Opinião

Fundos patrimoniais e doações privadas para projetos de interesse público

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28 de setembro de 2018, 6h39

A frase de Drummond “já é tempo sem hora” nos leva à reflexão sobre como fazer o dinheiro “durar para sempre”. É lamentável o recente incidente que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro, que, dentre as instituições mais antigas, abrigava acervo diversificado com itens sobre cultura, tecnologia, obras de arte, livro e, acima de tudo, nossa história. Em tempos de crise, como alocar os recursos de forma a atender o maior número de necessidades possível é sempre uma constante preocupação. Afinal, o “tempo não para”. Neste cenário, estão em destaque fontes de financiamento: as doações e os fundos patrimoniais.

São novos tempos para desenvolver a “cultura a doação” no Brasil. Afinal, o instituto da doação se desdobra em múltiplas facetas, com nuances de Direito Civil, de Direito Administrativo e de Direito Financeiro. Doação é contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra[1]. É resultado altruístico de uma pessoa que deseja doar para causas sociais[2]. A doação também representa o investimento social privado enquanto alocação voluntária e estratégica de recursos para o benefício público[3]. Do ponto de vista do Direito Financeiro[4], representa, ainda, receita não tributária. O tema é vastíssimo; tão interessante e atual, sendo que este texto propõe apenas impressões e reflexões gerais.

Com isso, pontuo duas novidades legislativas para estes novos tempos. Falo da MP 850/2018 e da MP 851/2018, ambas ainda em tramitação[5].

A primeira é a MP 850/2018, que cria a Agência Brasileira dos Museus (Abram) como serviço social autônomo, na forma de pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, de interesse coletivo e de utilidade pública, com a finalidade de gerir instituições museológicas e seus acervos e promover o desenvolvimento do setor cultural e museal.

Curioso anotar que essa medida extingue o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), antiga autarquia, e cria a Abram enquanto serviço social autônomo. Ficam incorporados ao patrimônio da União os bens móveis e imóveis, além de 27 unidades museológicas, tais como o Museu da República e o Museu Histórico Nacional, dentre outros.

A estrutura da Abram envolve três órgãos: o Conselho Deliberativo, a Diretoria Executiva e o Conselho Fiscal. Dentre as fontes de recursos, residem recursos orçamentários, contribuições sociais nos termos do parágrafo 4 do artigo 8 da Lei 8029/1990, rendas e emolumentos de pessoas físicas ou jurídicas, produto da venda de ingressos e, dentre outras, doações e a exploração do seu patrimônio. O regime de contratação de pessoal consagra empregados regidos pela CLT mediante processo seletivo, com o detalhe de previsão expressa para cargos de direção e assessoramento. Enquanto entidade sem fins lucrativos, está autorizada a firmar contrato de gestão com o Poder Executivo Federal, estando submetida aos instrumentos e controle externo e interno legais e constitucionais.

Dentre as diversas atribuições relativas à gestão dos museus, a Abram deverá desenvolver e executar programas e ações que viabilizem a preservação, a promoção e a sustentabilidade do patrimônio museológico brasileiro, bem como apoiar programas de financiamento para o setor museal.

É curioso observar que a mudança de natureza jurídica, de autarquia para serviço social, aproxima-se da administração gerencial que envolve menor burocratização, no entanto, exige maior transparência, rigor e controle nos valores públicos conduzidos para as finalidades do ente. Essa fiscalização deve conter tanto aspectos formais quanto métodos quantitativos e qualitativos, bem como do controle de resultados, revisão e renovação das metas.

Afinal, como contribuir para a autossustentabilidade financeira da Abram? É um dos desafios deste novo modelo que ora se descortina perante nós com algumas alternativas no horizonte, ou seja, o fortalecimento das parcerias com a sociedade civil por meio do terceiro setor, a busca por fontes privadas de financiamento, tais como o investimento social privado, e, dentre outras, a normatização da doação de direito público[6], no intuito de regular os benefícios financeiros aos doadores.

Nesta linha de raciocínio, a segunda novidade é justamente ligada aos mecanismos de financiamento, pois a MP 851/2018 permite a constituição de fundos patrimoniais com o objetivo de arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público e institui o Programa de Fomento à Pesquisa, ao Desenvolvimento e à Inovação – Programa de Excelência.

No que se refere aos fundos patrimoniais, inova a legislação em dois aspectos: a estruturação do gestor do fundo e a ampliação dos objetivos dos fundos.

Sobre a estruturação para a constituição da organização gestora do fundo patrimonial, que será uma entidade sem fins lucrativos, a ser formado por um Conselho de Administração e Conselho Fiscal, além de ser facultativo um Comitê de Investimento.

Além disso, a MP amplia os objetivos dos fundos patrimoniais, pois estimula doações privadas para projetos de interesse público nas áreas de educação, ciência, tecnologia, pesquisa e inovação, cultura, saúde, meio ambiente, assistência social e desporto.

Embora a figura dos fundos[7] já encontre amparo na legislação brasileira, os fundos patrimoniais ou endowment apresentam características diferentes e, sem dúvida, inovadoras no Brasil. Os fundos patrimoniais consistem na criação de um patrimônio perpétuo que gera recursos contínuos para a conservação, expansão e promoção de determinada atividade por meio da utilização dos rendimentos desse próprio patrimônio. Em geral, esses recursos financeiros são provenientes de doações e/ou legados de pessoas físicas e jurídicas. Podem ser utilizados no mercado financeiro mediante aplicação responsável e resgates periódicos responsáveis, o que pode gerar resultados positivos ou negativos. O dinheiro é destinado à finalidade específica para a qual o endowment foi criado, mediante obrigatoriedade de prestação de contas. A autossustentabilidade financeira dos fundos ainda é tema que engatinha no Brasil, diferente do que ocorre nos Estados Unidos[8].

Por este motivo, a MP é expressa ao obrigar que o fundo seja uma fonte de recursos de longo prazo a ser investido com objetivos de preservação de seu valor, de geração de receita e de constituir fonte regular e estável de recursos para fomento das finalidades de interesse público. Porém, a MP traz poucos, senão frouxos mecanismos de fiscalização.

Assim, o tema é novo e urge reflexão que não se esgote em um minuto, mas que vise a sustentabilidade financeira[9]. Quais seriam os mecanismos de controle desses recursos? Considerando as doações privadas, estão direcionadas aos interesses públicos, a quem cabe a legitimidade de fiscalizá-las? Quais os incentivos fiscais a pessoas que desejam doar dinheiro para os fundos patrimoniais? Quais as sanções na hipótese de desvio de recursos? Essas e outras reflexões ainda engatinham neste cenário, cujo princípio da subsunção ora neste instante ocorre em nossa sociedade. Afinal, “já é tempo sem hora” para tentar fazer com que o dinheiro “dure para sempre”. Em outras palavras, para buscar mecanismos de estímulos às doações privadas com o fim de gerir a autossustentabilidade em projetos de interesse público com instrumentos de controle que permitam a todos participar e fiscalizar a “cultura da doação”.


[1] Artigo 538 CC.
[2] Vale referir a iniciativa do The Giving Pledge no site https://givingpledge.org.
[3] Em prol da atuação conjunta em rede, o Gife tem desenvolvido trabalho no sentido de identificar e desenvolver quais seriam então as principais contribuições do ISP para a formação de novas agendas e convergências no país? Para mais detalhes, vale referir: https://gife.org.br/10-contribuicoes-do-investimento-social-privado-as-novas-agendas-do-brasil
[4] Enquanto receita não tributária, a figura da doação de direito público como uma das fontes privadas de custeio dos direitos. Este tema já foi objeto de artigo na ConJur: https://www.conjur.com.br/2017-set-20/luma-scaff-cultura-doacao-aproxima-estado-sociedade
[5] Atualmente, existem vários projetos de lei sobre o tema em tramitação no Congresso brasileiro. O PL 8.694/2017, em trâmite na Câmara dos Deputados (origem PLS 16/2015, de autoria da senadora Ana Amélia), e o PL 158/2017, em trâmite no Senado Federal (origem PL 4.643/2012, de autoria da deputada Bruna Furlan).
[6] SCAFF, Luma Cavaleiro de Macedo Scaff. Doação de Direito Público e Direito Financeiro. São Paulo: Lumen Juris, 2017.
[7] Lei 4.320/64 – Art. 71. Constitui fundo especial o produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação.
[8] Em termos comparativos, a “cultura a doação” dos EUA é mais desenvolvida em relação à brasileira. Alguns dos grandes fundos patrimoniais filantrópicos do mundo são: Fundação Bill & Melinda Gates (EUA), com US$ 40,3 bilhões, e Universidade Harvard (EUA), com US$ 37,1 bilhões.

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    é advogada, professora na Universidade Federal do Pará (UFPA), doutora em Direito Financeiro e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Direito pela UFPA. Membro da Rede de Pesquisa Junction Amazonian Biodiversity Units Research Network Program (JAMBU-RNP).

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