Opinião

Ecos de Lombroso: o exame criminológico, a reincidência e o "defeito no pé"

Autor

  • Fernando Procópio Palazzo

    é advogado mestrando em criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e Universiteit Ghent e especialista em Direito Penal e criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal.

22 de setembro de 2018, 12h51

1. Introdução
“O Senhor, porém, lhe disse: Portanto, qualquer que matar a Caim será vingado sete vezes, E pôs o Senhor um sinal em Caim para que não o ferisse quem quer que o encontrasse.” O livro de Gênesis, na Bíblia, narra a prática de um fratricídio por parte de Caim contra Abel. Movido por um sentimento de inveja, Caim intenta contra a vida de seu irmão, sendo, então, repreendido por Deus, o qual lhe coloca um sinal com o objetivo de resguardá-lo de qualquer vingança. O referido sinal, em que pese tenha tido um viés protetivo, também se apresentou como uma nódoa na vida de Caim pelo delito perpetrado. Por onde este andasse, o estigma da violação estaria timbrado em seu corpo como uma perene lembrança de que era um criminoso.

O cenário bíblico acima relatado retrata uma emblemática percepção sobre a identificação do comportamento desviante em virtude de fatores endógenos. Em uma perspectiva sintomática, o sinal portado pelo indivíduo acabará por revelar a sua propensão criminosa. Essa forma de reconhecimento do mal encontrará solo fértil no discurso maniqueísta entre o mito e o monstro, o feio e o belo, sendo suas implicações encampadas de forma vigorosa nos processos de construção do saber penal.

Humberto Ecco, ao examinar as influências do belo e do feio na composição social, afirma que “as coisas feias também compõem a harmonia do mundo por meio de proporção e contraste. A beleza nasce desses contrastes, e também os monstros têm uma razão e uma dignidade no concerto do criado, também o mal, na ordem, torna-se belo e bom porque dele nasce o bem, e junto a ele refulge o bem”.

Estabelecidas essas premissas, vê-se que a noção de estigma, de estereótipo, do feio e do defeituoso, alcançou relevante espaço na definição do delito como uma decorrência etiológica, inerente à pessoa. Busca-se reconhecer o crime a partir do criminoso. Abeberando-se, pois, de doutrinas evolucionistas capitaneadas por Jean-Baptiste Lamarc e Charles Darwin no século XIX, passou-se a investigar a origem do crime como decorrência de alterações orgânicas encontradas naquele que comete um delito. A esse propósito, entre outros expoentes dessa vertente ideológica, destacou-se o médico psiquiatra italiano Cesare Lombroso, ao apresentar a concepção de “delinquente nato”. Imbuídos por estereótipos e caracteres somáticos, determinados indivíduos estariam, então, inclinados à prática de crimes.

É bem verdade que esse pensamento foi objeto de severas críticas com o passar dos anos, restando aparentemente superado. No entanto, existem ainda reminiscências dessa compreensão, sendo que o exame criminológico acaba por propiciar uma plataforma perfeita para a sua indevida repristinação. A esse propósito, tem-se como significativo exemplo o Habeas Corpus 653.102-8, da lavra do desembargador Edvino Bochnia, apreciado pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, julgado em 15/4/2010, cujo tema nuclear orbitou na impossibilidade de progressão de regime pelo paciente em virtude de que o exame criminológico teria lhe sido desfavorável ao consignar ser o mesmo portador de uma anomalia física, conforme adiante se explicitará.

Nesse cenário, à luz de um pujante arcabouço ideológico organicista que insiste em permanecer, o exame criminológico acaba por constituir um perigoso viés para a promoção do atavismo criminal.

2. O atavismo como fator criminógeno
Em 1º/8/1966, o ex-fuzileiro americano Charles Joseph Whitman dirigiu-se a uma torre no campus da Universidade do Texas, em Austin, e disparou desenfreadamente contra as pessoas que lá se encontravam, ferindo 32 e levando a óbito 14. Após o fatídico evento, encontrou-se em sua carta póstuma uma solicitação para que fosse realizada uma autópsia em seu cérebro, pois o mesmo acreditava haver algo de errado e que isso poderia tê-lo levado a perpetrar tão brutal crime. Diante dessa situação, procedeu-se à referida análise e foi constatada uma anormalidade do tamanho de uma moeda perto da amígdala cerebelosa, um dos centros primários da emoção. Com esse resultado, creditou-se por muito tempo ser este o motivo para o comportamento empregado. No entanto, nas décadas que se sucederam, restou evidenciado que o cérebro não era tão simples e que essa não teria sido a causa.

Como se pode perceber, a busca pela “marca de Caim”, isto é, pelo fator etiológico do crime, sempre esteve presente no plexo de investigações que visam compreender a origem do comportamento desviante. Nessa acepção, urge distinguir de forma sistematizada e empírica os bons dos maus. Friedrich Nietzsche assevera que “nada é feio senão quando é o homem que o degenera — com isso o reino do juízo estético está circunscrito”.

Cesare Lombroso impactou por seus estudos de antropologia criminal. Utilizando-se de métodos experimentais de estudo da criminalidade, concluiu o médico italiano que determinados indivíduos possuíam caracteres próprios de animais, sendo que em decorrência de serem portadores de anomalias orgânicas e psíquicas seriam impelidos à prática de crimes. A concentração de condenados nas prisões e a formação da estatística propiciou a conjunção perfeita para que as suas pesquisas pudessem ser realizadas. O problema penal é deslocado do fato para o indivíduo. Suprime-se a noção de livre arbítrio e adentra-se na esfera do atavismo.

Nesse cenário, oportuno observar que a superioridade das espécies proclamada pelas teorias evolucionistas conferiu relevante lastro científico para a pesquisa que estava sendo fomentada por Cesare Lombroso. Partindo de uma lógica indutiva e de métodos que variavam em medir o tamanho do crânio dos presos, em verificar o peso, altura e até indagações de sensibilidade, traçava-se uma distinção biológica entre delinquentes e não delinquentes. As anomalias então encontradas nos criminosos revelam aquele que seria um sujeito subdesenvolvido e um criminoso nato. Para melhor compreensão do pensamento de Cesare Lombroso, revela-se pertinente observar excerto de sua obra:

“Os matadores e os ladrões arrombadores têm cabelos crespos, crânios deformados, fortes mandíbulas, enormes zigomas, e frequentes tatuagens; são cobertos de cicatrizes na cabeça e no tronco. (…) Em geral, o delinquente nato tem orelhas de abano, cabelos abundantes, barba escassa, os senos frontais e as mandíbulas enormes, queixo quadrado e proeminente, zigomas aumentados, a gesticulação frequente, em suma um tipo parecido com o mongol, às vezes com o negro.”

Não bastasse toda a incoerência do pensamento apresentado e suas deletérias consequências, vislumbra-se ainda vicejar na atualidade pesquisas científicas, sobretudo na área da genética, em que se busca investigar o comportamento biológico de um criminoso. Deve-se refletir que se Cesare Lombroso tivesse acesso à tecnologia hodierna certamente estaria procedendo à mesma investigação. A ideia de “genes predispostos” ou qualquer outro critério que, mutatis mutandis, confira legitimidade científica à descoberta do criminoso nato urge ser rechaçada. Pesquisas desse jaez impedem a análise das influências sociais nos próprios tipos penais e mantêm acesa a viabilidade de métodos pretensamente científicos de identificação do delito no delinquente.

Friedrich Nietzsche, ao criticar o método antropológico, assim se manifesta e ironiza: “Os antropólogos entre os criminalistas dizem-nos que o criminoso típico é feio: monstrum infronte, monstrum in animo. Mas o criminoso é um décadent. Sócrates era um típico criminoso? Ao menos isso não seria contrariado pelo famoso juízo-fisionômico que apareceu chocante aos amigos de Sócrates. Um estrangeiro, que entendia de rostos, disse certa vez na cara de Sócrates, ao passar por Atenas, que ele era um monstro e escondia todos os vícios e desejos ruins em si. E Sócrates respondeu simplesmente: ‘Vós me conheceis, meu Senhor!’”

3. A revitalização do atavismo criminal por intermédio do exame criminológico
A Exposição de Motivos da LEP assevera em seu item 27 que a individualização da pena sem a realização de um exame da personalidade do condenado constitui uma falácia. Ao longo de todo o texto preambular, defende a relevância da realização de um dossiê técnico do perfil dos condenados que assim assegure o seu adequado reingresso ao convívio social.

Afora os dispositivos iniciais que regulamentam a classificação dos condenados, no particular da progressão de regime, antes da Lei 10.792/03, exigia-se para a sua obtenção o cumprimento do requisito objetivo, temporal, e também subjetivo consistente no mérito do condenado. O último implicava a submissão dos sentenciados a uma análise pericial realizada por intermédio do exame criminológico. Luiz Roberto de Almeida, em obra datada de 1975, perfilhando o pensamento que sustentava a idoneidade do exame criminológico, afirmam que “estarão respondidas várias questões que envolvem o criminoso na sua conduta antijurídica, antissocial e seu possível retorno à sociedade” chegando inclusive a enunciar, com base nas informações por ele obtidas, a existência de um “princípio da legenda natural do criminoso”.

Com o advento da novel legislação, a obrigatoriedade do exame foi suprimida, sendo, contudo, reiteradamente determinada pelos juízes, sob o pálio analógico do artigo 8º da LEP e do artigo 34 do Código Penal. Diante de divergência jurisprudencial erigida, o STJ sedimentou a sua legalidade, exigindo a apresentação de decisão motivada, consoante verbete sumular 439.

O problema dessa interpretação reside no fato de que o exame criminológico não mais possui amparo legal e reaviva, ainda que de forma oblíqua, o pensamento punitivo etiológico de Cesare Lombroso. Atente-se, nesse viés, que a própria LEP, novamente em seus prolegômenos, transparece essa inadmissível intenção corretiva ao asseverar que “o exame criminológico e o dossiê de personalidade constituem pontos de conexão necessários entre a Criminologia e o Direito Penal, particularmente sob as perspectivas da causalidade e da prevenção do delito”.

Com efeito, resta evidente que as premissas que embasam o exame criminológico são absolutamente anacrônicas, além, repita-se, de não mais possuir previsão legal. O artigo 112 da LEP demanda apenas a comprovação de “bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento”.

Nessa ordem de ideias, resta evidente não ser mais possível conviver com essa metodologia. O próprio legislador ceifou a sua aplicação, sendo, todavia, enxertada novamente na execução penal pela via analógica. A sanha punitiva encontra pretensa legitimidade em técnicas e retóricas camufladas, que nada mais fazem do que perpetuar um vetusto sistema de segregação e punição de “delinquentes natos”. À toda evidência, o que ocorre com o exame criminológico é a revitalização do atavismo criminal.

4. Reincidência e o “defeito no pé”
No julgamento do HC 653.102-8, a 3ª Câmara Criminal do TJ-PR, relator desembargador Edvino Bochnia, defrontou-se com peculiar situação em que o paciente, condenado pela prática do crime de latrocínio, teve o seu pedido de progressão de regime do fechado para o semiaberto indeferido pelo juízo da execução penal com base em exame criminológico desfavorável.

Em que pese tenha preenchido o requisito temporal e apresentado atestado de bom comportamento carcerário, este, nas palavras da magistrada singular, deve ser analisado sob um prisma “mais amplo, com a verificação de aspectos da personalidade do sentenciado, que indiquem, no momento, já se encontra preparado para iniciar o cumprimento da pena em regime menos severo”. Nesse ponto, faz-se mister observar que o juízo de piso elasteceu a definição de bom comportamento carcerário, agregando fatores não mais previstos pela legislação regente. Em passo seguinte, partindo dessa equivocada premissa, indeferiu o benefício, pois o laudo criminológico indicou a sua inadmissibilidade ao atestar, ipsis litteris, que “há probabilidade de reincidência criminal, pois o mesmo ser complexado com o defeito que possui no pé (de nascimento)” (sic). Em razão do parecer técnico, a juíza sucintamente fez uma subsunção aos critérios que entendeu estarem previstos no artigo 112 da LEP e indeferiu o benefício pleiteado.

Impetrado o remédio constitucional, o relator desembargador Edvino Bochnia repeliu veementemente os critérios adotados pela autoridade coatora e o teor do laudo apresentado, assentando, pois, “a completa inadmissibilidade de conceitos desprovidos de base jurídica idônea, mas apenas em fatores pretensamente atávicos dissociados dos parâmetros apregoados pela Carta da República de 1988”. No entanto, a despeito das judiciosas considerações, o revisor entendeu que a sentença estava devidamente fundamentada e que o “sentenciado não preenche requisitos subjetivos exigidos pela lei que rege a matéria”. Na sequência, após pedir vistas, o vogal acompanhou o relator, corroborando a teratologia da situação exposta, e, então, concedeu-se a ordem ao paciente.

Sendo esse o contexto, apesar da acentuada oposição e dos deletérios acontecimentos históricos, verifica-se a inaceitável persistência do atavismo criminal na compreensão do fato criminoso. Em capítulo sobre a reincidência, Cesare Lombroso chega à mesma conclusão exarada no exame criminológico em comento, esclarecendo, pois, que “essas percentagens em boa parte correspondem às dos criminosos que nos deram a maior frequência de anomalias do crânio, da fisionomia, anomalias algométricas etc.”.

Veja-se, portanto, que a autoridade coatora encampou a mesma linha interpretativa etiológica defendida por Cesare Lombroso. Cabe ressaltar que a concessão da ordem não foi obtida por unanimidade, o que demonstra que a compreensão de que o critério adotado pelo exame criminológico era legítimo não se consubstanciou em uma percepção isolada.

5. Considerações finais
A marca de Caim, seja qual for o subterfúgio teórico e científico que a ela se impute, continua sendo objeto de obsessão, logrando indevido espaço na persecução penal. Cesare Lombroso rompeu paradigmas e forneceu material com timbre de cientificidade a respeito da existência de um delinquente nato.

Nessa perspectiva, observa-se que o exame criminológico abre espaço para perigosas conjecturas e um completo desvirtuamento da já tão combalida execução penal. Paradigmático, nesse sentido, é o julgamento acima pormenorizado em que o direito à progressão de regime de um condenado foi tolhido sob a teratológica percepção de que uma anomalia em seu pé seria um fator estimulante a sua reincidência.

O progresso da ciência não pode resultar em um regresso na compreensão do fato criminoso. De forma cíclica são apresentados novos critérios, métodos e teorias, de modo a robustecer, de forma dissimulada, a delinquência como um fenômeno atávico.

Urge, portanto, profligar a confecção do exame criminológico e todos os instrumentos que, revestidos de aparente cientificidade, nada mais fazem do que reavivar a noção de criminoso nato.

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