Opinião

O sacrifício de animais e o pecado original no Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Lucia Frota Pestana de Aguiar

    é pós-doutoranda doutora e mestre em Direito pela Unesa vice-presidente do Fórum de Pós-Humanismo e Defesa dos Animais-Cláudio Cavalcanti da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro–EMERJ membro da "Law and Society Association" professora de Processo Civil da Unesa.

3 de abril de 2019, 19h27

A Constituição Federal é a carta magna de um país democrático. O desrespeito a ela sinaliza pecado capital ao sistema de “checks and balances” e diagnostica a doença letal disseminada naquilo que temos de mais precioso: a garantia de o Poder Judiciário julgar de acordo com os direitos fundamentais.

Na Constituição, há normas originárias e normas derivadas. As normas constitucionais originárias são fruto do Poder Constituinte Originário e existem desde que foi promulgada a CF, em 1988. Diferentemente, as normas derivadas são fruto do Poder Constituinte Derivado, que modifica a Constituição, através das emendas constitucionais.

Atualmente o ativismo judicial e o ativismo legislativo que vêm atuando sobre a questão animal demonstram uma ousadia que começou com a emenda das vaquejadas, culminando com os atos sacrificiais. A partir de então, o que mais se pode esperar? Desse modo, o poder de reforma constitucional vem criando um conceito novo de crueldade: a crueldade na CF passou a curiosamente diferir então da crueldade do sacrifício, que por sua vez passou a ser similar àquela dos atos desportivos.

E assim, razões de esporte, lazer ou culturais passaram a ser mais fortes que o texto legal originário! Pasmem! A laicidade estatal foi pelo ralo, junto com o ambiente ecologicamente equilibrado! E sem razão, porque inexiste oposição de conceitos entre ambientalismo, racismo e especismo, que ao contrário, junto com o sexismo são conceitos correlatos que primam pela ideia de inclusão. Inclui-se o negro, o índio, a mulher, o animal no amplo e genuíno direito de não sofrer. E afinal como fica o meio ambiente? E o dever do Estado de impedir a crueldade ao animal, estando toda a fauna inserida no bem ambiental?

No panorama nacional de pluralismo religioso, a predominante religião católica, que sacrificava o cordeiro de Deus, transmutou o corpo e o sangue de Cristo para a hóstia e o vinho da missa, deixou o cordeiro em paz e assim evitou o caos social.

O ato sacrificial não é privativo de religiões de matriz africana. O uso do animal como fins primários de sacrifício em rituais religiosos, ainda com fins secundários de consumo, estão presentes no abate religioso Kosher (judaico) e Halal (muçulmano) entre outros.

Afinal, puro e intenso ativismo legislativo submeteu ao STF questões que a Suprema Corte, com seu ativismo judicial, passou a julgar ignorando a definição em sede constitucional! E assim, a Suprema Corte, ousadamente, passa a reescrever a Carta Magna em curiosa técnica legislativa, ignorando o Art. 225, VII, parágrafo 1º, que existe desde 1988 de modo claro e textual!

É bem verdade que, de modo reflexivo e indagador, com total razão, o Professor Lenio Streck, em artigo publicado na ConJur em junho de 2013, já havia se manifestado com propriedade sobre a ineficiência como meio normativo do crime de maus tratos ser considerado apenas crime ambiental:

É no mínimo curioso. Quem sofre a dor é o animal, a vida que se esvai é do animal, mas a vítima não é ele. Um animal que é queimado, que tem a pata ou a língua cortada, que é espancado, como tantos são diariamente, nenhum deles é vítima. Se tem dono, a vítima é o proprietário. Se não tem, se selvagens são considerados, a vítima é a sociedade (direito difuso). Nunca o animal, ele mesmo, em si. Simples assim. Uma engenhoca jurídica para sair do paradoxo de afirmar que o próprio animal é a vítima e ainda assim é objeto.

Ainda assim, é o crime ambiental do art. 225, VII da Constituição Federal que incrementa com força normativa constitucional, o art. 32 da Lei 9605/98, lei de crimes ambientais para o desprestigiado crime de maus-tratos na defesa jurídica dos animais.

A maioria das religiões que usa o sacrifício religioso se auto define culturalmente através da sacralização destes ritos. Esse foi o equívoco do precedente norte-americano, em que a Suprema Corte dos Estados Unidos (Igreja de Lukumi Babalu v. Cidade de Hialeah/Flórida) enfrentou o sacrifício de animais que era praticado por uma igreja de matriz africana. Em Hialeah, cidade da Flórida, a religião “Santeria” praticava o sacrifício e deixava as carcaças dos animais abatidos nas lixeiras da cidade.

As crianças nas manhãs de Hialeah assustavam-se com os bodes sem cabeças, línguas de porcos penduradas nas árvores e outras partes dos animais sacrificados dispostos em praças e vias públicas, em visões dantescas e insalubres. As condições anti-higiênicas sem inspeção sanitária dos restos dos animais pelas ruas, segundo a Corte Distrital, causavam graves riscos à saúde pública e danos emocionais às crianças que temiam as patas e cabeças dos animais em latas de lixos, praças e escadarias. Atos religiosos envolvendo animais, no Brasil como no exterior, são usualmente secretos e não seguem regras de saúde pública de descarte dos restos mortais de cada animal sacrificado.

A liberdade religiosa nos Estados Unidos da América está presente em duas cláusulas: a proibição de que o governo apoie qualquer religião (establishment clause) e livre exercício (free exercise clause). No precedente norte-americano, leis municipais criaram duas normas, uma que anotava a desconformidade com a moral, paz e a segurança; e outra que, proibiu o sacrifício de animais em rituais religiosos.

A demanda foi enfrentada pela Suprema Corte, e hoje é considerada um dos precedentes mais mal compreendidos da história norte-americana. A Suprema Corte decidiu que teria havido violação frontal a um direito fundamental de liberdade ao exercício de culto religioso por razões raciais discriminatórias. Que coincidência! O nosso STF entendeu também pela primazia cultural.

Muito curioso que a decisão norte-americana não tivesse enfrentado a inconstitucionalidade precisa de leis de proteção aos animais e sim as razões discriminatórias que os julgadores entenderam estar presentes para tomarem decisões restritivas de direitos a religiões de origem africanista. Exatamente como ocorreu com o julgamento da semana passada no nosso Supremo Tribunal Federal!

Resta a indagação: como teria decidido aquela corte, e também como decidiria a nossa, se a questão não tivesse sido direcionada para discriminação racial? Aqui no Brasil o julgamento foi encerrado com a promulgação da tese que se fundamentou em discriminação e intolerância religiosa: “É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício de animais em religiões de matriz africana”.

É um imenso eufemismo se pensar em sacrifício sem dor, sem crueldade, sem violência como preconizaram os ilustres ministros. A força feia do sofrimento, como diz Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas, e não a qualidade do sofrente, é que vale.

A velocidade do fato social mutante, hoje não se adequa mais ao sofrimento animal protagonizando ritos religiosos. A prática religiosa pautada no sofrimento de um outro ser inocente estimula a violência gratuita, em nome de dogmas que mereciam ser superados em um país laico. Em última análise, a permissão de sacrificar animais, oportunizaria também pela isonomia entre religiões, que uma tribo indígena até eliminasse suas crianças nascidas com limitações físicas, apenas para sustentar sua fé.

O Brasil como um Estado laico não deveria priorizar religiões e, com isso, ferir a isonomia. A liberdade constitucional é sim de culto, a prática deveria ser limitada pelos próprios ditames constitucionais, e regulamentada por leis infraconstitucionais que viessem a fazê-lo. Na Constituição brasileira tem-se dois valores fundamentais: liberdade de culto, crença e prática de um lado (art. 5º, inciso VI) e dever do estado de zelar pelos animais, como parte integrante do meio-ambiente ecologicamente equilibrado (Art. 225, § 1º, VII), de outro.

E agora? O Sacro + Ofício do dever estatal, dever que perseguimos em sede doutrinária e acadêmica, é caminhar para a implementação completa e responsável da liberdade religiosa, sem crueldades, e sem prevalência no debate de quem acredite na supremacia de suas crenças, ao argumento de que matar animais seja meio apropriado de se chegar a Deus!

Que Deus nos proteja desse país, caso não consigamos recuperar a força textual e legal da Constituição Federal em sua origem!

Autores

  • é mestre e Doutoranda em Direito pela UNESA; membro do Fórum de Hermenêutica e Decisão da Escola da Magistratura do Estado do Janeiro – EMERJ; membro da Law and Society Association; e professora de Processo Civil da UNESA.

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