Contas à Vista

O controle do TCU sobre as concessões no caso da ferrovia Norte-Sul

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26 de setembro de 2018, 10h11

Spacca
O Tribunal de Contas da União examinou no último dia 19 um processo decisivo para o futuro da infraestrutura no país. Trata-se do processo de subconcessão da ferrovia Norte-Sul – Tramo Central, no trecho entre Porto Nacional (TO) e Estrela D’Oeste (SP). Quando esse trecho estiver em operação, pela primeira vez em nossa história, cargas da região Norte poderão chegar à região Sudeste por via férrea, e vice-versa, com grande potencial de redução de dependência do modal rodoviário.

Esse processo suscitou, como vários outros, a questão dos limites da atuação do controle do Tribunal de Contas da União sobre processos de desestatização e sobre as escolhas públicas feitas pelos órgãos do Poder Executivo.

Um ponto que foi apontado pelo Ministério Público de Contas foi a completa ausência de justificativa para dois pontos fundamentais: o modelo de exploração da ferrovia — monopolista ou de livre acesso a operadores ferroviários — e a ausência de previsão de tráfego de passageiros.

Não se trata de avaliar o mérito do ato administrativo do gestor ou da agência reguladora, ou de substituí-los na tomada de decisão, mas de exigir apenas que o ato seja devidamente motivado, algo corriqueiro no controle da administração pública, seja pela via judicial, seja pela via do controle externo.

Democracia há muito deixou de ser apenas o processo de escolha dos governantes pela eleição dos cidadãos e passou a ser também um regime de exercício do poder em que este se explica e se justifica para a sociedade o tempo todo, prestando contas de suas escolhas. O nome disso é accountability, um dos pilares das democracias modernas. Há muito deixou de haver lugar para decisões imotivadas, fundadas apenas na legitimidade conferida pelo voto. Já não pode o governante bradar que faz assim porque acha melhor assim. Ele precisa justificar com dados fidedignos e argumentos coerentes porque avalia que um caminho é melhor que outro.

Isso é tão mais relevante quanto maior o seu impacto sobre a vida das pessoas, o funcionamento da economia e o futuro do desenvolvimento do país. Para questões de infraestrutura e de serviços públicos prestados por empresas concessionárias, é fundamental que as escolhas sejam precedidas de análise de impacto regulatório, instrumento que compara os cenários produzidos pelas alternativas possíveis e permite, pois, justificar de forma consistente o porquê de um caminho ser escolhido e não o outro.

É espantoso que não haja uma só linha para justificar por que o transporte ferroviário de passageiros não é nem sequer considerado pelo Ministério dos Transportes e pela Agência Reguladora de Transportes Terrestres. Dele não se fala e não se justifica por que não se fala. Ponto final. Accountability zero.

O mesmo ocorre com a escolha do modelo monopolista ou de livre acesso. Há cerca de cinco anos, houve uma proposta governamental de implantação desse modelo em todas as ferrovias brasileiras. Para respeitar os atuais contratos — monopolistas —, o governo compraria das concessionárias a totalidade de sua capacidade de transporte e revenderia essa capacidade a operadores ferroviários independentes.

Naquele momento, o Tribunal de Contas da União, muito prudentemente, questionou como se daria o financiamento dessa política. No caso da Norte-Sul, não haveria necessidade de comprar capacidade, porque ela já pertence ao poder público, que poderia apenas vender capacidade operacional para operadores independentes. Uma análise de impacto regulatório seria absolutamente necessária para justificar a escolha por um modelo ou outro. Nada foi feito. Segundo a ANTT, a escolha da política pública foi feita pelo ministério. Segundo o ministério, a política de livre acesso foi abandonada por falta de dinheiro, esquecendo que neste caso não há necessidade de recursos públicos. Ao contrário, haveria receita.

Não seria o caso de o Tribunal de Contas da União questionar ao Poder Executivo o porquê da escolha? O Tribunal de Contas da União é a esperança da sociedade brasileira de que as grandes decisões administrativas estejam de acordo com a lei e com os demais princípios elencados no artigo 37 da Constituição, incluído o da economicidade. No entanto, o TCU entendeu que se tratavam de escolhas insuscetíveis de questionamento, mesmo sem adequada fundamentação para o modelo de exploração da ferrovia em regime de monopólio e mesmo diante da completa ausência de previsão de transporte de passageiros.

No mundo inteiro, ferrovias são intensamente utilizadas para o transporte de passageiros, menos no Brasil. Temos já algum transporte de passageiros na Estrada de Ferro Carajás (EFC), que interliga a Serra dos Carajás (PA) ao Porto de Ponta Madeira (MA), e mais de 1 milhão de passageiros foram transportados no ano passado. Não é necessário que o destino seja turístico para que o transporte de passageiros ocorra e tenha demanda que o justifique. Ao contrário, os principais fluxos de passageiros em todo o mundo não decorrem do turismo.

O TCU exigiu também do governo que fundamentasse a adoção da política de renovação das concessões ferroviárias ora em análise. Que razão haveria para deixar de fazer a mesma exigência neste momento quanto à adoção do modelo monopolista e quanto à ausência de previsão de transporte de passageiros?

É preciso muito cuidado com a mistificação das agências reguladoras. Elas são apenas entidades do Poder Executivo e seus atos são tão controláveis como qualquer outro ato de qualquer ministério. O princípio da deferência a elas aplica da mesma maneira que se aplica a qualquer outro órgão ou entidade, assim como o princípio da legalidade, o dever de fundamentação dos atos e todos os demais princípios que regem a administração pública.

Não há motivo para o TCU não ser com elas tão exigente quanto o é com os demais atos oriundos de toda a administração pública. Aliás, no presente caso, a agência reguladora aponta que a escolha do modelo nem sequer foi feita ou analisada por ela, mas pelo Ministério dos Transportes.

Mesmo que essas omissões fundamentais pudessem ser ultrapassadas, não há discussão alguma, nenhuma dúvida de que cumpre ao TCU velar pela competitividade da licitação e higidez do contrato a ser eventualmente celebrado. Não se há de admitir uma licitação viciada, dirigida, feita sob medida para a vitória de interessado previamente identificável.

Ocorre que nessa licitação que será promovida pelo Poder Executivo há diversas cláusulas constantes da minuta de contrato que implicam elevada restrição da possível competitividade do certame. Para que nessa licitação haja minimamente alguma competição, haveria que se determinar a correção de todas as características restritivas da competição, que são a absolutamente insuficiente regulação do direito de passagem, a falta de prazo viável para atração de licitantes e a alocação desastrosa de riscos contratuais, como já ocorrido na licitação de 2007 do Tramo Norte, que resultou em inúmeros problemas graves no curso do contrato, ainda não resolvidos, conforme já auditado pelo próprio.

Sem resolver todos esses elementos de restrição à competição, já se pode prever não só quem vencerá a licitação, como também todo um conjunto de problemas de execução contratual que o modelo, tal como proposto, causará. Resolver apenas parte dos problemas poderá trazer algum benefício, mas não eliminará os impedimentos à livre concorrência presentes no edital proposto. Sem efetiva e completa regulação de direito de passagem para todo tipo de carga, não será suficiente, por exemplo, resolver apenas a questão da alocação das obras inconclusas. A restrição à competitividade continuará presente.

Outro ponto essencial é o prazo para que a licitação ocorra. Sem prazo adequado, não há como se atrair interessados internacionais. Prazo reduzido favorece a empresa que já está operando a ferrovia mediante permissão da Valec, o que, aliás, demonstra não haver nenhuma urgência para a subconcessão que pudesse justificar um prazo reduzido, uma vez que a parte concluída já está em operação e a parte não concluída terá de aguardar o encerramento e recebimento das obras.

Se é para licitar, é para licitar direito, e não fazer apenas um arremedo de licitação. Ora, se o TCU não tivesse competência para determinar essas correções, os estudos não passariam por esta corte. Se o controle externo não puder corrigir vícios e restrições nas licitações, qual a razão para que o processo seja submetido à sua avaliação prévia?

No entanto, todas estas características restritivas da competição foram tidas como escolhas de política pública insuscetíveis de escrutínio pelo TCU. Não é que foram examinadas e consideradas como não restritivas. Foram consideradas como fora do escopo de atuação do TCU. Uma autocontenção do controle que pode implicar mesmo uma desnecessidade de sua atuação nesse tipo de processo.

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