidal Gomes Monteiro

    é doutor em Direito pela Unesa mestre em Direito pela Unisal e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição Constituição e Processo da UFF membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

6 de abril de 2019, 8h00

Em coluna anterior desenvolvemos algumas observações sobre as chamadas Teorias da Argumentação Jurídica (TAJ)[1]. Também já desenvolvemos algumas considerações (aqui) sobre a importância do reconhecimento dos dois níveis de racionalidade: apofântico e hermenêutico.

Há que se entender, portanto, cada nível com sua especificidade e a interrelação entre ambos para um melhor entendimento do Direito como um todo. Por isso, na coluna de hoje, relembraremos algumas bases teóricas e a partir de algumas das principais contribuições de Toulmin para o desenvolvimento das TAJ.

No período pós-1945 surgiram as perspectivas agrupadas como consensualistas, que buscavam a construção de um aparato teórico que pudesse legitimar a decisão judicial a partir da nova relação entre o Direito e os valores[2]. Assim, ao atacar a generalidade/abstração e um discurso jurídico utilizado para se “demonstrar”, defendiam como sendo sua função o “convencer”, retoricamente[3].

Firmando-se nos anos de 1950-1960, essas perspectivas tiveram como figuras centrais Perelman, Viehweg e, conforme muitos observam (e de acordo com a proposta da presente coluna), Stephen Toulmin, com suas relevantes contribuições acerca da rejeição da lógica formal no âmbito jurídico, construindo sua chamada lógica informal (ou lógica aplicada)[4]. E quanto a Toulmin, suas principais ideias estão em The Uses of Argument, de 1958, e em outra obra, em 1979, na qual aprofundou suas ideias de uma forma mais didática, desenvolvendo o livro An Introduction to Reasoning em parceria com Richard Rieke e Allan Janik[5].

Mas por que abordarmos Toulmin? Inicialmente, pelo fato de sua “radical” intenção de deslocar o centro das atenções de uma teoria lógica para uma prática lógica — abordando uma working logic —, opondo-se à tradição aristotélica. Diante, também, de ter adotado como modelo/início de análise a jurisprudência, pois entendia a lógica como “jurisprudência generalizada”, buscando uma reordenação da teoria lógica a fim de alinhá-la mais perto da prática crítica[6]. Assim, para além da lógica formal dedutiva, e abandonando a matemática como ideal, a correção do argumento não seria uma questão formal, mas, sim, procedimental, julgado com critérios apropriados para cada campo[7].

Nessa perspectiva, diferentemente da lógica formal dedutiva, essa lógica da argumentação refere-se a relações internas (inclusive não dedutivas) entre unidades pragmáticas das quais os argumentos se compõem[8]. Assim, nesse contexto, ao reconhecer que a prática de raciocinar e de dar aos outros razões quanto ao que fazemos/pensamos consiste num modo de nosso comportamento, Toulmin identificou um uso instrumental e argumentativo da linguagem[9].

E para tentar responder a uma das perguntas centrais de sua obra — “Até que ponto os argumentos justificatórios podem ter uma e a mesma forma, ou até que ponto se pode apelar a um único e mesmo conjunto de padrões, em todos os diferentes tipos de caso que consideramos?”[10] —, partiu do paralelo entre o processo judicial e o processo racional e, assim, chegou à conclusão de que, apesar da diferença entre os ramos do Direito que podem dar azo a processos judiciais, existem algumas semelhanças mais amplas entre os procedimentos, independente dos casos em análise. Assim, fazendo alusão às fases processuais, demonstrou a similitude procedimental e a possibilidade de destacarmos aspectos comuns de avaliação/crítica independente do caso, vinculando-os aos ditos aspectos procedimentais comuns.

Essas conclusões quanto ao processo judicial foram ampliadas ao processo racional geral e aos argumentos justificatórios gerais. Como afirmou Toulmin[11], “sempre que um homem faz uma alegação de conhecimento, ele se expõe ao desafio de ter de provar sua alegação, de justificá-la”. E quanto à justificação, trata-se da exposição de razões (as quais devem ser por si, e também expostas, racionalmente), pois, de maneira geral: “coisas que têm de ser especificadas em resposta à pergunta ‘como você sabe?’, antes que uma asserção tenha de ser aceita como justificada”[12]. Em outras palavras: a justificação será apresentada racionalmente mediante o uso de argumentos. Daí argumentos justificatórios[13].

Do clássico silogismo aristotélico, Toulmin parte para demonstrar suas insuficiências e parcialidades pela simplicidade da construção elaborada e do agrupamento de questões diferentes sob a mesma rubrica de “premissas”. A partir, então, da analogia entre a avaliação racional e a prática judicial constrói sua principal proposta aqui analisada: um “layout imparcial dos argumentos”, mais complexo, proporcionando a resposta sobre a validade ou invalidade de um argumento utilizado[14].

Tal fato leva Habermas[15] a reconhecer que Toulmin desenvolveu suas ideias extraindo “dos modos de argumentação dependentes dos diversos campos sempre o mesmo esquema de argumentação”. Assim, os seus cinco campos de argumentação — Direito, moral, ciência, administração e crítica da arte — podem ser concebidos como “diferenciações e autonomizações institucionais de uma única demarcação conceitual das argumentações em geral”. A sua tarefa lógica, portanto, estaria restrita a explicar uma demarcação aplicável argumentações possíveis, conferindo certa racionalidade a esse núcleo comum.

O estudo de Toulmin dos termos modais, a partir da analogia utilizada, proporcionou outro modelo para se pensar a ideia de forma lógica. Modelo este no qual os argumentos devem conter não apenas uma forma específica, mas também necessitam ser descritos e apresentados numa sequência de passos que obedecem determinadas regras básicas procedimentais[16]. Por isso que Toulmin, buscando seu layout argumentativo padrão, entendia que a “avaliação racional é uma atividade que envolve necessariamente formalidades[17].

Assim, um argumento-modelo é denominado pelo autor como sendo mais “imparcial” do que outros. Mas o que significa essa “imparcialidade lógica”? Significa a clareza na demonstração quanto à validade (ou invalidade) do argumento, permitindo que vejamos mais claramente as bases em que tal argumento se apoia, bem como a relação entre estas bases e a sua conclusão. Defendendo, então, a ideia de que um argumento formalmente válido deve ser exposto numa forma apropriada, num sentido procedimental (e não “quase geométrico”), construiu seu “layout logicamente imparcial dos argumentos”[18], padrão pelo qual poderíamos expor um argumento da forma mais completa e explicitamente possível[19].

De forma mais direta e resumida, o layout completo de Toulmin[20] foi assim exposto:

De forma resumida, podemos afirmar que: as alegações (C) inseridas em argumentações práticas somente são procedentes caso suas razões (G) oferecidas sejam de um tipo apropriado e relevante; as razões (G) devem estar conectadas às alegações (C) pelas confiáveis e aplicáveis garantias (W), as quais, por sua vez, devem ser justificadas pelo apelo a um apoio (B) confiável e relevante[21]. Para Toulmin, a lógica se ocuparia, então, da “solidez das alegações que fazemos — da solidez dos fundamentos que produzimos para apoiar nossas alegações, da firmeza do suporte que lhe damos”[22]. Daí a construção de seu layout, demonstrando que a existência de (C), (G), (W) e (B) informam um argumento como válido ou correto[23], portanto, sólido.

Outra questão diz respeito à força de um argumento, a qual é diferente de sua estrutura/forma (solidez). Portanto,

[…] enquanto na matemática (e na lógica dedutiva) a passagem para a conclusão ocorre de maneira necessária, na vida prática isso não costuma acontecer, mas sim, G (de grounds = razões), W (de warrant = garantia) e B (de backing = respaldo) prestam a C (claim = pretensão) um apoio mais fraco do que costuma manifestar por meio de qualificadores modais (qualifiers) como ‘presumivelmente’, ‘segundo parece’ etc. Por outro lado, o apoio fornecido a C pode sê-lo apenas em determinadas condições, isto é, existem determinadas circunstâncias extraordinárias ou excepcionais que podem solapar a força dos argumentos e as chamadas condições de refutação (rebuttals)[24].

Exemplificando:

 

Com a construção de seu modelo, Toulmin demonstrou a impossibilidade da redução que os lógicos fizeram (premissa-conclusão) diante das inúmeras possibilidades do discurso prático. Para o autor, o inicial equívoco relacionava-se em apertarmos em apenas duas classificações situações distintas (apoio e garantia)[25]. Assim, considerava errônea a aplicação da chamada “forma lógica” e sua aplicação para explicar a validade dos argumentos[26], pois no clássico exemplo dos silogismos categóricos as conclusões não passariam de mero embaralhamento e rearrumação das partes das premissas[27], possibilitando a almejada compatibilidade formal[28].

Ao construir seu layout, abandonou a ideia de validade formal e de rearranjamento entre as partes das premissas[29], e assim, por “considerações lógicas” (questões sobre possibilidade, impossibilidade e necessidade “lógica”), passou a entender apenas como sendo as formalidades preliminares, e não os verdadeiros méritos dos argumentos, proposições etc.[30]

Preocupado, então, com uma prática lógica, Toulmin[31] afirma que “podemos ‘contestar’ as asserções; e a contestação que fazemos só terá de ser acolhida se pudermos provar que o argumento que produzimos para apoiá-la está à altura do padrão”. Por isso, aquele que explicita a asserção deve estar sempre disposto a defendê-la em caso de crítica, exercida mediante argumentos justificatórios com critérios para a realização dessa criticabilidade de seus méritos e, por conseguinte, da asserção[32].

Toulmin também demonstra que na prática as questões envolvendo a aceitabilidade de um argumento devem ser entendidas e atacadas num contexto (assim como as questões sobre a aceitabilidade de declarações individuais)[33]. E também por isso devemos substituir as relações lógicas matematicamente idealizadas por “relações que, no fato prático, não são mais intemporais do que as afirmações que relatam”[34].

Por fim, registremos também que a análise sobre o tema racionalidade em Toulmin opera uma transferência, uma realocação, pois sua perspectiva reconhece que “um homem que faz uma asserção faz também um pedido — pede que lhe demos atenção ou que acreditemos no que afirma”, ou seja, diante de uma asserção realizada teríamos a veiculação de um pedido (implícito), e que seus méritos dependeriam dos méritos do argumento que fundamenta a asserção[35].

A partir da obra de Toulmin podemos perceber vários outros autores se apoiando e/ou lhe fazendo referências, especialmente com o reconhecimento da argumentação como interação humana, e não reduzida a uma perspectiva lógico-formal[36]. Tal ponto, por exemplo, será utilizado por Habermas[37] quando, dentre inúmeras outras construções, desenvolve sua meta ilocucionária do reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade presente na práxis argumentativa. Relembremos, também de que Alexy, em sua obra Teoria da Argumentação Jurídica, ao iniciar as observações sobre o discurso prático, aborda a teoria de Toulmin reconhecendo que ela “fornece interessantes conhecimentos da estrutura das premissas usadas no processo de justificação, e torna visível a natureza de vários níveis do processo”[38].

Portanto, Toulmin consiste em um autor basilar para se entender o modo de apresentação das diversas TAJ contemporâneas. Esta é a nossa singela contribuição para o estudo do tema.


[1] ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica. 2 ed. Forense Universitária, 2014, passim.
[2] HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2005, p. 469 e ss.
[3] Vide, p. ex., seu expoente mais conhecido, Perelman, em sua Lógica Jurídica: Nova Retórica. Trad. Vergínia K. Pupi, São Paulo: Martins Fontes, 2000, passim.
[4] ATIENZA, op. cit., p. 37. Para Figueroa, Viehweg, Perelman e Siches são os principais representantes desse enfoque antiformalistas, registrando a peculiaridade da influência de Siches pelo realismo norte-americano. Cf. FIGUEROA, Alfonso García. Uma primeira aproximação da teoria da argumentação jurídica. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Argumentação e estado constitucional. São Paulo: Ícone, 2012, p. 40-41.
[5] TOULMIN, Stephen; RIEKE, Richard; JANIK, Allan. An Introduction to Reasoning. 2. ed. New York: Macmillan Publishing Co., Inc., 1984.

[6] TOULMIN, Stephen. Os Usos Dos Argumentos. Trad. Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 362.
[7] ATIENZA, op. cit., p. 99-101.
[8] HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo: Racionalidade da ação e racionalização social. Vol. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 58.
[9] TOULMIN, op. cit., p. 2-5.
[10] Ibid., p. 19-20.
[11] Ibid., p. 309.
[12] Ibid., p. 345.
[13] Ibid., passim.

[14] Ibid., p. 137-139.
[15] HABERMAS, op. cit., p. 75.
[16] TOULMIN, op. cit., p. 62.
[17] Ibid., p. 62.
[18] Ibid., p. 136-137.
[19] Ibid., p. 139-140.
[20] Ibid., p. 150.
[21] TOULMIN, RIEKE, JANIK, op. cit., p. 27.
[22] TOULMIN, op. cit., p. 9-11.
[23] ATIENZA, op. cit., p. 106.
[24] Ibid., p. 107.
[25] TOULMIN, op. cit., p. 135-139.
[26] Ibid., p. 169.
[27] Ibid., p. 169-171.
[28] Ibid., p. 171.
[29] Ibid., p. 141.
[30] Ibid., p. 293.
[31] Ibid., p. 16.
[32] Relembremos, também, que em Habermas, a racionalidade de uma exteriorização está vinculada à sua disposição para receber críticas, bem como à sua capacidade de se fundamentar. HABERMAS, op. cit., p. 34.
[33] TOULMIN, op. cit., p. 263.
[34] Ibid., p. 264.
[35] Ibid., p. 16.
[36] ATIENZA, op. cit., p. 127.
[37] HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios Filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 127-128.
[38] ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 84.

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    é doutor em Direito (Unesa), mestre em Direito (Unisal) e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do Grupo de Estudos em Jurisdição, Constituição e Processo da UFF, membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento (IBMEC-RJ) e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos).

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