Segunda Leitura

A Constituição Federal de 1988, sonhos, conquistas e futuro

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

30 de setembro de 2018, 8h00

Spacca
Vladimir Passos de Freitas [Spacca]Dia 5 de outubro de 1988, o Brasil, cheio de esperança de um futuro risonho, recebia sua nova Constituição. Aguardada por décadas, ela reimplantava a democracia plena e sepultava de vez o período do regime militar. Dela, todos esperavam dias de paz, prosperidade e inclusão social, tudo dentro do estado de Direito, o the rule of law dos países anglo-saxões.

Pois bem, passados 30 anos, preparam-se comemorações de toda ordem. Apregoa-se, quase à unanimidade, a excelência da Constituição. Na verdade, falta uma discussão crítica, uma análise mais ampla, com mais razão e menos emoção.

Uma pergunta inconveniente deve ser feita: se a Constituição é tão boa, por que chegamos a tão grave situação econômica e social? Afinal, a educação segue em queda flagrante. A saúde está envolvida em graves problemas estruturais. A segurança pública, sufocada pela criminalidade urbana e pelo crime organizado. O desemprego atinge milhões de pessoas. A corrupção segue firme, a economia debilitada e até o futebol perde o protagonismo de outrora.

É difícil a resposta. O melhor a fazer é reconhecer os méritos da Lei Maior, sem esconder suas falhas e, quanto a estas, tentar minorá-las.

Com efeito, inegavelmente existem muitos aspectos positivos na Constituição de 1988, verdadeiras conquistas da cidadania. E o primeiro deles é o de vivermos a democracia em sua plenitude. O fato é melhor compreendido pelos que viveram períodos ditatoriais. Por exemplo, o temor de uma Justiça parcial, como a vivida no período do Estado Novo, onde o Tribunal de Segurança Nacional julgava crimes políticos, ou no regime militar, os juízes tinham as garantias constitucionais suspensas.

Além disto, a Carta Magna fortaleceu as instituições jurídicas, magistratura, Ministério Público e Defensoria Pública, fazendo com que hoje seja possível a prisão de poderosos, ainda que ocupem importantes cargos públicos ou possuam poderio econômico.

E mais. Pela primeira vez, reconheceu indígenas e quilombolas como parte integrante da nossa cultura e deu-lhes direitos, que devem e são, ainda que parcialmente, reconhecidos (artigo 215, § 1º). Protegeu o meio ambiente de forma explícita (artigo 225) e reconheceu e implementou os direitos do consumidor (artigo 30, inciso XXXII). Reconheceu o concurso público como regra geral de ingresso no serviço público (artigo 37, inciso II) e deu, de forma inédita nas nossas Constituições, realce à garantia dos direitos fundamentais (artigo 5º).

No entanto, nem tudo produziu bons resultados.

Em alguns aspectos, a Constituição ficou mais em sonhos do que em conquistas. A começar pelo tamanho. Para atender às múltiplas reivindicações, aos desejos de todos os que queriam defender seus interesses, ela tornou-se enorme, minuciosa e às vezes até contraditória. Chegou até a prever que o Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, permanecesse na órbita federal (artigo 242, § 2º).

O segundo aspecto, e talvez o mais grave, foi o das concessões sem cobrança. Pródiga nas dádivas, descuidou a Constituição de prever os deveres. Certamente por vir logo após um longo período ditatorial, ela deu enorme poder às pessoas e enfraqueceu o Estado. O rigor das normas, o respeito à autoridade, os símbolos cívicos, foram confundidos com simpatia ao regime militar. Não perceberam os atores, inclusive do Poder Judiciário, que este esgarçamento, pouco a pouco, de forma pouco perceptível, levaria a uma rotina anárquica. Vejamos dois exemplos.

O direito à ampla defesa (artigo 5º, inciso LV), sem dúvida de importância máxima, acabou chegando a extremos que ferem o bom senso. Por exemplo, um condenado que cumpre pena em regime domiciliar com tornozeleira eletrônica e desobedece aos limites da concessão (por exemplo, saindo a noite sem autorização do juiz), não tem o benefício revogado imediatamente, como manda o senso comum. Na prática judiciária, ele é ouvido, depois se manifesta o Ministério Público e, cerca de um mês depois, sobrevém a decisão judicial. Óbvio que isto desestimula o cumprimento das regras, dissemina a descrença no sistema. A resposta à infração tem que ser imediata, suspensão do benefício enquanto se discute o motivo do descumprimento.

Ao afirmar que ninguém será considerado culpado até sentença penal condenatória transitada em julgado (artigo 5º, inciso LVII), suscitou uma enorme polêmica sobre a melhor interpretação da norma, resultando controvérsia sobre a execução da condenação penal em segunda instância. Com isto retardou o desfecho de milhares de processos por muitos anos e resultou na prescrição de outros tantos

No âmbito dos Poderes de Estado, no Executivo o presidente da República tornou-se refém do Congresso Nacional, ficando impedido de governar se não contar com o apoio do Parlamento. O resultado foi a utilização mal interpretada da frase da oração de São Francisco de Assis, “é dando que se recebe”, passando os ministérios, a serem conduzidos por pessoas despreparadas ligadas a partidos políticos. O Legislativo passou a ser substituído pelo Judiciário em temas polêmicos.

No Judiciário, a ampliação da competência do STF fez com que a Corte Suprema se tornasse congestionada, não conseguindo dar conta de sua importante missão. O Superior Tribunal de Justiça, última palavra em matéria de lei, na realidade tornou-se um intermediário entre o Supremo e as cortes de apelação. Não solucionou o problema da morosidade, ao contrário, agravou-o porque na prática acabou sendo uma terceira instância. A primeira e a segunda instância, inclusive de locais pouco populosos, veem acumular-se os processos e todas as tentativas de agilização se revelam frustradas.

Há, ainda, na Carta Política alguns dispositivos constitucionais que se mostram neutros. Por exemplo, o artigo 3º, inciso I, remete à prática da solidariedade. É óbvio que devemos ser solidários para com o próximo em qualquer situação. No entanto, isto se pratica a partir da formação de cada um, sendo a educação recebida na infância o principal fator. Os exemplos são mais importantes que as palavras. Não será porque está escrito na nossa Constituição que alguém será solidário. Assim, o valor da referência constitucional acaba sendo pouco expressiva, equivale ao de um conselho.

Há hipóteses em que transformações na sociedade se deram mais como consequência do espírito do nosso tempo do que por força direta da Constituição. Por exemplo, as uniões homoafetivas. Ao contrário do que muitos supõe a Constituição não dispõem a respeito (artigo 226, § 3º). O que ela veda é a discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (artigo 5º, inciso LXI). Na verdade o tratamento foi alterado pelos tribunais em razão de movimentos internacionais e da força de manifestações internas. Em outras palavras, porque a sociedade mudou e o tratamento jurídico deveria acompanhar as mudanças.

Em suma, há muito de bom na Carta Magna, conquistas realizadas, mas também muitos aspectos que, passados trinta anos, continuam sendo sonhos irrealizáveis.

No mundo real, não basta que o artigo 5º da Lei Maior garanta o respeito aos direitos fundamentais e nem que os direitos sociais estejam assegurados a todos os brasileiros (artigos 5º e 6º) se não houver como torna-los realidade. Normas e decisões judiciais não criam dinheiro, empregos e nem suprem as dificuldades econômicas dos estados e municípios. Nunca será demais lembrar a máxima: Ad impossibilia nemo tenetur, ou seja, “Ninguém está obrigado ao impossível”.

Por exemplo, o fato da Constituição assegurar o reconhecer aos brasileiros o direito à saúde (artigo 6º) não significa que todos tenham direito a tratamentos no exterior ou a remédios caríssimos, porque isto se subordina à previsão orçamentária do Poder Público e nem em países desenvolvidos como Suécia e Canadá este direito é absoluto.

Portanto, os 30 anos da Constituição, período de tempo que para os humanos faz presumir maturidade, devem ser comemorados. Todavia, o brinde não deve ser feito de maneira ingênua, na vã suposição de que os múltiplos artigos da Carta Magna dão-nos a garantia de um país próspero e um povo feliz. Às suas promessas de direitos devem corresponder deveres, aos seus sonhos a adequação à realidade.

O melhor caminho é festejar as conquistas, promover emendas nos aspectos que se revelaram descumpridos e, no mais, interpretar os dispositivos constitucionais com os olhos postos na nossa realidade. Confiemos.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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