Opinião

Tributação na devolução de participação em sociedade offshore

Autor

  • Cláudio Henrique Resende Batista

    é advogado e consultor especializado em Direito Tributário. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Pós-graduado em Direito Tributário. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania. Conselheiro no Conselho de Contribuintes e Recursos Fiscais do Estado do Paraná (CCRF).

2 de abril de 2019, 7h35

No filme Tróia (2004), o jovem soldado Patroclus utiliza a mesma armadura de seu tio Achillesdurante o ataque realizado pelos troianos, induzindo a erro a equipe liderada pelo herói grego, conhecida como Myrmidons, fazendo com que esses participassem da batalha sem autorização. O disfarce também enganou o herói troiano Hector, que acabou matando Patroclus achando que era Achilles.

O equívoco criado por Patroclus acaba gerando outro equívoco, o de Achilles achar que Hector matou covardemente um soldado jovem, sem a devida experiência para enfrentá-lo. Achilles marcha rumo a Tróia, elimina Hector e ainda sequestra o seu corpo como forma de retaliação ao suposto covarde assassinato do seu sobrinho Patroclus.

Nesse cenário onde equívoco gera equívoco, é possível notar que a Receita Federal “instalou” um erro por meio da Solução de Consulta Cosit 678/2017, o qual já vem sendo indevidamente replicado, como se pode perceber na recente Solução de Consulta Disit 3008, de 14 de fevereiro de 2019.

Antes de analisar a Solução de Consulta mais recente, faz-se necessário demonstrar o problema inserto na Solução de Consulta Cosit 678/2017.

Solução de Consulta Cosit 678/2017
Um primeiro contribuinte questiona qual o melhor tratamento fiscal no caso de dissolução de empresa constituída e situada no exterior, regularizada no âmbito do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT).

A dúvida é sobre se o montante obtido com a dissolução da empresa no exterior, na parcela que ultrapassar o valor objeto de regularização no âmbito do RERCT, deve ser tributado como Ganho de Capital (com alíquotas progressivas de 15% a 22,5%).

Questiona ainda se seria aplicável o artigo 39, inciso XLVI do Decreto 3.000/1999, segundo o qual é isenta “a diferença a maior entre o valor de mercado de bens e direitos, recebidos em devolução do capital social e o valor destes constantes da declaração de bens do titular, sócio ou acionista, quando a devolução for realizada pelo valor de mercado.”

A dúvida formalizada pelo contribuinte é aplicável a qualquer caso de pessoa física residente fiscal no Brasil que busque devolver o patrimônio detido por meio de investimento em empresa situada no exterior, comumente chamada de offshore (ou Private Investment Company – PIC), independentemente se tal ativo foi regularizado no RERCT ou se já era regularmente declarado.

A pergunta do contribuinte é um tanto quanto “capciosa”, pois busca dar à Receita Federal apenas as opções de aceitar a tributação com base no Ganho de Capital ou então isentar completamente a operação (evitando o pior cenário de incidência da tabela progressiva – até 27,5%).

Inicialmente, para fugir da “intenção” do consulente de tributar o ganho auferido na devolução dos bens da offshore pelo Ganho de Capital (com alíquotas progressivas de 15% a 22,5%), a Receita Federal destacou que “na devolução do capital em dinheiro não existe alienação, pois o capital devolvido não havia deixado de ser propriedade do acionista/ quotista/ titular em referência.”

Ao falar que não há uma “alienação”, foge-se das regras clássicas do Ganho de Capital, que leva em conta o resultado positivo em determinada alienação (por exemplo, venda de imóvel ou venda de participação societária).

Afastada a hipótese de alienação e apuração de ganho de capital, a Receita Federal passa a responder o segundo questionamento do contribuinte, notadamente quanto à possibilidade de aplicar a isenção de que trata o artigo 39, inciso XLVI do Decreto 3.000/1999 (é isenta “a diferença a maior entre o valor de mercado de bens e direitos, recebidos em devolução do capital social e o valor destes constantes da declaração de bens do titular, sócio ou acionista, quando a devolução for realizada pelo valor de mercado.”)

Para tentar fugir da “armadilha” criada, a Receita Federal se perde.

A Receita Federal se apega no termo “valor de mercado de bens e direitos” para dizer que a “referida isenção é aplicável à devolução de capitais em bens e direitos” e não em casos de“devolução de capital em dinheiro”.

Conclui a Receita Federal que a operação que envolve devolução de capital em dinheiro, “por não ser alcançada por isenção, o rendimento resultante da diferença positiva auferida na devolução de capital está sujeito ao Imposto sobre a Renda” com base na tabela progressiva (artigos 1ª a 3º da Lei 7.713/1988).

Forma-se o seguinte cenário: (i) na devolução de capital em dinheiro deve ser aplicada a tabela progressiva do IR (Carnê-Leão), até 27,5%; (ii) na devolução de capital mediante entrega de outros bens e direitos é aplicável a isenção de que trata o artigo 39, inc. XLVI do Decreto 3.000/1999.

É possível encontrar na internet diversos consultores e inclusive renomados escritórios de advocacia criticando fortemente esse posicionamento, defendendo que sobre a variação positiva obtida na dissolução ou devolução de capital de sociedade offshore deve-se apurar Ganho de Capital ao invés do Carnê-Leão.

No entanto, o pior de tudo, é que, sem saber, a Receita Federal acertou na sua conclusão quanto à aplicabilidade do Carnê-Leão.

Apenas a fundamentação utilizada é que está totalmente errada e, como veremos a seguir, começou a proliferar interpretações equivocadas, a exemplo na recente Solução de Consulta Disit 3008/2019, que será analisada mais adiante.

Para rebater o argumento do contribuinte de que deveria ser reconhecida a isenção em relação ao ganho obtido na devolução dos bens ao sócio, bastava dizer que a norma em análise (artigo 39, inciso XLVI do Decreto 3.000/1999) decorre do artigo 22, § 4º da Lei 9.249/95, que alterou a sistemática de tributação do ganho obtido na redução de capital de bens pelo valor de mercado, passando a tributar a pessoa jurídica antes, tornando os rendimentos da pessoa física isentos.

Ou seja, não se pode ler o artigo 22, § 4º da Lei 9.249/95 isoladamente, sem considerar o § 1º do mesmo artigo. Veja-se ambos:

Art. 22. Os bens e direitos do ativo da pessoa jurídica, que forem entregues ao titular ou a sócio ou acionista. a título de devolução de sua participação no capital social, poderão ser avaliados pelo valor contábil ou de mercado.
§ 1º No caso de a devolução realizar-se pelo valor de mercado, a diferença entre este e o valor contábil dos bens ou direitos entregues será considerada ganho de capital, que será computado nos resultados da pessoa jurídica tributada com base no lucro real ou na base de cálculo do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido devidos pela pessoa jurídica tributada com base no lucro presumido ou arbitrado. (…)
§ 4º A diferença entre o valor de mercado e o valor constante da declaração de bens, no caso de pessoa física, ou o valor contábil, no caso de pessoa jurídica, não será computada, pelo titular, sócio ou acionista, na base de cálculo do imposto de renda ou da contribuição social sobre o lucro líquido.

Na linha do raciocínio do artigo acima, a tributação ocorreria dentro da pessoa jurídica, antes do patrimônio chegar ao sócio pessoa física, tornando os rendimentos desse isentos.

Mas como isso seria possível se estamos falando de uma sociedade offshore? Os paraísos fiscais não vão tributar os ganhos obtidos pela utilização do valor de mercado na devolução de bens. E os sócios pessoas físicas vão receber rendimentos isentos mesmo assim?

Essa reflexão é válida para destacar que o ganho existente dentro de uma sociedade offshore nada mais é que Lucro, cuja tributação é diferida até o momento da realização (ver artigo).

Se o contribuinte possui, por exemplo, USD 500.000,00 de investimento em sociedade offshore declarado no Imposto de Renda Pessoa Física – IRPF, o que a sociedade offshore detiver além desse saldo, subtraídos os passivos, será via de regra Lucro.

Isso seria facilmente evidenciado caso a sociedade offshore possuísse escrituração contábil (obrigação ainda não mandatória, embora altamente recomendável).

Caso fosse utilizada a opção de devolver o ativo ao sócio pelo valor de mercado, seria apurado um Lucro dentro da offshore, o qual seria realizado quando da devolução de bens ao sócio.

Ou seja, no final, não se trata de falar se há ganho tributável da pessoa jurídica e rendimento isento do sócio, mas sim em realização do lucro represado no exterior quando da dissolução ou devolução de capital offshore.

E sobre esse ponto não há dúvidas de que a tributação é de acordo com a tabela progressiva (Carnê-Leão), tal como concluído, com sorte, pela Receita Federal.

Embora a Receita Federal tenha respondido ao contribuinte da forma mais onerosa possível, tendo a sorte de ter acertado na sua conclusão, parece ter deixado uma brecha no sentido de isentar um ganho na devolução de bens quando envolver ativos não financeiros (imóveis, por exemplo).

Como a linha equivocada de resposta da Receita Federal foi no sentido de limitar as suas conclusões em operações realizadas em dinheiro, caso a devolução fosse realizada com base em outros bens e direitos (por exemplo, imóveis), a conclusão seria pela isenção.

Ocorre que essa brecha sequer faria sentido, pois, novamente, caso o contribuinte opte por atualizar o valor do bem a mercado e fazer a subsequente devolução do capital, haveria formação de lucro da mesma forma, o qual seria igualmente realizado no ato, com a incidência do IR com base no Carnê-Leão.

Tecnicamente inexiste a suposta brecha deixada pela Receita Federal.

Além disso, não se trata de falar que não há ganho de capital porque não há alienação na devolução de um bem ao seu ulterior proprietário.

Trata-se de “separar o joio do trigo”. Uma coisa é analisar a devolução do capital (sujeito ao ganho de capital), outra coisa é analisar o resultado positivo represado na sociedade offshore (realização do lucro com base no Carnê-Leão, até então diferido).

Esclarecidos os fatos e argumentos expostos na Solução de Consulta Cosit 678/2017, cumpre demonstrar o equívoco que a mesma vem produzindo, como é o caso da recente Solução de Consulta Disit 3008/2019.

Solução de Consulta Disit 3008/2019
A primeira pergunta feita pelo contribuinte se assemelha ao caso anterior, onde se busca confirmar a tributação existente na devolução de capital detido em sociedade offshore ao sócio.

A segunda pergunta feita é se os ativos regularizados no âmbito do RERCT seriam considerados como “rendimentos auferidos originariamente em moeda estrangeira” para o fim de afastar a apuração de ganho de capital sobre a variação cambial positiva verificada no momento da devolução dos bens ao sócio.

Ao responder à consulta, a Receita Federal replica os fundamentos expostos na Solução de Consulta Cosit 678/2017, no sentido de que todo o ganho deveria se sujeitar à apuração do Carnê-Leão.

Novamente, se faz necessário separar a natureza dos rendimentos: o que é capital e o que é lucro da companhia offshore.

Em relação ao lucro represado na companhia offshore, sem dúvidas haverá a incidência do imposto de renda com base no Carnê-Leão no momento da sua realização.

Agora no que tange ao capital social, não há que se falar em Carnê-Leão. Se o contribuinte está devolvendo o capital investido na companhia offshore de, por exemplo, USD 500.000,00, a única tributação a que estaria sujeito seria o Ganho de Capital sobre a possível variação cambial.

No entanto, a tributação da variação cambial depende da origem do ativo: se decorrente de moeda nacional ou estrangeira, tal como determina a Instrução Normativa 118/2000, objeto de questionamento pelo contribuinte.

Se o contribuinte remete recurso ao exterior (via contrato de câmbio) a título de aporte de capital, o capital social da empresa terá sido adquirido com rendimentos auferidos originariamente em moeda nacional, o que levará à apuração do Ganho de Capital sobre a variação cambial quando esse capital for devolvido ao sócio.

Por exemplo:

– Custo de aquisição: USD 500.000,00 x 2,6562 (taxa do dólar no RERCT) = R$ 1.328.100,00.
– Devolução de capital: USD 500.000,00 x 3,60 (taxa hipotética na data da devolução de capital) = R$ 1.800.000,00
– Variação Cambial = R$ 471.900,00
– IR GCAP (15%) = R$ 70.785,00

Já no caso de capital social adquirido com recursos de origem estrangeira, o ganho de capital é auferido em dólar, o que afasta o impacto da variação cambial.

Por exemplo:

– Custo de aquisição: USD 500.000,00
– Devolução de capital: USD 500.000,00
– Variação Cambial = 0
– IR GCAP (15%) = 0

A Receita Federal, além de perder a oportunidade de se manifestar quanto a natureza dos ativos regularizados no âmbito do RERCT, acaba ainda determinando que uma potencial variação cambial sofrida na devolução de capital seja atingida pelo Carnê-Leão (até 27,5%), o que é equivocado.

Quanto a origem dos ativos regularizados no âmbito do RERCT, entendo que o correto é considerá-los como de origem em moeda estrangeira, dado que na data em que foram considerados juridicamente disponíveis (31/12/2014 no caso do 1º RERCT), o recurso era estrangeiro, sem marcação à Real (R$) prévia.

Sobre a variação cambial incidente sobre a devolução do capital social de empresa regularizada no âmbito do RERCT, portanto, não haveria que se falar em ganho de capital sobre a variação cambial e muito menos aplicação da tabela progressiva (Carnê-Leão).

No final do filme Tróia, Achilles reconhece o equívoco cometido e aceita devolver Hector ao seu pai Priam, para um funeral apropriado e merecido.

Será que a Receita Federal também fará o mesmo que Achilles?

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    é advogado e consultor, especializado em Direito Tributário. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Pós-graduado em Direito Tributário. Mestre em Direito Empresarial e Cidadania. Conselheiro no Conselho de Contribuintes e Recursos Fiscais do Estado do Paraná (CCRF).

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