Direitos Fundamentais

Liberdade de expressão e o "manual de comportamento" para magistrados

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21 de setembro de 2018, 8h10

Basta um breve olhar sobre a quantidade de decisões judiciais no Brasil e em outros países, mas também na esfera da jurisdição supranacional (em especial o caso da CIDH e da CEDH), que dizem respeito à liberdade de expressão e de informação para que, também em sede da ConJur, sejam cada vez mais frequentes notícias, opiniões e colunas sobre o tema, como, aliás, é também agora o que se verifica.

E, mais uma vez, se está em face de uma decisão do STF que tematiza questão altamente relevante e controversa, porquanto não se cuida tão somente de julgado que diz respeito à liberdade de expressão e seus limites, mas também toca o delicado tema dos limites dos direitos fundamentais na esfera das assim chamadas relações especiais de poder, ou, dito de outro modo, relações especiais de sujeição.

Mesmo que se trata (por ora) de decisão monocrática, de caráter provisório, que indeferiu a liminar pleiteada, o objeto em causa e a fundamentação da decisão, da lavra do ministro Roberto Barroso, no bojo de medida cautelar no Mandado de Segurança 35.793-DF, quase que exigem uma notícia e breve análise, ainda que pendente o julgamento em si.

No que diz com o caso submetido ao crivo do STF, cuida-se de mandado de segurança impetrado por magistrado com o intuito de impugnar o Provimento 71, de 13/6/2018, do Conselho Nacional de Justiça, que dispõe sobre a manifestação de magistrados nas redes sociais.

De acordo com o relator, ministro Roberto Barroso, não se fazem presentes as hipóteses que autorizam o controle dos atos do CNJ pelo STF, incluindo aqui o caráter injurídico e desarrazoado do ato, posto que, a despeito do valor cimeiro da liberdade de expressão e, portanto, de sua posição preferencial na ordem constitucional brasileira, a vedação de atividade político-partidária à qual os membros da magistratura estão submetidos, por força do artigo 95, parágrafo único, III, implica precisamente uma das exceções à plena liberdade de manifestação do pensamento e de opinião.

Ainda de acordo com o voto referido, o dever de imparcialidade e distanciamento crítico do Judiciário em relação à política partidária tem por consequência a vedação aos magistrados de veicularem manifestações públicas de conteúdo político-partidário nas redes sociais, pois os membros do Poder Judiciário, mesmo que fora do exercício da função, seguem detentores da autoridade inerente ao seu cargo.

Especialmente relevante, ainda no que toca à justificativa da decisão que indeferiu a liminar pleiteada, é o argumento (aqui transcrito) no sentido de que “a nova realidade da era digital faz com que as manifestações de magistrados favoráveis ou contrárias a candidatos e partidos possam ser entendidas como exercício de atividade político-partidária. Tais declarações em redes sociais, com a possibilidade de reprodução indeterminada de seu conteúdo e a formação de algoritmos de preferências, contribuem para se alcançar um resultado eleitoral específico, o que é expressamente vedado pela Constituição”.

Assim, de acordo com o relator do mandado de segurança, o provimento do CNJ impugnado acabou por dar interpretação adequada e razoável no que diz com os limites da liberdade de expressão dos magistrados, sendo relevante para o efeito de nortear sua conduta.

Antes de seguirmos com um breve comentário sobre a matéria (e não apenas sobre o teor da decisão do STF e sua correção), é preciso destacar que o objeto da controvérsia (e foi nisso que se centrou também a argumentação do ilustre relator do mandamus) foi o estabelecido no artigo 2º do provimento, que, aliás, a teor do seu artigo 1º, tem por objetivo dispor sobre o uso do e-mail institucional dos magistrados e servidores e sobre a manifestação nas redes sociais.

De acordo com o referido artigo2º:

“A liberdade de expressão, como direito fundamental, não pode ser utilizada pela magistratura para afastar a proibição constitucional do exercício de atividade político-partidária (CF/88, art. 95, parágrafo único, III).
§ 1º A vedação de atividade político-partidária aos membros da magistratura não se restringe à prática de atos de filiação partidária, abrangendo a participação em situações que evidenciem apoio público a candidato ou a partido político.
§ 2º A vedação de atividade político-partidária aos magistrados não os impede de exercer o direito de expressar convicções pessoais sobre a matéria prevista no caput deste artigo, desde que não seja objeto de manifestação pública que caracterize, ainda que de modo informal, atividade com viés político-partidário.
§ 3º Não caracteriza atividade político-partidária a crítica pública dirigida por magistrado, entre outros, a ideias, ideologias, projetos legislativos, programas de governo, medidas econômicas. São vedados, contudo, ataques pessoais a candidato, liderança política ou partido político com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública, em razão de ideias ou ideologias de que discorde o magistrado, o que configura violação do dever de manter conduta ilibada e decoro”.

Embora o provimento também contenha outras prescrições em matéria de limites à liberdade de expressão dos agentes do Poder Judiciário, é o caso, por ora, de focar na legitimidade constitucional do dispositivo referido.

Em se circunscrevendo a celeuma a manifestações públicas dos magistrados em favor ou contra determinados candidatos ou partidos políticos, incluindo ataques pessoais que tenham por destinatários tanto candidatos quanto lideranças políticas ou partidos políticos com a finalidade de descredenciá-los perante a opinião pública, em razão de ideias ou ideologias das quais o(s) magistrado(s) discorde, o que, a teor do parágrafo 3º do artigo 2º, configura violação do dever de manter conduta ilibada e o decoro.

Uma primeira nota já se impõe. Que manifestações públicas (e não apenas nas mídias sociais, mas especialmente por meio delas, dada a amplitude e rapidez do seu alcance) que se destinam a apoiar diretamente ou mesmo desacreditar candidatos e partidos traduz conduta incompatível com a vedação constitucional de qualquer atividade político-partidária resulta evidente, de tal sorte que, quanto a esse ponto, como bem destacou o ministro Roberto Barroso, não se verifica nenhum tipo de censura ou desproporcionalidade, porquanto o provimento do CNJ apenas regulamenta no plano interno do Poder Judiciário, o que já se encontra previsto na própria CF.

Portanto, em que pese a posição pessoal manifestamente avessa à possibilidade de se estabelecer restrições a direitos fundamentais por meio de atos normativos da natureza de um provimento como o editado pelo CNJ, aqui é possível acompanhar o voto do relator, porquanto o ato normativo em causa não chegou propriamente a inovar na ordem jurídica.

Note-se — e aqui se trata de aspecto que nos soa como tendo particular relevância — que, retomando o que dispõe o mesmo artigo 2º, parágrafo 3º, “não caracteriza atividade político-partidária a crítica pública dirigida por magistrado, entre outros, a ideias, ideologias, projetos legislativos, programas de governo, medidas econômicas”. De tal sorte, à medida em que ao magistrado é assegurada a possibilidade de se manifestar de modo crítico a respeito dos temas colacionados, o provimento estabelece, em termos gerais, um critério material constitucionalmente sustentável para definir o que viola ou não o dever constitucional estabelecido no artigo 95 da CF.

Por outro lado, com isso não se está a espancar todas as dúvidas e perplexidades que dizem respeito à matéria. Não é preciso ter muito tirocínio para perceber que uma leitura conjugada de todo o conteúdo do artigo 2º revela que elevado grau de cautela se impõe, quando de sua aplicação em concreto para efeitos mesmo de eventual sancionamento do servidor ou magistrado autor de alguma manifestação pública em matéria político-eleitoral.

Isso se dá pelo fato de que o provimento, caso não for interpretado restritivamente (de acordo com a máxima já consolidada na cultura constitucional contemporânea de que restrições a direitos devem ser restritivamente compreendidas e aplicadas), poderá dar azo a eventuais abusos na sua interpretação e transformar-se em instrumento de opressão e controle dos magistrados, inclusive implicando violação de sua independência funcional.

À medida em que são vedados ataques pessoais destinados a desacreditar publicamente determinados candidatos, líderes e partidos em função de suas ideias e ideologias, é preciso ter em conta que a própria definição da conduta ilícita (de acordo com o provimento), diferentemente do que se dá em relação ao apoio direto e expresso a algum candidato ou partido, carece de cuidadosa avaliação caso a caso, até mesmo para não se transmutar, de modo contraditório, em uma violação do próprio parágrafo 3º do artigo 2º, que admite opiniões críticas a ideias, ideologias, projetos de lei, programas governamentais etc.

Cuida-se, de qualquer sorte, de mais uma razão para que não se olvide a máxima da interpretação restritiva de restrições a direitos, que assume ainda maior importância quando em causa a liberdade de expressão e sua posição preferencial, como bem lembrou o ilustre relator do feito.

Aspecto que calha agregar e que já se fez constar na epígrafe da presente coluna diz respeito à teoria das assim chamadas relações especiais de poder ou sujeição, de acordo com a qual existem situações nas quais, por força das circunstâncias e da posição na qual se encontra ou função que exerce determinado titular de direitos fundamentais, algumas restrições a tais direitos se justificam do ponto de vista constitucional.

É a situação na qual se encontram, por exemplo, os presos, regidos por um estatuto jurídico próprio em que são previstas restrições a direitos que, caso estivesse o apenado em liberdade, não lhe seriam impostas. O mesmo se dá em relação aos militares, para os quais a própria CF previu um estatuto jurídico-constitucional diferenciado, que inclui restrições significativas em relação a diversos direitos fundamentais, como é o caso da limitação do manejo da ação de Habeas Corpus e do direito de greve. Para os magistrados, como já se teve ocasião de verificar, vale o mesmo, porquanto a vedação de atividade político-partidária e a correlata limitação da liberdade de expressão se inserem num contexto marcado por uma diferenciada posição funcional que atrai algumas limitações.

Há que sublinhar, contudo, de que mesmo em situações às quais se aplica a teoria (dogmática) das relações especiais de sujeição não são legítimas medidas que possam levar à supressão de direitos fundamentais dos indivíduos que nelas se encontram, embora — como no caso dos magistrados — possam ensejar um nível mais forte de restrição a determinados direitos, como é o caso (desde que restritivamente interpretada) das vedações previstas no artigo 2º do provimento da CNJ.

Mas como o provimento não se esgota com a matéria ora sumariamente exposta, apresentando, pelo contrário, outros aspectos problemáticos e que exigem contínua reflexão, inclusive no que diz com eventuais restrições ilegítimas à liberdade de expressão dos membros do Poder Judiciário por conta de tipos abertos e conceitos indeterminados (como se dá no provimento ora comentado, na própria Loman e no Código de Ética da Magistratura), há que manter permanente vigília e posição crítica a tais medidas. Mas isso é algo a enfrentar em futuras colunas.

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