Opinião

Tokens e valores mobiliários: uma nova perspectiva de abordagem

Autor

  • Raphael Andrade

    é bacharel mestre e doutorando em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP); tem extensão em Private Equity & Venture Capital pelo INSPER e pela Universität Basel; e sócio responsável pela área de Societário/M&A de Andrade Chamas Advogados.

2 de abril de 2019, 6h58

Muitos textos recentes têm abordado a questão da possível compreensão de determinadas operações de capitalização via emissão de ativos virtuais (tokens) como verdadeiras emissões de valores mobiliários (securities).

Em especial, o debate ganhou fôlego adicional após o mês de julho de 2017, quando a Securities and Exchange Commission (SEC) emitiu um report analisando, de forma retrospectiva, uma venda de tokens protagonizada por uma "organização autônoma descentralizada" (decentralized autonomous organization), conhecida como “The DAO”, concluindo, naquela oportunidade, que os tokens emitidos pela The DAO eram, de fato, valores mobiliários para as finalidades da legislação estadunidense.

A SEC chegou a tal conclusão mediante a aplicação do conhecido Howey test[1], com o qual muitos daqueles que atuam e pesquisam na área do mercado de capitais (e, agora, também na área de blockchain e ativos virtuais) já estão familiarizados. Talvez por sua relevância e pelo longo histórico de desenvolvimento, que permitiu o estabelecimento de uma massa crítica de ações e decisões da SEC nele apoiadas, as opiniões com as quais tenho me deparado, sobretudo no Brasil, discursam, exclusivamente, sobre tal ferramental analítico.

Mas isto, em alguma medida, se justifica. Como sabemos, a Medida Provisória 1.637/1998, posteriormente convertida na Lei 10.198/2001, acrescentou, ao rol até então taxativo dos valores mobiliários, trazido no artigo 2º da Lei 6.385/1976, o inciso IX. A nova hipótese normativa quis refletir (como, de fato, refletiu) o approach sistematicamente adotado em jurisdições de common law para eventual classificação de algo como um valor mobiliário, conferindo assim, à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), uma ferramenta que permitiria análises amplas (“principiológicas”, dir-se-á), baseadas nos “fatos e circunstâncias” (facts and circumstances) e a submissão, a seu agasalho regulatório, de instrumentos erigidos na prática negocial que não figuravam na lista até então exaustiva.

Portanto, de forma simples, a inclusão do inciso IX significou, em última análise, a importação legislativa, com algumas poucas notas de distinção, do Howey test[2]. Logo, mais uma razão para seu protagonismo nas recentes discussões travadas em nosso país envolvendo valores mobiliários e tokens.

Em uma opinião recente, procurei avaliar se seria possível subsumir, nos conceitos legais de “participação”, “parceria” ou, mais amplamente, “remuneração”, as “retribuições” (artigo 2º, IX, Lei 6.385/1976) conferidas aos titulares dos chamados network tokens ou utility tokens, que permitiriam ao seu titular o acesso a determinada plataforma ou sua conversão posterior em determinado bem ou commodity digital.

Percorrendo alguns precedentes importantes da CVM, observei que, a despeito de existirem alguns poucos posicionamentos dissonantes (como aquele do então diretor Otávio Yazbek no Processo CVM RJ 2009/6346 – “créditos de carbono”), se seguido o raciocínio da esmagadora maioria das decisões, muitas emissões de tokens poderiam, sem esforços hercúleos, ser enquadradas como emissões de valores mobiliários. Isso tudo, note-se, sempre com apoio, ainda que remoto, no ferramental a nós emprestado pelo Howey test.

Pois bem, aqui pretendo examinar a questão por meio de lentes distintas, afim de provocar uma reflexão alternativa.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde a competência para legislar a respeito do mercado de capitais é privativa da União, nos termos dos artigos 22, I e XIX e 48, XIII, da Constituição Federal, nos Estados Unidos as unidades da federação detêm competência legislativa concorrente na matéria. A implicação disso que aqui mais nos interessa consiste no fato de que existem conceitos ligeiramente distintos de security em nível federal e estadual, o que, via de consequência, permitiu o estabelecimento de procedimentos analíticos outros, complementares ao Howey test.

Um desses procedimentos é o chamado risk capital test (“RCT”). Em 1959, alguns empreendedores adquiriram uma propriedade imobiliária em Marin County para desenvolver um clube de campo. Para pagar pelos custos de construção, eles venderam “títulos de associado” ao clube. Os membros associados não compartilhariam dos lucros ou seriam sócios (no sentido de deterem equity) do clube, mas apenas poderiam utilizar as instalações do mesmo.

De acordo com a legislação federal daquele país, tais “títulos de associado” não poderiam ser considerados valores mobiliários, uma vez que os membros (titulares) se associavam para obter os benefícios decorrentes da própria associação (isto é, para poder usufruir das instalações do clube) e não visando um retorno financeiro.

No entanto, a Suprema Corte da Califórnia, no emblemático caso Silver Hills Country Club v. Sobieski (“Sobieski”)[3], entendeu tratarem-se de securities. Formulou-se, então, um novo teste, aplicável para eventual categorização de determinado “ativo” como valor mobiliário, levando-se em consideração:

  • se os recursos estão sendo captados para um empreendimento ou um negócio; 
  • se a possibilidade de aporte está sendo oferecida indiscriminadamente ao público em geral; 
  • se os investidores encontram-se substancialmente incapacitados de afetar o sucesso do empreendimento;
  • se os recursos dos investidores estão substancialmente em risco, porquanto inadequadamente assegurados.

O ponto mais interessante, aqui, é que, em Sobieski, a Suprema Corte da Califórnia estabeleceu que, para que se determine se um título é, ou não, um valor mobiliário, não é necessário que haja qualquer expectativa de percepção de benefícios materiais decorrentes do investimento, sugerindo que “act extends even to transactions where capital is placed without expectation of any material benefits”[4].

Em certa síntese, sob a lupa do risk capital test, um “ativo” ou título serão considerados valores mobiliários se a operação respectiva envolver a captação de recursos para um empreendimento ou negócio, mediante o oferecimento indiscriminado ao público em geral, no qual as pessoas são selecionadas aleatoriamente, verificando-se uma posição passiva por parte do investidor e a condução do empreendimento pelo emissor, utilizando-se dos recursos de terceiros[5].

Ou seja, a formulação mais ampla do RSC enfatiza a eliminação da exigência de “expectativa de lucros” (profits) adotada pelo Howey test, uma vez que não há identidade entre benefício e lucro nem sequer necessidade de que o benefício percebido pelo investidor seja de natureza material[6]. Assim, diz-se que, genericamente, o teste foca mais, retrospectivamente, naquilo que o investidor tem a perder, do que, prospectivamente, naquilo que o investidor espera ganhar[7].

Em geral, os tribunais que aplicam o risk capital test o fazem complementarmente ao Howey test. Assim, se o instrumento analisado puder ser compreendido como um valor mobiliário segundo os critérios de qualquer um dos testes, o tribunal concluirá pela sua natureza de security.

Mas qual a relevância disso para o contexto brasileiro? Ora, penso não ser difícil imaginar que a Comissão de Valores Mobiliários, analisando se determinada operação configura uma emissão de valores mobiliários, quando confrontada com o preenchimento de todos os requisitos apontados no inciso IX e destrinchados em seus precedentes, mas tendo dificuldade para subsumir o benefício conferido ao investidor nas acepções clássicas de “participação” (equity), “parceria” ou “remuneração”, poderia explorar o primeiro destes conceitos de maneira semelhante àquela empreendida em Sobieski, que deu origem ao RSC.

Assim, especialmente nas hipóteses em que os tokens confiram aos titulares somente a possibilidade de utilização de determinadas plataformas (ou, por que não, de participação nas mesmas), a Comissão poderia, aplicando um expediente analítico equivalente àquele primeiramente aplicado pela Suprema Corte da Califórnia, assinalar que a noção de “participação” abarcaria situações em que o investidor não aporta recursos na expectativa de um retorno necessariamente material ou financeiro.

Veja-se que, muito embora a letra do inciso IX não adote a expressão “lucro”, o próprio MEMO/PFE-CVM/GJU-1/Nº 08/05, da Procuradoria Federal Especializada faz referência expressa a “obtenção de lucros” e “ganho, benefício ou vantagem econômica”.

Consequentemente, entendo que seria mais tortuoso chegar a uma tal conclusão, no sentido acima apontado, somente com apoio em Howey ou na experiência jurisprudencial da CVM que com base em tal precedente se erigiu. Em valendo-se de testes complementares, a Comissão poderia subvalorizar o aspecto lucrativo ou material da contrapartida e, então, classificar tal ou qual token como valor mobiliário, a depender, evidentemente, de uma série de outras circunstâncias.

Se é certo que a CVM já se manifestou a respeito do tema, ainda que de forma mais tímida e genérica, isto não deve nos impedir de buscar, em ambientes estrangeiros, soluções análogas para os problemas que inevitavelmente aqui irão se apresentar. Com a adequação necessária e evitando a transposição acrítica de fórmulas e procedimentos, parece inclusive salutar procurar aprender em uma rica experiência dogmática e jurisprudencial, construída, aliás, há muito mais tempo que a nossa.


[1] Posteriormente, a SEC voltou a aplicar o Howey test em uma pretensa captação de recursos via emissão de tokens da Munchee, Inc. Em 11 de dezembro de 2017, a Comissão emitiu uma cease-and-desist order, que efetivamente impediu a consolidação da operação, entendendo que os requisitos para a caracterização de uma emissão de valores mobiliários estavam preenchidos, notadamente em virtude dos métodos de divulgação e venda empregados pela Munchee, Inc. (“manner of sale”). Em síntese, trata-se de um marco extremamente importante, pois a Comissão sinalizou que não basta a análise dos aspectos intrínsecos ao token para fugir à aplicação das leis disciplinadoras do mercado de capitais.

[2] Aliás, a esse respeito, veja-se os requisitos estabelecidos pela Procuradoria Federal Especializada da CVM no MEMO/PFE-CVM/GJU-1/Nº 08/05.

[3] 361 P.2d 906 (Cal. 1961).

[4] 361 P.2d 906, 907 (Cal. 1961).

[5] Fox v. Ehrmantraut. 615 P. 2d 1383, 1388 (Cal. 1980); People v. Coster, 199 Cal. Rptr. 253, 257 (Cal. Ct. App. 1984).

[6] Securities Adm r v. College Assistance Plan (Guam), Inc. 533 F. Supp. 118, 122 (1981).

[7] Wolf v. Banco Nacional de Mexico, 549 F. Supp. 841, 853 (N. D. Cal. 1982).

Autores

  • Brave

    é sócio do Andrade Chamas Advogados, professor da Escola Superior de Direito (ESD) e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador da Comissão de Direito Comercial e Societário da 12ª Subseção da OAB-SP. É mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) e extensão em Private Equity & Venture Capital pela Universität Basel.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!