Interesse Público

O Decreto Federal 9.507/18 e a terceirização na administração: primeiras impressões

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

27 de setembro de 2018, 10h31

A existência de normas que abordam a execução indireta, mediante a contratação de serviços por órgãos e entidades da administração pública, não é novidade.

O Decreto-Lei 200/67[1], fruto de estudos desenvolvidos no âmbito da Comissão Especial de Estudos da Reforma Administrativa (Comestra), com vistas a redesenhar a administração, já previa a execução indireta, indicando a preferência pela terceirização para a execução das atividades-meio.

Assim, mesmo que àquela época a Constituição da República não fizesse referência expressa ao princípio da eficiência, e ainda que ambientado em cenário de administração púbica burocrática, havia, e o decreto-lei assim bem simboliza[2], preocupação com a otimização da função administrativa[3].

Posteriormente, a terceirização foi objeto de leis e atos normativos, a ela se referindo indiretamente a Lei 8.666/93 em diversos dispositivos, com destaque para os artigos 6º, VIII; 57, II, e 71.

O Decreto Federal 2.271, de 7/7/1997, também cuidou da matéria, além da Instrução Normativa 5/17, editada pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

O assunto volta à pauta com a revogação do referido ato normativo pelo Decreto Federal 9.507/18, editado no último dia 21 de setembro, alvo de críticas pelos que nele reconhecem abalo à regra do concurso público, de matriz constitucional.

Vejamos o que prevê o atual decreto em comparação com o decreto revogado. O olhar será dirigido exclusivamente aos contornos e à extensão da terceirização ali admitida ou incentivada, coluna vertebral do ato normativo. A parte reservada ao teor e à fiscalização dos contratos, praticamente inexistente no decreto revogado, merece um artigo exclusivo.

O Decreto Federal 2.271/97 alcançava a administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Diversamente do decreto atual, seus tentáculos não envolviam as empresas estatais federais. A expansão do alcance para empresas estatais reflete o contínuo regramento dessas entidades, com evidente destaque para a Lei 13.303/16.

Segundo informa o Ministério do Planejamento[4], a pretensão é uniformizar a matéria em todo o âmbito federal. Se o intuito é a disciplina padronizada, evitando, por exemplo, cláusulas contratuais antagônicas, enlaçar as empresas estatais federais é crucial. Afinal, ali se detecta expressivo número de terceirizações, segundo apuração realizada pelo TCU. Deixá-las à margem do decreto esvaziaria o espírito uniformizador.

A maior repulsa provocada pelo atual decreto estaria no alargamento da terceirização na administração pública federal. Os diversos comentários disponíveis na internet rotulam o Decreto 9.507/18 de inconstitucional por ofender a regra do concurso público de que cuida o artigo 37, inciso II. Avaliam que o Decreto 9.507/18 é resultado do julgamento favorável à terceirização da atividade-fim nas empresas pelo STF[5]. Consideram que a ausência do rol de atividades passíveis de terceirização sinaliza a irrelevância da clássica distinção entre atividade-fim e atividade-meio para delimitar a licitude da execução indireta.

O centro irradiador de preocupação está nos artigos 1º e 2º, assim redigidos:

Art. 1º Este Decreto dispõe sobre a execução indireta, mediante contratação, de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.

Art. 2º Ato do Ministro de Estado do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão estabelecerá os serviços que serão preferencialmente objeto de execução indireta mediante contratação.

Percebe-se que as regras atuais não qualificam as atividades passíveis de execução indireta, nada aludindo a atividades-fim ou meio, e não enumeram ou exemplificam os serviços objeto da contratação.

A comparação entre os atuais artigos 1º e 2º com o que dispunha o artigo 1º do revogado Decreto 2.271/97 revela a diferença redacional.

Dizia a norma revogada:

Art. 1º. No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade.
§ 1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta.

O antigo arigo 1º era, pois, explícito, afirmando o terreno em que a terceirização poderia ocorrer, prevendo-a para atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituíam a área de competência legal do órgão ou entidade, enquanto o seu parágrafo 1º, mesmo sem exaurir, indicava funções em que a terceirização era não apenas acolhida, mas preferencial.

De fato, a mudança sugere um possível alargamento do emprego da terceirização. Não porque inexiste o elenco de serviços que poderiam contar com mão de obra externa, mesmo porque a lista do ato normativo anterior era exemplificativa, mas substancialmente diante da ausência de referência à natureza da atividade que poderá ser objeto de contratação. Some-se a isso o fato de que, a depender do conteúdo do ato a ser produzido pelo Ministro, a que se refere o artigo 2º, a execução indireta avançará para além do território habitual.

A opção por nova redação não pode ser ignorada. Não é desproposital o desaparecimento da alusão ao enquadramento da atividade.

Sob esse ângulo, compreende-se o repúdio que a norma tem provocado, partindo-se do pressuposto de que a mudança representaria um risco à carreira pública.

Mas o Decreto 9.507/18 repete o que já consta da Instrução Normativa 5/17, repudiando a execução indireta na administração direta, autárquica e fundacional em casos que[6]:

  • envolvam a tomada de decisão ou posicionamento institucional nas áreas de planejamento, coordenação, supervisão e controle;
  • sejam considerados estratégicos para o órgão ou a entidade, cuja terceirização possa colocar em risco o controle de processos e de conhecimentos e tecnologias;
  • estejam relacionados ao poder de polícia, de regulação, de outorga de serviços públicos e de aplicação de sanção;
  • sejam inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou da entidade, exceto disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal. Essa restrição também constava do decreto revogado[7].

Não se obstaculiza, consoante prevê o parágrafo 1º do artigo 3º, a execução indireta dos serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios relativos aos itens acima. Ou seja, proíbe-se a contratação das atividades centrais, mas permite-se a entrega das tarefas satélites. Igualmente não há novidade, diante do que já informa a IN 5/17.

O parágrafo 2º do artigo 3º, todavia, não autoriza a execução indireta das atividades acessórias relativas ao poder de polícia. Nesse aspecto, a regra é mais restritiva do que a constante da IN 5/17.

Assim, se por um lado os artigos 1º e 2º do novo decreto aumentam a insegurança sobre o que no futuro se desejará terceirizar, reforçam-se cenários em que isso não poderá ocorrer.

O decreto, todavia, disciplina de outra forma a contratação pelas empresas estatais, dela cuidando o artigo 4º.

O referido artigo, embora repita, em síntese, a proibição da contratação quando os serviços desejados demandarem profissionais com atribuições inerentes aos cargos constantes dos planos de cargos e salários, não a veda de forma absoluta.

O parágrafo 3º afasta a restrição quando se tratar de cargo extinto ou em processo de extinção, redação semelhante a do inciso IV do artigo 3º, aplicável à administração direta, autárquica e fundacional, já comentado.

Mas o que mais chama atenção é a parte final do caput que estabelece que a vedação não persiste se contrariar os princípios administrativos da eficiência, economicidade e razoabilidade, indicando como uma das hipóteses a impossibilidade de competir no mercado.

Assim, não estaria vedada a execução indireta, ainda que os serviços ambicionados exigissem profissionais com atribuições inerentes aos cargos referenciados no plano de cargos e salários, se a medida pudesse sacrificar a competitividade no mercado.

De todos os dispositivos aqui citados, esse é o que merece maior atenção porque o argumento da competitividade poderá ser empregado para alavancar o esvaziamento dos empregos públicos nas estatais, em especial considerando que o decreto não aparta as atividades entre centrais ou acessórias.

Há, sim, em especial no campo dessas empresas, um sinal de flexibilização no ar.

Contudo, a aplicação do decreto deverá, por óbvio, observar a Constituição da República, que oferece um conjunto de normas, a remeter a um quadro de trabalhadores próprio. Não sem razão a Constituição menciona os servidores estatutários e os empregados públicos. Vale dizer, a Constituição da República prevê a existência de vínculo direto com os trabalhadores, observado, como regra, o disposto no artigo 37, inciso II.

Também importante considerar que a decisão do STF sobre a constitucionalidade da terceirização de atividade-fim não se debruçou sobre as peculiaridades da administração pública. Daí não ser possível concluir, apoiando-se na ADPF, pela regularidade da contratação de atividade-fim no âmbito da administração pública.

Claro que não se pode desconsiderar o voto do ministro Gilmar Mendes que menciona a dificuldade de se diferenciar a atividade-meio da atividade-fim. Mas, salvo melhor juízo, os demais argumentos apresentados pelos ministros para afirmar a constitucionalidade se aplicam ao campo privado, sendo imprestáveis para a esfera pública em especial diante das diversas regras peculiares a esse setor.

Assim, ainda que se insista em elastecer a terceirização, quer nos parecer que o potencial do decreto esbarará na muralha da Constituição da República. Bom, pelo menos até um pronunciamento em sentido contrário pelo STF.


[1] Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada: […]
§7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle, e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos da execução. (grifos nossos)
[2] A análise do decreto-lei deve considerar o momento de sua edição e o perfil de administração pública ali delineado.
[3] Entendemos que a busca por eficiência não caracteriza apenas o modelo gerencial de administração pública. O que há são oscilações do que seria eficiência, ora compreendendo-se o procedimento como instrumento bastante para o alcance do resultado; ora entendendo necessária a flexibilidade litúrgica.
[4] http://www.planejamento.gov.br/noticias/ultimas-noticias/decreto-uniformiza-procedimentos-na-contratacao-de-terceirizados-no-executivo-federal
[5] ADPF 324
[6] A conferir a equivalência entre o artigo 9º da IN5/17 e o artigo 3º do Decreto 9.507/18
[7] Artigo 1º, parágrafo 2º.

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).

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