Opinião

Reflexão acerca da decisão do STF sobre sacrifício de animais em rituais religiosos

Autor

  • Adriana Cecilio

    é professora de Direito Constitucional advogada especialista em Direito Constitucional mestra em Direito e autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos.

2 de abril de 2019, 6h46

O STF declarou que é constitucional o sacrifício de animais em cultos praticados por religiões de matriz africana. Sou protetora de animais. Meu coração de protetora sofre, pena, se indigna, se entristece. Também sou constitucionalista. Meu entendimento como cientista da área jurídica não pode ser divorciado do posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Fica o desabafo do quão difícil é manter a honestidade intelectual mediante situações em que há muita emoção envolvida.

A Constituição é de uma clareza solar quando assegura de forma acertada em seu rol de direitos fundamentais, art. 5º, inc. VI, a liberdade religiosa. E ainda, proíbe que os entes federados, União, Estados, Município e Distrito Federal, façam diferenciações entre brasileiros, art. 19, inc. III, ou mesmo que beneficiem de alguma forma uma religião em detrimento de outras, conforme dispõe o inciso I, do mesmo art. 19.

Dessa feita, seria absolutamente impossível juridicamente falando, que o Supremo considerasse inconstitucional uma prática religiosa específica de uma religião. O Estado não deve interferir nas práticas religiosas, exceto se estas violarem algum dispositivo legal. Infelizmente no Brasil animais são considerados coisa, objetos, tanto quanto uma cadeira ou um celular. Se alguém compra um animal ele é um bem seu. Se excluídas as hipóteses que uma prática possa configurar maus-tratos, não há nada legalmente que se possa fazer para impedir a utilização de animais em ritos religiosos.

Nos termos do artigo 102 da Constituição Federal, compete ao Supremo Tribunal Federal a "guarda" da Constituição. Esse termo significa a responsabilidade pela proteção do Carta Magna (não guardar o texto constitucional em alguma gaveta e julgar "segundo a voz das ruas", como vimos em algumas decisões polêmicas recentes). Esse expediente decisionista é de fato muito tentador. Se valer de algum princípio para justificar decisões que interpretam o que não está escrito no Texto Maior, ou pior, invalidar o que está escrito, são formas de malabarismo hermenêutico que desbordam a função precípua do tribunal.

Justificar uma atuação ativista com base no discurso da inércia do poder legislativo, por exemplo, está para um árbitro que ao perceber o jogo muito parado resolve tomar a bola e ir fazer um gol. Pode ser divertido para quem assiste, parecer uma atitude aceitável, mas na verdade viola as regras, descaracteriza o jogo e gera o caos. Se quem é responsável por observar as normas as descumpre o jogo perde completamente o rumo. Todos perdem a longo prazo.

No caso em tela, o Supremo de fato cumpriu o que a Constituição estabelece em detrimento dos argumentos que foram apresentados em prol da inconstitucionalidade, porque eles realmente careciam de juridicidade. É preciso que os ativistas (me incluo), reflitamos de forma muito honesta para além das nossas convicções ideológicas a respeito disso. Sem dúvida é algo difícil pensar apenas logicamente havendo tanta paixão permeando o tema. Mas esse exercício é necessário e fundamental.

Estamos dentro de um corpo social que é regido pelo texto constitucional, violar a lei maior do país cedendo ao desejo de fazer justiça pelos animais, implicaria em encontrar uma saída "mandrake" para "desler" o princípio da liberdade religiosa. Uma decisão nesses termos traria mais malefícios a toda sociedade ao longo do tempo (como a deterioração do próprio Estado Democrático de Direito), do que os benefícios que os animais poderiam alcançar.

Como protetora e vegana (em transição), sonho que um dia todos os animais não sofram mais nenhum tipo de violência ou sejam explorados de qualquer forma. Há muita luta pela frente até que esse dia chegue. A busca por conscientizar as pessoas a respeito da causa animal, informando todo o seu real contexto, é uma árdua batalha diária. Passa por mostrar às pessoas coisas que elas não querem ver, explicar informações que elas fazem questão de não saber.

A evolução que verdadeiramente será perceptível e importante para os animais precisa se dar primeiro na esfera individual de cada um. A partir daí, o sentimento de empatia e respeito pela vida dos animais poderá transbordar para a sociedade como um conceito assentado culturalmente. Porque é muito confortável se indignar e protestar diante de casos de maus-tratos como o assassinato da cachorrinha Manchinha, cometido pelo segurança do Carrefour em Osasco, mas não modificar hábitos que também condenam animais a serem assassinados, diariamente, das formas mais terríveis. Bradar por pena de reclusão para maus-tratos, mas, continuar comendo carne e derivados de animais é um imenso contrassenso.

Porcos, peixes, galinhas, vacas e outros, também são animais dóceis, afetuosos, inteligentes e companheiros. Principalmente os porcos e galinhas, pouco ou nada diferem dos cachorros e gatos em relação a possibilidade de interação e cumplicidade. Ainda assim, milhares de porcos são assassinados a pauladas todos os dias, tal qual a cachorrinha Manchinha foi. Qual é a diferença? Porque uma morte causa indignação e a outra não? É absolutamente contraditório se declarar um "protetor de animais" e fomentar a indústria que todos os dias propicia a morte de porcos, galinhas, vacas, peixes, dentre outros animais de formas extremamente cruéis. No conceito de animal não se incluem só os considerados pets. Todos os animais merecem proteção e amor.

Assim sendo, analisando-se a situação com a coerência necessária, restam com legitimidade para de fato protestar contra a decisão do STF apenas os ativistas veganos, que são os únicos a não colaborar com nenhuma forma de exploração animal. Os protetores que consomem carne precisam, primeiro, se conscientizar dessa informação básica: "animais não são só cães e gatos"; para depois poderem se posicionar contrariamente à decisão do STF, ao menos sob o ponto de vista do protesto ideológico.

Sem esse passo fundamental em prol dos animais, que você pode dar no seu dia-a-dia e só depende de você, sua crítica não é legítima. Reflita. O Supremo Tribunal Federal, não pode e não deve violar o texto constitucional, mas você pode fazer toda a diferença na vida de milhares de animais fazendo escolhas diárias simples. Animais não são comida. Animais não são entretenimento. Animais não são coisas. Todo animal merece viver. Faça a sua parte.

Autores

  • é advogada, professora de Direito Constitucional, mestranda em Direito Constitucional pela PUC-SP, especialista em Direito Constitucional aplicado. Coordenadora da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP, também é membro da Associação dos Constitucionalistas - Instituto Pimenta Bueno da USP, da Academia Brasileira de Direito Constitucional, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e da Rede Feminista de Juristas.

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