Senso Incomum

Sim, existe um dever fundamental de conceder Habeas Corpus de ofício!

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27 de setembro de 2018, 8h00

Spacca
1. Ainda o UED – Uso Estratégico do Direito
A coluna sobre o uso estratégico do direito (UED) foi o texto mais lido da semana passada. Mostrei duas decisões do STF (ministros Gilmar e Toffoli), as quais, embora monocráticas, configuram, em minha opinião, um recado a magistrados e membros do ministério público acerca do UED.

É importante saber do que estamos tratando. O UED é um parente próximo do lawfare, que é o uso do Direito a partir de visões morais e políticas (e contra adversários e inimigos). Isto é: em vez de se decidir ou oferecer denúncias por princípio (Dworkin), faz-se-o por razões subjetivistas (aqui englobo no subjetivismo os argumentos políticos, econômicos e morais). Logo, se o Direito é usado a partir desse conjunto de fatores, perde seu grau de autonomia e capacidade de filtrar os predadores do “sistema”. Simples assim. Ou complexo assim.

É evidente — e isso tenho referido às pampas — que o juiz (e o promotor) tem desejos, preconceitos, subjetivismos lato sensu. Afinal, ninguém é uma alface. O que importa, entretanto, para a democracia, é saber se o direito das pessoas pode depender de uma linguagem privada do agente estatal. Ora, se o Direito é o garante da democracia, é ele que filtra os argumentos de índole subjetiva e não o contrário.

Consequentemente, o UED é um álibi para esconder argumentos que não são de princípio. Usa-se o Direito para fazer política, para usar uma linguagem mais simples. Isso não quer dizer que quem faz isso não possa estar de boa fé. Por vezes, o ativismo judicial está eivado de boas intenções, produzindo, porém, malefícios à sociedade. Ativismo é cobertor curto: puxa de um lado e “destapa” de outro.

Por tais razões é que as decisões do STF apontadas na coluna são importantes. Que o STF faça desse modo. Doa a quem doer, aplique aquilo que foi aprovado na esfera pública: o Direito. Mesmo que o Judiciário ou o MP não concordem com esse produto da linguagem pública produzido democraticamente (o exemplo maior é a Constituição), não lhes cabe substitui-lo por argumentos pessoais (morais, políticos etc.). Isso parece ser óbvio. Caso contrário, viola-se a divisão de Poderes.

O terreno das liberdades é o mais delicado nessa discussão. Pergunto: não parece óbvio que uma investigação já terminada há mais de ano não possa ensejar prisão de um político às vésperas da eleição, a menos que haja o preenchimento dos requisitos para a prisão? Não parece óbvio que não se pode vazar conteúdos de delações em período eleitoral? Não parece óbvio que promotor não pode pedir que juiz examine denúncia nas entrelinhas e por subjetivismo? Ora, fatores exógenos não devem prejudicar a vontade popular, porque a CF estabelece que o poder emana do povo. Obviamente que, presentes requisitos objetivos, sempre o MP e o PJ devem agir, doa a quem doer. Mas ausentes os requisitos, ocorre o contrário: as autoridades, se “forçarem a barra”, estarão sob o pálio do UED. A propósito disso, leiam o item seguinte.

2. E o juiz delega ao Ministério Público a soltura (ou não) dos investigados presos!
Na minha cruzada constitucional, não havia ainda encontrado algo desse jaez. Explico, perguntando: parece condizente com o CPP, a CF e a jurisprudência (ou com a Lei da Boa Razão, do velho Marquês), um decreto de prisão com “delegação” ao Ministério Público (ler aqui — item 5.1., folhas 80) para manter ou não a prisão temporária pelo
prazo fixado, “podendo, a seu critério, determinar diretamente à autoridade policial que promova a soltura dos investigados antes de encerrado o prazo da prisão temporária”? Parece autoexplicativo, pois não? É ou não é UED? Ademais, a decisão, de mais de 80 páginas, dá um by-pass no acórdão da ADPF 444, ao usar a prisão temporária como substituto da — proibida — condução coercitiva.

3. Os Habeas Corpus de ofício como compromisso com as garantias de liberdade
Nesse sentido, também é importante falar do papel do HC no campo de sua admissibilidade. Tenho referido que HC não deve ser submetido aos parâmetros que refogem da característica do remédio heroico. Se ensinamos e aprendemos que o HC pode ser escrito em papel de pão e até com sangue, como não o conhecer? É evidente que existem instâncias para a impetração. Mas, uma vez preenchido esse requisito, o HC deve ser apreciado e, se for o caso, concedido, mesmo que de ofício.

Uma manifestação do advogado Kakay, há meses, já chamava a atenção para o ponto aqui desenvolvido, que se entrecruza com o dito na primeira parte desta coluna: “Infelizmente, o Judiciário cada vez mais diminui o escopo do HC, nosso único instrumento contra a prisão, a  favor da liberdade. Como explicar para quem está preso que o decreto de prisão não foi validado, mas o STJ, o Tribunal da Cidadania, optou por não analisar o mérito por existir uma súmula que diz que não cabe HC contra negativa de liminar?”.

Eis a questão. O uso da Súmula 691 (por que será que ainda não é vinculante? Curioso, não?) é a mais típica manifestação do que a doutrina chamada de “jurisprudência defensiva” (na verdade, com o perdão da má palavra, jurisprudência acusativa), dando poder discricionário para que os HCs sejam fulminados. Como superar os obstáculos (teratologia e flagrante ilegalidade) da S-691? O que é teratologia? Quem já conceituou isso? E é possível fazer isso, como se fosse um conceito lexicográfico? E o que é flagrante ilegalidade? Tem de ser flagrante? “Só” ilegalidade não basta?

Eis aí a importância da concessão de HC de ofício, coisa que já se fazia desde o governo Vargas. Por que retrocedemos? Por que não conhecer um remédio para a liberdade que pode ser escrito com sangue em papel de pão? Defendo a concessão de HC de ofício, assim como a concessão de liberdade no bojo de qualquer ação, porque o status
libertatis
não tem preço.

Só assim o judiciário pode superar um terrível gap do sistema, isto é, a falta de prazo para a prisão. Hoje o preso  provisório não depende de uma criteriologia; depende, sim, de visões de mundo do aplicador da lei. Nos tempos de minha faculdade e de MP, eram 81 dias. E, com  pequenas variações, funcionava. Hoje há prisões de mais de ano em qualquer canto do país. Pior: um HC é negado com base na S-691 e, mais tarde, julgado na instância de onde proveio o pedido de liminar fulminado pela Súmula, a ordem chega ao primeiro grau ou Tribunal. E o paciente já está condenado. Então se diz: considero prejudicada a ordem. Bem assim.

Esquematicamente, o caminho espinhoso, hoje, é assim: prisão provisória gera HC, cuja liminar é negada no TJ-TRF; essa negativa gera HC para STJ; este denega invocando a S-691; isso gera HC para STF, que também usa a S-691. Compreendem a necessidade da concessão de ofício?

Vendo por outro lado, de lege ferenda, urgentemente necessitamos regular o prazo máximo de prisão. Temos uma “teoria sobre quesitos do carnaval”, mas não temos critérios para prisão e concessão de HC. E, em regra, ignoramos o dever de conceder o writ de ofício.

Numa palavra: É importante frisar que o Judiciário — e principalmente o STF — pode e deve conceder HCs de oficio. Não existe matéria de ordem pública mais relevante do que a liberdade. Ora, se uma inconstitucionalidade deve ser examinada — e decretada — de oficio, uma violação à liberdade deve ter, no mínimo, o mesmo status. E deve ter o mesmo tratamento.

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