Opinião

Audiência de custódia é necessária ao estado de coisas inconstitucional carcerário

Autor

  • Mathaus Agacci

    é advogado criminalista graduado em Direito pela Faculdade Cesusc doutorando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA) sócio fundador do escritório Mathaus Agacci Advocacia Criminal e membro da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado de Santa Catarina (Aacrimesc) e da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

4 de abril de 2019, 7h19

Em meados do ano pretérito, recebemos uma ligação no escritório. Era o pai, desesperado, de um jovem de 19 anos que tinha sido preso em São José (SC). Atendemos o senhor e fomos à delegacia para fazer o acompanhamento do flagrante (que de flagrante não tinha nada, diga-se, mas, neste ponto, fica para um próximo relato).

Após a autoridade policial lavrar o auto de prisão em flagrante — e por não haver audiência de custódia na cidade (absurdo) —, o cliente ficou segregado na própria delegacia, ante a ausência de vagas no presídio da capital.

O que fazer? Interpusemos uma petição nos autos pleiteando, como primeira tese, o relaxamento do flagrante, tendo em conta que no caso concreto não havia situação de flagrância. Como tese subsidiária, acostamos os documentos necessários e pedimos que fosse concedida a liberdade provisória antes que o juiz prolatasse a decisão determinada pelo artigo 310 do Código de Processo Penal. Entretanto, já sabíamos que, por mais triste que pareça, a decisão seria a da conversão do flagrante em preventiva, em verdadeira banalização do instituto.

No processo penal atual, sabemos que, infelizmente, ao arrepio do codex e dos ditames principiológicos da magna carta, a prisão preventiva, que deveria ser medida mais que excepcional, é a regra e aplicada cegamente e sem o enfrentamento devido.

Em resumo, primeiro se prende para depois avaliar, em sede de pedido de revogação da preventiva ou Habeas Corpus, se realmente caberia a aludida prisão cautelar. Enquanto isso, alguém fica indevidamente preso, abarrotando ainda mais o kafkaesco sistema prisional brasileiro.

As famílias dos presos, quando mostro o acórdão em sede de Habeas Corpus determinado a ilegalidade da prisão, me questionam: mas e esse tempo todo que se manteve alguém preso ilegalmente quem paga? O sujeito, muitas vezes, perde o emprego, é etiquetado como bandido (labelling approach), dentre diversos outros prejuízos por ele experimentados.

Respondo: ninguém paga. Nos dias atuais, pela espetacularização midiática do processo penal e, ainda, por um Legislativo acovardado ante aos escândalos de corrupção e um Executivo altamente criticado, criou-se um vácuo que tem sido ocupado pelo Poder Judiciário, que, atualmente, transformou-se em um superpoder Judiciário, ferindo de morte nossa Constituição Federal e desequilibrando a separação de poderes, consectário de um sistema democrático.

Um exemplo do superpoder Judiciário é a decisão, em uma malfadada tarde de quarta-feira (4/4/2018), do Plenário do Supremo Tribunal Federal, ofuscado pelo excesso midiático nunca antes experimentado, em um Habeas Corpus — recurso eminentemente defensivo — que atentou contra uma das principais garantias fundamentais consagrada pela Constituição, a presunção de inocência.

Sob hipótese alguma devemos enfrentar qualquer procedimento judicial de modo a suprimir garantias fundamentais ou não cumprindo os ditames processuais, sob pena de refletir as consequências autoritaristas a todos os cidadãos em momento posterior.

Não é segredo para ninguém o estado de putrefação que é o sistema prisional brasileiro, e é um tema de extrema relevância social. Em épocas passadas, o povo ia às ruas pedindo pela liberdade; nos tempos sombrios atuais, a população pede por prisão. Algo está errado. Somos a prova de que a punição sem observância dos preceitos legais não gera diminuição da criminalidade, muitíssimo pelo contrário. Para quem não acredita, sugiro a leitura dos clássicos Dos Delitos e das Penas, de Beccaria, e Vigiar e Punir, de Foucault.

Para se ter ideia, o Departamento Penitenciário Nacional, em Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen-2014), constatou um déficit de 231.062 vagas, e esse número só vem crescendo nos últimos anos.

Nenhum ser humano merece experimentar o atual sistema carcerário, por ser, nas palavras do próprio Supremo Tribunal Federal, no importantíssimo julgamento plenário da ADPF 347, um “estado de coisas inconstitucional”.

O legislador, diante da crise do sistema penitenciário, evidente há décadas, criou as medidas cautelares alternativas à prisão como medida paliativa, afinal, a liberdade, antes do trânsito em julgado, é regra, e não exceção. Estamos diante de tempos de inversão de valores.

A prisão, como é sabido, é a mais grave das manifestações do Estado, devendo ser tratada com o maior cuidado possível, o que, na prática, não acontece.

A audiência de custódia, neste sentido, é um excelente e importantíssimo instrumento garantidor de garantias fundamentais diversas, além de ser de extrema necessidade como um instrumento paliativo ao atual quadro do sistema prisional brasileiro.

Rever a situação do sistema prisional brasileiro é uma medida não somente necessária, mas imperativa, sob pena de se atentar contra o Estado Democrático de Direito, que tanto lutamos para conquistar e que, atualmente, é banalizado por grande parte da população.

Não é concebível que qualquer cidade brasileira não tenha implantado a audiência de custódia; não deve o particular suportar a incompetência estatal, a liberdade é a regra.

Por fim, penso que o poder público deve agir, imediatamente, visando a mudança desse quadro. Não obstante, por mais sombrio que pareça, a esperança para frear o excesso punitivo contemporâneo é um mero devaneio.

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