Opinião

O paradigma Mourão: o sequestro de 30 anos de experiência constitucional

Autor

  • Gustavo Rabay Guerra

    é advogado doutor em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Membro da International Law Association.

29 de setembro de 2018, 6h58

Resgatando o modelo de Pinochet no Chile, o general Hamilton Mourão, candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro (PSL), planeja a convocação de uma nova constituinte sem a participação de representantes do povo, num delírio autoritário capaz de sacrificar a própria chapa na corrida presidencial.

Em recente evento no Paraná, Mourão defendeu uma nova Constituição para o Brasil, sob o argumento de que a “Carta” deveria ser mais enxuta e conter apenas princípios e valores, segundo ele, imutáveis — como se não houvesse dinâmica social ou a possibilidade de reformas dentro dos parâmetros da própria Constituição. Um alerta ao nobre candidato: essa ideia não possui correspondência em nenhum país do mundo. Nem em Estados teocráticos, baseados em códigos religiosos, como a Arábia Saudita, com sua Lei Básica, de 1992, que compagina a Sharia com o Alcorão.

Quando falamos de democracia, portanto, é óbvio que os sistemas legais preconizam a possibilidade de emendas constitucionais, assegurados limites ao poder de reforma da Lei Maior — as chamadas “cláusulas pétreas”, resultando, assim, em um modelo rígido, mas jamais dotado de princípios e valores imutáveis. E um limite material básico é o de que só poderá haver mudança da Constituição com o respeito aos limites formais: por meio de propostas de emendas à Constituição aprovadas única e exclusivamente pelo parlamento. Simples assim.

Portanto, a ideia do nobre candidato traduz um falso dilema: de que a Constituição traz muitas normas desnecessárias. E ele exemplificou com as seguintes: “horário de trabalho dos bancários, se os juros devem ser tabelados, isso é por lei ordinária”. No entanto, os exemplos citados são falsos — a Constituição de 1988 não regula horário bancário. Nem determina que os juros devem ser tabelados: o artigo 192, que trazia esse tema, foi revogado há 15 anos. Em investida mais recente contra o estatuto fundamental, chegou a afirmar que o 13º salário e as férias remuneradas são prejudiciais à atividade empresarial, não fazem sentido: são “jabuticabas”, segundo o general, recorrendo à expressão que induz o público a pensar que um instituto ou conceito jurídico existe apenas no Brasil, sendo repelido no restante do mundo.

Força de retórica? Bem, o general parece que está desatualizado ou nunca leu a Constituição e nada conhece de sistemas legais que possuem o 13º (como Argentina, Colômbia, Espanha, Itália, México e Portugal, só para enumerar alguns). Na sequência, o próprio cabeça de chapa desautorizou a sandice do general, alertando-o que o 13º salário está previsto no artigo 7° da Constituição e, portanto, se reveste do manto da limitação ao poder de reforma em relação aos direitos fundamentais (não poderia ser proposta emenda tendente a abolir a garantia). Bolsonaro foi textual: “Criticá-lo, além de uma ofensa a quem trabalha, confessa desconhecer a Constituição” (sic).

Sustentando com brutal convicção suas convicções, o general expõe notável despreparo. Até porque, em matéria de constitucionalismo, a extensão ou caráter prolixo de um estatuto fundamental não é sinônimo de baixa qualidade do texto político. Esse apego excessivo às qualidades formais do texto constitucional tem raízes no colonialismo cultural, em especial nas rasas e equivocadas comparações com a tradição norte-americana e, até mesmo, com a experiência incomum e inigualável do Reino Unido, cuja Constituição não radica em um texto unitário, mas na soma de fatores normativos e históricos que a caracteriza, grosso modo, como Constituição não escrita.

Para coroar essa reprochável tese, o general pronunciou que não seria necessária a elaboração da nova Constituição por uma assembleia constituinte, mas por “um conselho de notáveis”, e depois submetida a plebiscito popular. Em sua opinião, a lei política fundamental do Estado não precisa ser editada pelas mãos de representantes eleitos pelo povo. Seria algo como um novo AI-5, como bem disse Lenio Streck. Ou, simplesmente, a reedição das chamadas constituições cesaristas: ao contrário de promulgada pelo Congresso Nacional, seria outorgada e, posteriormente, “confirmada” por plebiscito ou referendo, no afã de ostentar aparência de legitimidade democrática, como sucedeu com a carta chilena da ditadura militar de Augusto Pinochet, de 1980.

Talvez o general Mourão, além de não ter lido a Constituição, ao longo de quase 30 anos de existência, também nunca deve ter se dado ao luxo de pensar a democracia, a legitimidade emanada da soberania popular e os esforços civilizatórios de uma nação que sofreu duros anos de ditadura militar, ao consagrar um texto plural e permeado de direitos sociais. Afinal, nossa democracia jovem não enfrenta problemas crônicos por causa dos artigos da Constituição, mas em razão da classe política que não se dá ao trabalho de implementá-la e se omite na tarefa de concretizar direitos e, por outro lado, do ativismo desenfreado de certos magistrados que subvertem o sentido das normas jurídicas em geral, no ímpeto de preencher o vácuo legislativo e a falta de autoridade do Executivo na regulação de programas políticos sustentáveis.

Atribuir a culpa pela falta de governabilidade ou por controvérsias jurídicas históricas — como o aborto, por exemplo — ao texto da Constituição de 1988 seria o mesmo que culpar a partitura musical pela desafinada do cantor, ou pela falta de harmonia do instrumentista. Nesse quesito, a culpa maior pela baixa qualidade da “Carta” está mesmo no fato de ela não ter sido lida por quem a mais critica, em espasmódico delírio autoritário. Às vésperas das eleições em primeiro turno, ela completará 30 anos. Ainda está em tempo de conhecê-la, general!

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