Opinião

Tribunais do trabalho, direito jurisprudencial e segurança jurídica

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1 de abril de 2019, 6h13

No último dia 20 de março reuniu-se o órgão plenário do Tribunal Superior do Trabalho (TST), com o objetivo de examinar a Arguição de Inconstitucionalidade do art. 702, I, “f”, da CLT, com a redação dada pela Lei 13.467/2017. Fundamentalmente, caberia ao TST considerar se o referido dispositivo legal, que inseriu critério rigoroso para o exercício da competência privativa ligada à edição de diretrizes jurisprudenciais pelos tribunais trabalhistas, seria ou não compatível com as regras e princípios da Carta Política de 1988.

Trata-se, como se sabe, de questão tecnicamente prejudicial para a análise das propostas pendentes e futuras de cancelamento, alteração e edição de súmulas e orientações jurisprudenciais no âmbito do TST. Afinal, disciplinada a matéria pelo legislador, não poderia a Corte Superior da Justiça do Trabalho avançar no exame das propostas de adequação de sua jurisprudência, desconsiderando o novo rito legal introduzido, sob pena de ofensa às noções centrais da legalidade e do devido processo legal (CF, arts. 5º, II e LIV).

Após a instauração do procedimento cabível para a análise da questão e regular designação de pauta para julgamento, sobreveio a propositura de Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) por entidades sindicais patronais, o que acabou levando à suspensão do julgamento pelo TST. Muito embora a suspensão em causa não fosse necessária, ante a ausência de decisão liminar nesse sentido, compreendeu-se que o risco eventual de decisões dissonantes, nas vias difusa e concentrada, poderia arrostar a noção essencial da segurança jurídica, nulificando as decisões administrativas subsequentes, que seriam editadas em processos de revisão de súmulas e orientações jurisprudenciais.

Ainda que se possa considerar legítimo o questionamento deduzido na via do controle concentrado de constitucionalidade, o retardamento gerado para o enfrentamento das tantas questões jurídicas relevantes, especialmente as que estão ligadas à Reforma Trabalhista, faz prolongado em demasia o estado de dúvidas e incertezas que já deveria ter sido debelado em respeito às noções essenciais de previsibilidade e de proteção da confiança (segurança jurídica).

Independentemente dos eventuais resultados que venham a ser alcançados, com a reserva de eficácia da legislação anterior aos contratos em vigor ao tempo do advento da Lei 13.467/2017 ou com a cisão normativa e consequente submissão desses velhos contratos às novas regras, fato é que essa “virada de página” precisa ser enfrentada o quanto antes, estabilizando as expectativas antagônicas em torno do tema.

Durante a tramitação da Reforma Trabalhista e mesmo após a sanção da Lei 13.467/2017, assistiu-se a um intenso debate entre diversos atores das cenas política, acadêmica e jurídica a propósito do sistema ideal de regulação das relações entre o capital e o trabalho, bem assim do conjunto de regras processuais que deveriam orientar a gestão dos conflitos submetidos ao Poder Judiciário. Entre a defesa do sistema secular inscrito na Consolidação das Leis do Trabalho, que recebeu ajustes pontuais ao longo do tempo, e a mudança significativa das bases desse modelo, no âmbito das relações individuais e coletivas de trabalho, as posições antagônicas então sustentadas bem demonstraram a relevância que o tema oferece, sob as perspectivas econômica, social, jurídica e política.

Afinal, se o direito do trabalho surgiu como forma de correção das iniquidades observadas no alvorecer do capitalismo moderno, buscando preservar conteúdos éticos mínimos em relações jurídicas marcadas por profunda assimetria entre os sujeitos contratantes, nada mais natural que a disputa em torno dos conteúdos desse sistema sempre estivesse amparada em contundentes e fortes argumentos: os trabalhadores, em busca da consagração de novas vantagens em instantes de expansão da atividade econômica e de preservação de direitos em momentos de retração; os empregadores, visando à redução ou flexibilização desses direitos, adequados que deveriam ser às realidades e possibilidades próprias a cada segmento econômico, além da ampliação do espaço de negociação individual e coletiva dos próprios conteúdos dos contratos de trabalho, afastando-se, na máxima medida possível, a intervenção estatal.

No conjunto de argumentos favoráveis às múltiplas inovações que resultaram na Lei 13.467/2017, sustentava-se a necessidade de flexibilizar e modernizar a legislação, como condição necessária para ampliar a competitividade das empresas nacionais e gerar novos empregos, atendendo à realidade econômica globalizada e às inovações legadas pelo progresso da tecnologia. Também afirmava-se a necessidade de adequação da legislação à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no plano da negociação coletiva de trabalho (RE 590.415) e a importância de se restabelecer o equilíbrio na interpretação e aplicação das regras de direito material, que teria sido rompido pela forma como a jurisprudência que se edificou ao longo dos últimos anos compreendeu e aplicou o ideal protetivo que figura na base do próprio Direito do Trabalho.

Nesse momento, interessa-nos apenas a análise de um dos resultados do processo legislativo, com o qual se pretendeu criar alguns mecanismos de contenção da atividade jurisdicional, nos domínios da jurisdição laboral, de que são exemplos os artigos 8º, §§ 2º e 3º, e 702, I, “f”, da CLT. Não pretendemos, portanto, avaliar a validade ou veracidade do argumento crítico indicado como premissa para essas inovações, mas é preciso relembrar que a atividade de interpretar textos jurídicos, buscando fixar seu conteúdo, significado e alcance, exige sempre, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos consciente, o concurso axiológico do intérprete, em um processo de construção de sentido desenvolvido a partir das pré-compreensões que lhe foram fornecidas pelo “sistema de referência” constitutivo de sua subjetividade.

Por ser um produto cultural necessário, o Direito está inequivocamente impregnado de valores que transitam com maior ou menor densidade entre as normas jurídicas que o compõem. E essa atividade de interpretar ganha importância e complexidade no marco atual do denominado pós-positivismo ou neo-constitucionalismo, em que as normas de conteúdo ou natureza principiológica, antes concebidas como “estados ideais” ou ideias abertas e gerais vocacionadas a iluminar o trabalho do legislador, passaram a ser interpretadas e aplicadas diretamente pelos operadores do direito, em todos os níveis, gerando realidades e disputas interpretativas complexas e incertezas em torno do próprio significado de muitas das regras que compõem a ordem jurídica.

A circunstância de que a atividade interpretativa é marcada pela subjetividade ou pelas pré-compreensões do intérprete não significa, notadamente no campo da jurisdição, que as leituras individuais realizadas pelos magistrados estejam imunes a qualquer espécie de controle. Muito ao contrário, do ponto de vista objetivo, a ordem jurídica exige motivação clara, consistente e racional como condição de legitimidade da ação jurisdicional (CF, art. 93, IX c/c o art. 489, par. 1º., do CPC), disponibilizando aos cidadãos ainda um extenso arsenal de recursos e medidas autônomas voltados à impugnação dessas decisões.

Mas esse dever ético e moral de ampla motivação das decisões ganha expressão no âmbito dos tribunais, nos quais a regra da “colegialidade” impõe aos julgadores ainda um dever adicional, de natureza subjetiva, ligado à necessária abertura às demais interpretações possíveis, numa espécie de “alteridade do texto”, proporcionada pelo concurso de outras subjetividades igualmente legitimadas, no rito dialético observado nas sessões de julgamento.

Mas, para além dessas considerações, é preciso relembrar e reafirmar que a ideia da proteção ao trabalhador representa o principal pilar de sustentação da legislação laboral, segundo a doutrina universal do direito do trabalho. Figura a noção da proteção como princípio-matriz desse segmento da ciência jurídica, do qual decorrem alguns subprincípios, entre os quais o clássico “in dubio pro operário”, cujo significado, em rigorosa síntese, sugere que as dúvidas acerca do sentido e alcance de qualquer regra jurídica devem ser resolvidas com a adoção da conclusão mais favorável ao trabalhador.

No entanto, se é certo que a atividade jurisdicional deve buscar, na máxima medida possível, a realização do valor Justiça, é igualmente evidente que a interpretação e aplicação de normas de conteúdo protetivo não pode ser exercida de forma acrítica e objetiva, na medida em que a atividade de adjudicação de soluções aos conflitos pelos órgãos do Poder Judiciário deve ser exercida, sempre, com equilíbrio e em harmonia com outros valores sociais sensíveis, entre os quais a equidade, a ética, a probidade e a boa-fé.

Diferentemente do que supõem alguns, portanto, são múltiplas as situações em que a melhor interpretação das normas jurídicas trabalhistas não se confunde com a defesa objetiva e cega dos interesses dos trabalhadores.

Superadas essas questões, e retomando o propósito deste breve ensaio, cabe discorrer, em perspectiva crítica, acerca da nova regra do art. 702, I, “f”, da CLT, dispositivo que impõe aos tribunais do trabalho critérios rigorosos para a edição ou alteração de súmulas e outros enunciados de jurisprudência uniforme, exigindo o voto de pelo menos dois terços dos membros dos tribunais, caso a mesma matéria já tenha sido decidida de forma idêntica por unanimidade em, no mínimo, dois terços das turmas em pelo menos dez sessões diferentes em cada uma delas.

Sem embargo de que os requisitos postos pelo legislador dificultam sobremaneira – se não tornam praticamente inexequível – a tarefa legalmente prevista de conferir publicidade às teses jurídicas pacificadas pelos tribunais, assegurando previsibilidade e segurança ao conjunto da sociedade, há aspecto de ordem prejudicial que envolve a própria constitucionalidade da referida prescrição, a qual, salvo melhor juízo, não poderia ser disciplinada pelo legislador ordinário.

Como se sabe, no sistema democrático, a existência de órgãos jurisdicionais vocacionados à revisão de decisões judiciais se justifica por razões de ordem jurídica e política. A par de reconhecer a falibilidade inerente à condição humana do julgador e a própria tendência de não conformação com situações gravosas por parte dos jurisdicionados, aspectos por si só capazes de justificar a previsão de pelo menos uma instância ordinária de revisão, cuidou o legislador de consagrar de modo expresso o princípio do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recurso a ela inerentes (CF, art. 5º, LV).

Também compete a todos os tribunais, inclusive na esfera ordinária de jurisdição, a concessão de tratamento uniforme aos jurisdicionados que estão em idênticas posições jurídicas, sendo inadmissível o cenário de insegurança gerado pelo fenômeno — embora inevitável, mas controlável e superável — da dispersão jurisprudencial. Não por outra razão, impôs o legislador a todos os tribunais, indistintamente, o dever de manter a estabilidade, unidade e coerência de suas decisões (CPC, art. 926).

Reconhecendo a presença de interesse público primário na preservação da própria integridade da ordem jurídica, construto cultural que igualmente representa fator de coesão e unidade sociais, previu o legislador a existência de tribunais posicionados acima da jurisdição ordinária (STF, STJ, TSE e TST), cometendo-lhes a função de controlar a legalidade e a constitucionalidade das decisões judiciais proferidas pelos órgãos de revisão da jurisdição ordinária.

No exercício dessa função de controle de legalidade e constitucionalidade das decisões proferidas pelos demais órgãos do sistema judicial, cabe a esses tribunais resolver em última instância as controvérsias interpretativas em torno das normas do direito, realizando o ideal da segurança jurídica, um dos valores centrais presentes de nossa ordem constitucional.

No exercício dessa singular competência jurídico-política, segundo a tradição do direito brasileiro inaugurada pela Carta Política de 1934 (art. 67) e que foi reafirmada pela atual Constituição de 1988 (art. 96, I, “a”) e também inscrita no CPC de 2015 (art. 926, § 1º), cabe aos tribunais fixar em seus regimentos internos os procedimentos que devem ser observados para que as teses jurídicas pacificadas sejam convertidas em enunciados linguísticos com a denominação de súmulas.

Por isso mesmo, a nova redação atribuída à regra inscrita no art. 702, I, “f”, da CLT, a par de dificultar substancialmente o exercício da atividade precípua dos tribunais do trabalho, ligada à positivação de sua jurisprudência uniforme, parece sugerir inescusável afronta ao próprio Texto Constitucional, que assegura privativamente, de forma clara e inequívoca, como demonstrado, um espaço de conformação normativa interna aos tribunais para regular o exercício de suas competências, notadamente essa expressiva e singular competência que ostenta caráter dúplice (administrativa e jurisdicional) e que
envolve a fixação de parâmetros e procedimentos para a edição de diretrizes jurisprudenciais.

Note-se que o legislador processual comum respeitou a reserva de competência constitucionalmente prevista em relação a todos os tribunais (CPC, art. 926, § 1º), o que não apenas confirma a tese de que a matéria versada pelo legislador reformista da CLT está afeta à economia e disciplina interna dos tribunais do trabalho, como igualmente expõe inescusável assimetria sistêmico-institucional que exige pronta correção.

São vários os dispositivos presentes no CPC que reafirmam a competência normativa primária dos tribunais em questões de índole processual: procedimento para exame de arguições de impedimento e suspeição nos tribunais (art. 148, § 1º); fixação de prazos para a prática de atos processuais, cujo descumprimento pode gerar reclamação ao
Conselho Nacional de justiça – CNJ (art. 235); critérios para a distribuição de processos (art. 930); definição de competências do relator de recurso nos tribunais (art. 932, VIII); definição de casos adicionais em que, além dos legalmente previstos, poderá haver sustentação oral (art. 937, IX); critério para composição de magistrado para formação de quórum (arts. 940, § 2º e 942); critérios para a intervenção em arguições de inconstitucionalidade pelas pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado e pelos entes legitimados para as ações de controle concentrado de constitucionalidade (art. 950, §§ 1º e 2º).

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como expressão da autonomia que decorre do próprio postulado da separação dos poderes (art. 2º da CF), está também pacificada a compreensão de que os tribunais possuem competência normativa para a regulação de questões de economia interna, que podem alcançar a definição de ritos e procedimentos, como antes demonstrado, exigindo-se apenas que sejam sempre respeitadas as garantias processuais fundamentais dos cidadãos. São eloquentes, e por isso devem ser revisitados, os motivos expostos no exame da liminar formulada nos autos da ADI 1127-8 DF, ocasião em que foram delineados o sentido e alcance da regra constitucional que reserva a privativa competência aos tribunais para dispor sobre assuntos ligados ao autogoverno do Poder Judiciário, respeitando-se, sempre, insista-se, as garantias processuais fundamentais do cidadão.

Resta, portanto, a expectativa de que a Excelsa Corte, no exame da Ação Declaratória de Constitucionalidade que lhe foi apresentada, resolva em breve, e de forma definitiva, a questão, possibilitando que os tribunais do trabalho retomem o exercício regular de uma de suas principais competências. Enquanto isso não ocorrer, remanescerão dúvidas e incertezas em torno do significado de muitas das prescrições legais introduzidas pela Reforma Trabalhista, com sérios prejuízos aos próprios destinatários das normas do Direito do Trabalho.

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