Opinião

Anatomia do crime de importunação sexual tipificado na Lei 13.718/2018

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30 de setembro de 2018, 13h15

No dia 25 de setembro foi publicada a Lei 13.718 que tipifica os crimes de importunação sexual[1], divulgação de cena do crime de estupro, de sexo ou pornografia, além do crime de induzimento ou instigação a crime contra a dignidade sexual. Tratam-se de três tipos penais de extraordinária importância, preenchendo importantes lacunas em nosso sistema penal, como deixaram claro os graves fatos ocorridos no interior dos meios de transportes públicos de São Paulo, com criminosos ejaculando, impunemente, em mulheres indefesas e comprimidas nesses locais, sem chance de defesa. Em situações como essas — agora tipificadas como importunação sexual — o executor da ação degradante violenta a dignidade sexual da vítima, que é ultrajada, vilipendiada e humilhada por uma conduta repugnante e indigna do referido agressor. Nessas hipóteses, a vítima ofendida fica impotente sem qualquer possibilidade de reagir ou se defender pelo inesperado, pelo inusitado, pela surpresa da “agressão” sexual realizada pelo agente, para satisfazer a sua lascívia ou a de outrem.

Essas ações de indivíduos inescrupulosos, por exemplo, ejaculando, furtivamente, nas vítimas no interior de coletivos (trens, metrôs, ônibus etc.) não encontravam adequação típica nas molduras penais em vigor, vagando no universo sócio-jurídico brasileiro à procura de um tipo penal até então inexistente. Eventualmente, condutas semelhantes poderiam adequar-se ao crime de “ato obsceno”[2] (artigo 233), que é uma infração penal contra o ultraje ao pudor público, cuja pena cominada é de três meses a um ano de detenção, que, convenhamos, é absolutamente desproporcional à gravidade da conduta praticada. Ademais, essa infração penal — ato obsceno — não tem um sujeito passivo individual (destinatário da ação), ao contrário do que ocorre na conduta referida. Na verdade, a coletividade é o sujeito passivo do crime de ato obsceno, como regra, podendo, eventualmente, também figurar alguém como sujeito passivo.

Sujeitos ativo e passivo
Sujeito ativo, como crime comum, pode ser praticado ou sofrido, indistintamente, por homem ou mulher, sendo indiferente o gênero do sujeito ativo e do sujeito passivo, inclusive por ex-maridos, ex-namorados ou ex-companheiros após o término da relação, e, nesta última hipótese, ganha especial relevo a ausência de consentimento da vítima. Sujeito passivo, igualmente, pode ser, independentemente, homem ou mulher, embora seja mais comum as mulheres estarem mais sujeitas a essa exposição e até pela natureza feminina correm mais riscos de serem exploradas, abusadas e até humilhadas por indivíduos inescrupulosos, em quaisquer circunstâncias. As pessoas do sexo feminino estão mais sujeitas a violações dessa natureza, inclusive em términos de relações afetivo-sexuais, inclusive por vingança.

Tipo objetivo: adequação típica
O tipo descrito no artigo 215-A prevê uma única modalidade de conduta delituosa, qual seja, praticar — na presença de alguém —, isto é, na presença da vítima, qualquer ato libidinagem, como é o caso do exemplo clássico, ejacular na presença, ou na própria vítima, como ocorreu no interior de coletivos urbanos deste país. Assemelha-se a essa conduta — e, por isso mesmo, está abrangida por este tipo penal — quando alguém, sem que a vítima perceba ou contra o seu assentimento, apalpe as suas regiões pudendas (nádegas, seios, pernas, genitália etc.), beijo forçado etc., cuja forma de execução traz consigo a presença inequívoca da vontade consciente de satisfazer a própria lascívia ou a de outrem. Nesses casos, o agente aproveita-se da desatenção da vítima, do local em que se encontra, das circunstâncias de tempo e lugar ou da sua eventual dificuldade de perceber a intenção lasciva daquele. Em outros termos, o agente desrespeita a presença de alguém e pratica, sem sua anuência, ato libidinoso buscando satisfazer sua própria lascívia ou a de terceiro). Na verdade, o agente aproveita-se da presença de alguém (a vítima) e, de inopino, o surpreende, e sem sua anuência, pratica ato libidinoso, ofendendo-lhe a liberdade e a dignidade sexuais.

Enfim, a prática de atos de libidinagem, na presença da ofendida (ou ofendido), constrange-a a assistir atos de luxúria, de lascívia ou de libidinagem de outrem, sem o seu assentimento, trazendo em seu bojo uma violência intrínseca suficientemente idônea para atingir a liberdade, a honra e a dignidade sexuais da vítima que não pode ser obrigada a sofrer constrangimento imoral e degradante dessa natureza. A forma executiva desse crime é praticar, realizar ou executar ato libidinoso, na presença de alguém, a fim de satisfazer a própria lascívia ou de terceiro.

A ausência de consentimento ou de anuência da vítima (alguém) na prática de ato de libidinagem, na sua presença, é uma verdadeira elementar constitutiva negativa deste tipo penal que, se não existir, afastará a própria adequação típica do ato executado. Dito de outra forma, se houver consentimento ou anuência da vítima na prática do ato libidinoso não haverá crime, pois o que o caracteriza é a sua prática sem a anuência daquela. Com efeito, havendo o seu assentimento não estará contrariando ou ofendendo a sua liberdade e dignidade sexuais. A existência de consentimento na prática de ato libidinoso, na sua presença, afasta a violação à sua liberdade e à sua dignidade sexuais, não se adequando, portanto, à descrição típica.

Ato libidinoso é ato lascivo, voluptuoso, erótico, concupiscente, que pode ser, inclusive, a conhecida conjunção carnal (cópula vagínica) ou qualquer outro ato libidinoso diverso dela, por exemplo, a ejaculação, praticada na presença da vítima e até mesmo nela, “mas não com ela”, e sem a sua anuência. Dentre os atos de libidinagem, pode-se destacar como os mais graves, quando praticados mediante violência física ou moral, o sexo anal e sexo oral, por representarem, nessas circunstâncias, para os mais conservadores, pelo menos, um desvirtuamento de sua finalidade funcional, e, por isso, violenta de forma mais grave a liberdade sexual individual do ser humano e a sua dignidade sexual e, por extensão, a própria dignidade humana. No entanto, as condutas tipificadoras do crime de estupro — conjunção carnal e ato libidinoso diverso (sexo oral e anal) —, logicamente, estão excluídos desta infração penal — importunação sexual — quer por constituírem aquelas infrações penais, quer por sua gravidade que seria desproporcional à pena aqui cominada.

A maior dificuldade, para alguns, é interpretar e admitir que o ato de ejacular sobre uma mulher, sem seu consentimento, possa configurar ato libidinoso. Contudo, para nós, libidinoso é todo ato lascivo, voluptuoso, que objetiva prazer sexual, aliás, libidinoso é espécie do gênero atos de libidinagem que envolve, inclusive, a conjunção carnal (que, por sua natureza e gravidade, não integra este tipo penal). Nessas circunstâncias, não se pode negar, que aquelas ejaculações constrangedoras praticadas — e divulgadas pela mídia —, neste ano de 2018, nos coletivos paulistas, inclusive no corpo de mulheres, sem que as tenham anuído, tipificam, inegavelmente, este crime, por que preenchem todas as elementares constitutivas desta figura penal. A lamentar somente a impossibilidade de retroagir para alcançá-los, pois o Direito Penal só aplicável a fatos futuros e nunca a passados, posto que antes de sua tipificação não constituíam crimes, devendo-se respeitar o dogma da irretroatividade de norma penal incriminadora.

Na presença de alguém
O texto legal utiliza os vocábulos “na presença de alguém” e “sem a sua anuência”, ou seja, com a locução “na presença de alguém” fica claro que o fendido, de qualquer gênero, deve encontrar-se, fisicamente, no local onde se realiza o ato libidinoso. Referido vocábulo têm significado muito específico, iniludível de que o ofendido deve estar, pessoalmente, in loco, ou, dito de outra forma, deve estar “de corpo presente” onde se desenrola o ato libidinoso. Em outros termos, na presença de alguém, significa ante alguém que está presente, alguém que vê ou assiste in loco e na hora em que é praticado, e não, indiretamente, via qualquer mecanismo tecnológico, físico ou virtual, como permitiria o mundo tecnológico.

Para os dicionaristas, na presença de alguém é o “fato de uma pessoa ou uma coisa encontrar-se em um lugar determinado”, e presenciar significa “assistir a, estar presente a”, e, numa segunda versão, pode ser “verificar, observar”[3] algo. Em sentido contrário, comentando vocábulo semelhante constante do artigo 218-A, o professor Guilherme Nucci sustentou, verbis: “Assim não nos parece, pois a evolução tecnológica já propicia a presença — estar em determinado lugar ao mesmo tempo em que algo ocorre — por meio de aparelhos apropriados. Portanto, o menor pode a tudo assistir ou presenciar por meio de câmaras e aparelhos de TV ou monitores. A situação é válida para a configuração do tipo penal, uma vez que não se exige qualquer toque físico em relação à vítima”[4].

Claro está que discordamos radicalmente desse entendimento, pelos fundamentos que expusemos acima. Essa elasticidade interpretativa não é recepcionada pelo Direito Penal da culpabilidade de um Estado democrático de direito, e tampouco pelo princípio da tipicidade estrita, pois abarcaria condutas não abrangidas pela descrição contida no tipo penal incriminador e, sabido é, que nenhuma norma penal incriminadora admite interpretação extensiva.

Ejacular furtivamente em alguém: prática de ato libidinoso não consentido
Os fatos do quotidiano não param de surpreender o legislador, que é incapaz de prever todas as condutas possíveis para criminalizá-las. Quando se poderia imaginar alguém ejaculando, furtivamente, no pescoço de uma distraída senhora no interior de um veículo coletivo, como ocorreu na cidade de São Paulo? Sabe-se agora que este caso do ônibus ocorrido em São Paulo (agosto de 2017), não foi o único, pelo contrário, sua prática é muito mais frequente do que se pode imaginar[5].

Logicamente, situação como essa cria enorme “constrangimento” a qualquer pessoa vítima de “agressão” dessa gravidade, humilhante, degradante e efetivamente constrangedora. Certamente, como veremos adiante, o inusitado da situação não apenas dificulta como também inviabiliza qualquer manifestação ou reação da vítima, que sofreu, de inopino, furtivamente, verdadeira agressão à sua honra, à sua dignidade humano-sexual e à sua liberdade de escolha e manifestação de vontade ou de consentimento. Na realidade, ejacular em alguém, sem o seu assentimento, aproveitando-se de sua distração, surpreende a vítima, impedindo ou dificultando que se defenda ou apresente alguma resistência. Inegavelmente, ejacular em alguém, sem seu consentimento, surpreendendo-o pelo inusitado da situação inesperada, constitui a prática de ato libidinoso, diverso de conjunção carnal. Logo, como veremos adiante, pela presença de todas as elementares descritas no tipo, também caracteriza a novel infração tipificada no artigo 215-A.

Com efeito, a ação de ejacular sobre alguém, especialmente de uma mulher desconhecida, distraída, “desligada” e envolta em seus pensamentos, constitui a prática de um ato de libidinagem repugnante, covarde e cruel, na medida em que é um ato lascivo, voluptuoso e objetiva, igualmente, obter prazer sexual ou erótico, ainda que realizado sem conhecimento e consentimento da vítima, mas sobre ela, como ocorreu na hipótese do indivíduo que ejaculou sobre o pescoço da passageira de um coletivo, que não concorreu de forma alguma para esse fato.

Por outro lado, não se pode ignorar que o ato libidinoso de ejacular, mesmo sobre alguém, não cessa e não se encerra com a ejaculação, puramente, mas se prolonga para além desse momento, posto que o gozo e a satisfação extravasam o momento ejaculatório, de tal forma que a sensação de prazer e de bem-estar do indivíduo estende-se por tempo razoavelmente longo, especialmente em situações patológicas, como é o caso em questão. Segundo estudos científicos, após a ejaculação o organismo reage liberando hormônios que produzem grande sensação de prazer e satisfação sexual. Essa fase prazerosa final da ejaculação integra o próprio ato ejaculatório, que se exaure com esse relaxamento muscular, mas dele não se separa, pelo contrário, o integra.

Sintetizando, pela inexistência de anuência ou de consentimento da vítima, a conduta de ejacular na vítima ou na sua presença, de inopino, configura o crime de importunação sexual e justifica uma pena de dois a cinco anos de reclusão para essa conduta, que objetiva a satisfação da lascívia do autor (ou de terceiro), que age burlando ou dificultando a livre manifestação da vítima, violando a sua liberdade sexual.

Tipo subjetivo: adequação típica
O elemento subjetivo do crime — importunação sexual — é o dolo constituído pela vontade consciente de praticar a ação descrita no tipo penal, qual seja, praticar, na presença de alguém e sem a sua anuência, ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. No entanto, o dolo somente se completa com a presença simultânea da consciência e da vontade de todos os elementos constitutivos do tipo penal, mas, principalmente, do não consentimento da vítima. Com efeito, quando o processo intelectual-volitivo não abrange qualquer das elementares constitutivas do tipo penal, o dolo não se completa e sem dolo não se tipifica o crime de importunação sexual, e não há previsão de modalidade culposa.

O fim especial de satisfazer a própria lascívia (como também a de terceiro) constitui o elemento subjetivo especial do injusto penal e a razão de ser da própria conduta incriminada, aliás, pode-se afirmar, na hipótese de ejaculação, que é a satisfação sexual do agente, não se esgota no ato em si, mas reside, fundamentalmente, na sensação de estar satisfazendo sua lascívia no contato, não autorizado, com outra pessoa, em ambiente público, se expondo para a indefesa vítima, roubando-lhe a satisfação unilateral de sua lascívia ou, eventualmente, também a de terceiro. É como se o agente não se satisfizesse somente com a prática do ato libidinoso propriamente, mas com o fato de ser furtivo, desautorizado e em público. É, pode-se afirmar, verdadeiramente, uma perversão sexual do agente.


1 Art. 215-A. Praticar, na presença de alguém e sem a sua anuência, ato libidinoso, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:

Pena – reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave.”

2 Não ignoramos, inclusive, que alguns casos chegaram a ser tipificados, na ausência de previsão legal adequada, como importunação ofensivo ao pudor (art. 61 da Lei das contravenções penais).

3 Grande dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p. 738.

4Guilherme de Souza Nucci, Crimes contra a dignidade sexual…, p. 50..

5 Esse fato ocorreu no dia 29 de agosto de 2017, na cidade de São Paulo, no interior de um coletivo em que um indivíduo masturbou-se e ejaculou no pescoço de uma mulher que se encontrava distraidamente sentada.

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