Interesse Público

O princípio do devido processo legal e a garantia de cidadania

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

4 de abril de 2019, 8h00

Spacca
Conforme noticiado pela imprensa, o Ministério Público Federal recorreu ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região da decisão do desembargador Ivan Athié, que anulou a prisão preventiva do ex-presidente Michel Temer, determinada pelo juiz Bretas. Entende o MPF estarem presentes os requisitos da medida e que a soltura pode prejudicar as investigações e a recuperação dos valores que teriam sido desviados. Com base nesse argumento, postula que, caso a prisão preventiva não seja restaurada, seja, no mínimo, determinada a prisão domiciliar, com monitoramento eletrônico. O recurso não apresenta fatos ou documentos novos que possam modificar a decisão de soltura, mas apenas defende a licitude da coerção inicial. É, portanto, muito oportuna uma revisão dos atos judiciais até agora praticados, para que se possa melhor avaliá-los.

A prisão preventiva do ex-presidente Michel Temer pode ser observada sob diversos ângulos: político, institucional, jurídico etc. Na perspectiva jurídica, ela deve ser vista como um caso paradigmático, um símbolo ou um alerta: quantas pessoas já passaram, e ainda passarão, por essa situação? Não é o caso de se relatar tudo, sendo, entretanto, necessário destacar a ensaiada espetacularização do ato, com a convocação da imprensa e com dezenas de policiais fortemente armados. Não há como negar tratar-se de uma deplorável encenação.

Como é sabido, publicamente, o ex-presidente está residindo em São Paulo, com sua família e frequenta normalmente seu escritório no bairro do Itaim Bibi. Em suas aparições públicas nos restaurantes do bairro, ele é normalmente saudado, cumprimentado e fotografado. Nada existe de alarmante, excepcional ou ameaçador, que pudesse justificar o ridículo comportamento policialesco das autoridades competentes. Por que ele não foi simplesmente intimado para depor? Alguém imaginaria que um respeitável jurista, conhecido por sua elegância e fino trato, iria opor alguma resistência? Fugir do país? Destruir provas de fatos ocorridos no passado e já exaustivamente documentados? Causar uma comoção na ordem pública?

Li a decisão do juiz Bretas, especialmente as páginas 41 e 42. Não há justificativa concreta e específica para a prisão. Só generalidades. Ou seja, a decisão está fundamentada, mas não está devidamente motivada. Indica o artigo da lei no qual se baseia, mas não diz a razão pela qual esse artigo deve ser aplicado ao caso concreto. Do ponto de vista estritamente jurídico, a decisão é flagrantemente nula, por falta de motivação, como exige a legislação, e é até intuitivo. Pela simples leitura do disposto no Art. 312 do CPP, qualquer estudante de direito poderia chegar imediatamente à mesma conclusão. Como se explica que um Juiz de Direito experiente, não tenha visto isso?

Com muita objetividade, em editorial de 24/03/19, usando o expressivo título de “O Estado de Direito agredido”, o jornal O Estado de São Paulo alerta: "É preocupante que as instituições do sistema de Justiça, Ministério Público incluído, estejam trabalhando com tão pouco rigor técnico e tão sobrado arbítrio, numa confusão entre realidade e ficção. O próprio juiz reconhece que a 'análise (…) sobre o comportamento de cada um dos requeridos é ainda superficial'. Como se pode decretar prisão – ainda mais sem prazo determinado – com base em análise superficial?"

Ouso ir um pouco adiante: não houve análise alguma, nem superficial, mas pura e simples transcrição de acusações genéricas feitas em outros processos, pois, quanto ao caso específico, na ocasião em que proferida a decisão, havia processo algum. Fica evidente, para quem sabe ler textos jurídicos, que a decisão foi adrede tomada e o resto do texto serviu para simular um cuidadoso estudo.

Para encerrar este capítulo sobre os fatos e decisões judiciais, seja permitido transcrever mais um segmento de editorial do Estadão ("Estado de Direito preservado", 27/03/19), que examina a decisão do Des. Ivan Athié numa formidável síntese:"“Ao decretar prisão preventiva sem fundamento legal, na prática o juiz Marcelo Bretas antecipou pena de uma eventual condenação que não se sabe se virá. O Ministério Público ainda nem propôs ação penal sobre os fatos alegados. Como disse o desembargador Athié, prisão antecipatória de possível pena é “absolutamente contrária às normas legais".

"Ao tratar da ausência de contemporaneidade dos supostos fatos, o desembargador Athié é categórico ao afirmar que a conclusão a que chegou o juiz Marcelo Bretas sobre o caso não tem "a menor base empírica para justificar as prisões". A clareza do diagnóstico do desembargador é de grande importância nos tempos atuais em que, muitas vezes, indícios são tratados como fatos e delações se convertem em verdades incontestáveis". Esta última observação merece uma análise à luz da Constituição e das leis.

Nos termos do Art. 5º da Constituição Federal, a ordem jurídica brasileira garante a inviolabilidade dos direitos à liberdade, à honra e à imagem das pessoas, afirma o direito ao devido processo legal, diz serem inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos e afirma, também, o princípio da presunção de inocência.

Esta última garantia é objeto de discussão, atualmente, mas apenas no tocante a decisão judicial de segunda instância (a presunção permanece ou desaparece após a decisão de segundo grau?), ou seja: nem se discute a presunção de inocência a priori, antes de qualquer processo, como foi o caso acima enfocado. A espetaculosa prisão arbitrária trouxe danos morais à vítima, afetando sua honra e imagem. Além disso, qualquer eventual prova obtida durante o aprisionamento seria nula. Isso tudo é evidente, sendo suficiente esta simples referência. Entretanto, a garantia do devido processo legal merece um exame mais detalhado.

A Constituição Federal, em seu art. 5º, estabelece um rol de direitos e garantias a todos os brasileiros, merecendo destaque, para os fins deste estudo, as garantias do devido processo legal e da ampla defesa. Pode-se dizer que o disposto no inciso LV, que se refere ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, é uma espécie de explicitação da garantia do devido processo legal.

A garantia do devido processo legal abrange a liberdade em seu sentido mais amplo (de fazer tudo aquilo que a lei não proíbe) e também qualquer espécie de bem, inclusive o patrimônio moral. Sempre que, de qualquer forma, da atividade administrativa, ou judicial, puder decorrer uma lesão a esses valores (liberdade, honra e propriedade), deve ser observado o devido processo legal. Esta é uma garantia (instrumento de defesa de direitos), que nenhuma lei pode suprimir ou enfraquecer, significando que a defesa deve ser prévia, ampla e com os meios necessários ao seu exercício, não se confundindo com um simples ritual burocrático, uma pura formalidade desprovida de eficácia concreta.

Diante disso, fica evidente que a prisão preventiva é uma flagrante exceção à regra geral, só podendo ser aplicada com parcimônia e quando for absolutamente indispensável. O disposto no Art. 312 do CPP nunca pode ser interpretado isoladamente, mas, sim, no contexto do sistema jurídico e sempre à luz do princípio constitucional expressamente qualificado pela CF como fundamental.

Nesse sentido foi o voto ontem proferido pelo ministro Celso de Mello, na 2ª Turma do STF, no julgamento do HC 169.119, em caso no qual a prisão preventiva havia sido decretada apenas com base em delação premiada, sem qualquer motivação: "Não basta a mera enunciação, a utilização de fórmulas vazias ou transcrição literal das palavras da lei. Ou seja, a garantia da ordem pública, da ordem econômica, e etc. precisa de base factual concreta, sob pena do ato de decretação de prisão cautelar tornar-se exercício inaceitável de puro arbítrio. (…) A prisão cautelar não traduz qualquer ideia de sanção, ao contrário. Constitui instrumento destinado a atuar em benefício da atividade desenvolvida no processo penal". Nesse mesmo voto, salientou o ministro o caráter excepcional da prisão preventiva, conforme acima anotamos.

Além disso, aplica-se também ao caso em exame o disposto no Art. 20 do Decreto-Lei nº 4.657 de 04/09/41, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro- LINDB, com a com alteração feita pela Lei nº 13.655, de 25/04/18: "Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". É evidente que, no caso, o juiz Bretas não considerou que a consequência de sua decisão seria uma frontal agressão ao princípio do devido processo legal, causando graves lesões ao patrimônio moral do ex-presidente da República.

Em nosso entendimento, seria de se aplicar ao caso o disposto no Art. 37, § 6º da CF, que estabelece a responsabilidade civil do Estado pelos atos de seus agentes, e, ainda, do Art. 28 da LINDB: "O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro".

Como fica evidente, diante dos termos da decisão do Des. Ivan Athié e das manifestações doutrinárias consignadas pela imprensa (inclusive dos eminentes ministros Carlos Velloso e Carlos Britto), a decisão foi proferida, no mínimo com negligência.

Na verdade, as circunstâncias do caso, inclusive a espetaculosa prisão, indicam tratar-se de flagrante abuso ou desvio de poder. Sobre a aplicabilidade da teoria do desvio de poder aos atos jurisdicionais, ouça-se a manifestação do eminente mestre Caio Tácito: "Acolhida, amplamente, na generalidade dos sistemas administrativos, a noção de desvio de poder como tipo de ilicitude administrativa alcançou entre nós consagração legislativa e jurisprudencial. Sustentamos, em estudo especial sobre o tema, que a teoria do desvio de poder como vício de legalidade vai além do controle dos atos e contratos administrativos. Tanto o desvio de poder legislativo, como o desvio de poder jurisdicional, se podem caracterizar na medida em que o legislador ou o juiz destoem, de forma manifesta, do âmbito de seus poderes que, embora de reconhecida amplitude, não são ilimitados e atendem a fins que lhe são próprios e definidos" [1].

Voltando ao ponto de partida, o caso em exame vai muito além da pessoa do ex-presidente Michel Temer, pois revela uma falha, um risco ou um perigo à cidadania, merecendo maior aprofundamento por parte dos estudiosos, dos intérpretes e dos aplicadores das normas e princípios constitucionais. Conforme salientado no início, essa prisão deve ser vista como um caso paradigmático, e os comentários aqui delineados pretendem ter efeito profilático, para evitar que outras pessoas venham a ser vitimadas pela mesma violência.

Em síntese, a observância do princípio do devido processo legal é um dever da autoridade e um direito de qualquer cidadão. No momento em que este artigo é publicado, parece que isso foi compreendido, pois o juiz Marcelo Bretas recebeu, formalmente, duas denúncias contra o ex-presidente Michel Temer e outros investigados. Compete a ele agora decidir, fundada e motivadamente, sobre as providências a serem adotadas, com pleno respeito aos direitos e garantias inerentes à cidadania.

[1] TÁCITO, Caio. “Temas de Direito Público – Estudos e Pareceres”, 1º. Volume, Editora Renovar, Rio de Janeiro, 1997, p. 340

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