Opinião

Criminalizando o "devo, não nego, pago quando puder"

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25 de setembro de 2018, 6h51

No dia 22 de agosto, a 3ª Sessão do Superior Tribunal de Justiça, no HC 399.109/SC, em decisão relatada pelo ministro Rogério Schietti Cruz, entendeu que o não recolhimento de ICMS escriturado pelo contribuinte constitui crime de apropriação indébita tributária, previsto no artigo, 2º, II, da Lei 8.137/90. Com isso, é criminalizada a conduta do devedor que, sem cometer qualquer ilicitude, não promove o pagamento de tributo por ele declarado. Porém, tal entendimento não se coaduna com a nossa ordem jurídica, como a seguir será demonstrado.

Como se depreende do exame do referido tipo penal, o crime se configura com o não pagamento de tributo descontado ou cobrado de terceiro, na qualidade de sujeito passivo de obrigação. Nestes termos, o dispositivo legal não se dirige àquele que é o sujeito passivo da obrigação principal, mas ao que tem a qualidade de sujeito passivo de obrigação de descontar ou cobrar o tributo de terceiros. Assim, não se dirige aos casos de sujeição passiva direta, onde o contribuinte não tem o dever de descontar ou cobrar o que quer que seja de terceiros, mas de recolher tributo cujo fato gerador foi por ele praticado. Logo, o dispositivo se dirige aos casos de retenção de tributo cujo fato gerador é praticado por terceiro na fonte, mas não pode ser aplicado às situações de repercussão econômica, ainda que o Direito Tributário empreste alguma relevância jurídica ao fenômeno.

De modo geral, a sujeição passiva tributária, enquanto dever jurídico de pagar o tributo, recai sobre o contribuinte, assim entendido como aquele que pratica o fato gerador. É o que chamamos de sujeição passiva direta. Porém, no interesse da arrecadação e fiscalização tributárias, em nome da praticabilidade administrativa, a lei pode transferir o ônus de pagar o tributo para alguém que, embora não praticando o fato gerador, tem sua obrigação decorrente de lei, que identifica a sua relação com o contribuinte ou com o fato gerador. É a chamada sujeição passiva indireta, que pode se dar por substituição tributária ou por transferência tributária. Se a primeira antecede a ocorrência do fato gerador, sendo a solução originalmente concebida pelo legislador, na segunda, a lei originalmente prevê que a obrigação de pagar o tributo é do contribuinte, mas, por circunstâncias supervenientes ao fato gerador, a obrigação é transferida a um terceiro, seja por sucessão tributária, quando este adquire a riqueza sobre a qual se deita a tributação, seja por aquilo que o Código Tributário Nacional denomina de responsabilidade de terceiros, em seus artigos 134 e 135.

Na sujeição passiva direta, é o próprio contribuinte que tem o dever jurídico de recolher o tributo incidente sobre o fato gerador por ele praticado. Assim, ele não desconta ou cobra nada de alguém, independentemente da existência ou não de repercussão econômica reconhecida pelo direito, como se dá na tributação indireta, cenário em que a repercussão econômica é, em parte, juridicamente relevante, ou mesmo na monofasia tributária, em que o legislador escolhe um único contribuinte da cadeia para recolher todo o tributo.

Na sujeição passiva indireta, a obrigação de recolher o tributo é legalmente atribuída ao responsável tributário, que não pratica o fato gerador, mas que é chamado, seja originalmente e exclusivamente, como na substituição, seja de forma superveniente, como na transferência, em que a obrigação é assumida pelo sucessor tributário ou ainda, no caso da chamada responsabilidade de terceiros, por aquele que tem o dever jurídico de zelar pelo pagamento do tributo, seja exclusiva, solidária ou subsidiariamente. Nesta última modalidade, da responsabilidade de terceiros, como a capacidade contributiva escolhida pelo legislador é de outrem, o sujeito passivo que negligenciou o dever jurídico de zelar pelo pagamento do tributo é chamado a compor o polo passivo da relação jurídico-tributária.

A figura da retenção na fonte pode se traduzir em substituição tributária, como ocorre na contribuição previdenciária do empregado nos termos do artigo 30, I da Lei 8.112/91, em que o empregador é original e exclusivamente responsável pelo pagamento do tributo, ou em transferência por responsabilidade de terceiros, como ocorre no Imposto de Renda Pessoa Física, em que o contribuinte persiste na sujeição passiva nos casos em que a retenção na fonte não ocorre, nos termos do artigo 722 do RIR. Neste último caso, quando do nascimento da obrigação, a sujeição passiva era só do contribuinte. A fonte tinha apenas a obrigação acessória de reter e recolher. Desatendendo a esse dever jurídico, passa a ser solidariamente responsável em caso de inadimplemento da obrigação principal pelo contribuinte, o que só foi possível porque a fonte descumpriu a sua obrigação acessória de descontar o tributo daquele.

Tanto na substituição tributária quanto na transferência por responsabilidade de terceiros, a lei poderá criar mecanismos para que o sujeito passivo se ressarça do tributo pago em relação ao fato gerador praticado pelo contribuinte. Assim, será admitido que o valor que foi ou será pago seja cobrado ou descontado do contribuinte. É nesse cenário que pode surgir a apropriação indébita, quando, no âmbito exclusivo da sujeição passiva indireta, aquele que pode se ressarcir do tributo cujo fato gerador é praticado por terceiro exerce essa faculdade, mas não recolhe o montante aos cofres públicos.

Em síntese, só há que se falar em apropriação indébita tributária nos casos de sujeição passiva indireta, seja por substituição, seja por transferência, em que o sujeito passivo desconta ou cobra o tributo decorrente a fato gerador praticado por terceiro, e não repassa aos cofres públicos. Não é possível tal caracterização nos casos de sujeição passiva direta, em que o contribuinte tem a obrigação de recolher tributo relativo a fato gerador por ele praticado.

É que o sujeito passivo da obrigação principal, mesmo que haja repercussão econômica juridicamente relevante, não tem a obrigação acessória de descontar ou cobrar nada de quem quer que seja. O destaque o ICMS na nota tem efeitos meramente fiscais e contábeis, mas não se traduz juridicamente em parcela do patrimônio do consumidor retida, cobrada ou descontada sendo este inteiramente estranho à relação jurídico tributária estabelecida entre a Fazenda Pública e o contribuinte.

Assim, independentemente da discussão enfrentada pelo STF sobre a inclusão do ICMS no faturamento ou na receita da empresa, é forçoso reconhecer que, a despeito da repercussão econômica que é da essência do tributo indireto na fase da legitimação do ordenamento jurídico, o dever jurídico de pagar tributo recai com exclusividade no contribuinte do imposto, que pratica o seu fato gerador e tem a obrigação de recolher o tributo daí decorrente.

Por outro lado, as condutas previstas no artigo 2º da Lei 8.137/90, embora não necessitem do prejuízo à Fazenda Pública, ao contrário do que se dá em relação aos tipos do artigo 1º da mesma norma, exigem dolo específico contra a Fazenda Pública, no sentido de se promover uma ação eivada por dolo fraude ou simulação. Deste modo, a caracterização dos crimes previstos no artigo 2º pressupõe o descumprimento de dever jurídico previsto na legislação tributária. Assim, não havendo a ocorrência no plano fático de qualquer hipótese que configure obrigação tributária instrumental, não há que se falar em infração tributária e, da mesma maneira, não há que se cogitar em crime contra a ordem tributária.

Nos casos em que o sujeito passivo da obrigação tributária cumpre todas as obrigações acessórias, escriturando o tributo devido, mas deixando de recolher o crédito tributário daí decorrente, temos apenas a mora. Aliás, a regular escrituração do tributo é incompatível com a ideia de dolo dirigido contra a Fazenda Pública, uma vez que o seu montante ingressa no patrimônio passivo do sujeito passivo e na dívida ativa da Fazenda Pública, que, após a sua inscrição, será judicialmente cobrada. Ademais, tratando-se o ICMS de tributo lançado por homologação, a sua declaração pelo sujeito passivo já constitui o crédito tributário como reconhecido pela Súmula 436 do próprio STJ, o que afasta, de plano, a ideia de dolo de se apropriar do tributo.

Logo, ao contrário do que se afirmou na comentada decisão da 3ª Seção do STJ, quando o tributo está escriturado, a análise do caso concreto não terá o condão de apontar a existência de dolo de se apropriar do tributo. Aliás essa alegada necessidade de investigação do caso concreto só acarretará a redução ainda maior da segurança jurídica diante da inexistência de uma conduta ilícita clara e abstratamente prevista na norma.

Em síntese, não há apropriação indébita na repercussão econômica, pois o contribuinte de direito não se apropriou de tributo pago por terceiro. Deixou de recolher tributo cujo sujeito passivo é unicamente ele. Trata-se, portanto, de mero inadimplemento. Ao contrário do que ocorre quando há retenção na fonte e não recolhimento à Fazenda Pública.

Por outro lado, a despeito da não previsão do não recolhimento de ICMS pelo próprio contribuinte no tipo do artigo 2º, II, da Lei 8.137/90, vale considerar ainda que o ordenamento jurídico nacional não pode tipificar como crime o mero inadimplemento tributário sob pena de contrariar não só o artigo 5º, LXVII da Constituição Federal, como o artigo 7º, parágrafo 7º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de San Jose da Costa Rica, que foi internalizado pelo Decreto Legislativo 27/92 e pelo Decreto 678/92 com o caráter supralegal, como reconheceu o STF no RE 349.703/RS.

Não é correto afirmar, como se fez no julgamento do ARE 999.425[1], que os dispositivos constitucionais e convencionais são dirigidos à prisão civil, e não à prisão penal, como estabelecido na Lei 8.137/90. Para dar cumprimento aos direitos fundamentais consagrados no âmbito de nosso constitucional, bem como na ordem internacional, é preciso não levar às últimas consequências ao nomen juris adotado com o fim de burlar a proibição da prisão civil, a partir da tipificação penal de uma conduta que não revela outra coisa que não o mero inadimplemento.

É que, como vimos, o sujeito passivo que não recolhe tributo cujo fato gerador foi por ele praticado, e o escritura em sua contabilidade, não pratica qualquer ato ilícito que não inadimplemento da dívida constituída pela sua própria declaração. Não chega a praticar nem sequer infração administrativa, visto que não descumpre qualquer obrigação acessória. Apenas deixou de pagar dívida tributária por ele confessada e declarada. É o popular devo, não nego, pago quando puder.

O inadimplemento de tributo declarado cujo fato gerador foi praticado pelo próprio sujeito passivo (sujeição passiva direta) não enseja a configuração do crime de apropriação indébita tributária ainda que haja repercussão econômica relevante para o direito, uma vez que não há que se falar em cobrança ou desconto de tributo devido ou originado por terceiro.

Sendo o ICMS um tributo lançado por homologação, a sua declaração pelo contribuinte constitui o crédito tributário, o que, por si só, afasta a ideia de dolo de apropriar-se de algo pertencente a terceiro.

A criminalização do contribuinte inadimplente se traduz em violação dos dispositivos constitucional e convencional que vedam a prisão civil, exceto do devedor de pensão alimentícia.

A criminalização do contribuinte que cumpre todas as obrigações acessórias, mas deixa de recolher o tributo próprio é, em plena sociedade de risco, tentar fazer com que a Fazenda Pública se imunize dos riscos das vicissitudes das atividades econômicas a que todos os agentes sociais estão submetidos, com o sacrifício da liberdade individual do gestor tributário. Em tempos de punitivismo descontrolado e seletivo, a violação das liberdades pessoais em nome de uma maior garantia do crédito tributário dos estados é incompatível com o Estado Social e Democrático de Direito.


[1] STF, Plenário, ARE 999.425/SC, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe 16/3/2017.

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