Opinião

Memórias de um incêndio e o incêndio da memória nacional

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14 de setembro de 2018, 6h58

Incêndio do Museu Nacional no fatídico domingo de 2 de setembro, no início da Semana da Pátria! Semana da Pátria ou de luto por a termos perdido?

Muito se tem escrito e falado a esse respeito, mas peço um voto de confiança a você, leitor(a)! Não para mim ou para alguém que dispute as eleições que ocorrem no próximo mês, mas porque há uma originalidade do ponto de vista deste pequeno texto, modéstia à parte. Aliás, não há orgulho algum na originalidade em questão. Melhor seria que ela não existisse, porque não é muito agradável ter corrido o risco de perecer em um incêndio semelhante a este que vitimou o Museu Nacional.

Pois é. Sobrevivi ao incêndio em 2005 da sede do INSS em Brasília. É uma história trágica, mas com alguns acontecimentos pitorescos. Inclusive por, na prática, ter se relacionado, de uma maneira que chamaria a atenção do ministro Toffoli, com o incêndio do Museu Nacional: na sexta-feira, 31 de agosto, discutíamos, no INSS em que ainda hoje trabalho após voltar à planície, a urgência de medidas para evitar incêndios como o da sede da autarquia. No domingo, veio o incêndio no museu, com grande repercussão. Mas há mais coincidências. Se é que são meras coincidências. Vamos lá.

Começarei do fim da história: na segunda-feira, 3 de setembro, assisti ao Bom Dia Brasil e ao Jornal Nacional, da Rede Globo. Quando liguei a TV pela manhã, ia iniciar a mensagem do Alexandre Garcia. Este fez questão de começar sua prédica reafirmando a ideia de que o Estado brasileiro gasta muito dinheiro e depois passou a demonstrar profunda indignação a respeito do incêndio no museu.

O Jornal Nacional também cobriu o incêndio e, após o famoso "Boa noite!", Bonner permaneceu sorrindo enquanto passavam os créditos finais… Neste momento, senti falta daquele silêncio eloquente ao final quando há luto porque algum figurão faleceu… Não! Houve som junto com os créditos. Talvez porque "Luzia" já tinha morrido há mais de 12 mil anos… Ou não imaginaram que ela poderia ter sido uma figurona! Talvez porque… Esqueci… É… Qual a importância da memória no Brasil mesmo?

Por lembrarmos dela, voltemos um pouco menos que 12 mil anos, para uma data mais perto de hoje: 27 de dezembro de 2005. Neste dia, estava eu me aprontando para ir trabalhar na sede do INSS em Brasília enquanto assistia ao Bom Dia Brasil. Quando já me preparava para sair, surgiu uma "notícia de última hora": Renato Machado, se não me falha a… Memória… Afirma que o prédio do INSS em Brasília está queimando desde aproximadamente 7h. Fiquei desnorteado… Terminei de me aprontar e fui lá.

Ao ver pessoalmente o prédio em chamas, pensei: "Tenho que deixar de trabalhar na Previdência… Isso é um aviso!". Daí lembrei que tinha deixado o notebook funcional dentro do prédio, lembrança que aumentou minha angústia: "Se o notebook queimar, nunca mais me dão outro!". Consegui autorização para entrar no prédio e ir na minha sala no primeiro andar procurar o computador. Quando estava lá dentro, ouvi um estrondo aterrador e imaginei que o prédio estava desabando sobre mim. Tão medonho foi esse som que as pessoas na rua correram para longe do prédio. Imaginem então o estado do cidadão que lhes escreve e que estava esperando o prédio desabar em cima de sua cabeça. Felizmente, tinha sido apenas um fortíssimo trovão que inventou de ocorrer exatamente naquele trágico dia.

Voltando para a Semana da Pátria iniciada com fogos de verdade, o que tem a ver um incêndio com o outro além da coincidência de um ter começado por volta das 7 da manhã e o outro por volta das 7 da noite? Aliás, tivesse o fogo no INSS começado uma hora mais tarde, talvez eu não estivesse ainda neste mundo e não pudesse, portanto, escrever estas linhas, hipótese de que me apercebi apenas após o incêndio do Museu Nacional. Como se pode ver, são tantas emoções e tantas coincidências. Vou citar mais algumas, começando afirmando que ambos os incêndios não causaram vítimas… Quero dizer… Pelo menos não mataram ninguém sob o efeito do fogo. Para minha sorte e das demais pessoas que trabalhavam em ambos os prédios.

Por mencionar tais pessoas, surge talvez a mais significativa coincidência! Quem são elas? De onde vieram, para onde vão?, como perguntaria Sérgio Chapelin. Servidores públicos. Ou seja: os judeus na política brasileira pós-1988, os culpados de sempre por todas as mazelas do país! Ou melhor: alguém aí lembra quando os servidores e o serviço público passaram a ser alvo de campanha sistemática de difamação e destruição pela mídia, políticos e por ações e omissões do Estado brasileiro? Até onde vai minha memória, isso se deu a partir do governo Collor e nunca mais parou. O próprio governo petista iniciou-se em 2003 com a "reforma da previdência" dos servidores públicos. De 1990 para cá, só se fala em reduzir o Estado, reduzir despesas com servidores… Mas ninguém se lembra que esses existem para que o próprio Estado exista e preste direitos sociais à população.

O jurista gaúcho Lenio Streck recentemente publicou texto sobre ilegalidades propostas por um candidato à Presidência da República. As ilegalidades citadas pelo referido articulista são gritantes, mas talvez não se comparem ao quanto essa campanha contra serviços e servidores públicos afronta a Constituição de 1988. Esta, como se sabe, previu uma série de direitos sociais, dentre os quais a Previdência, a educação, a saúde, a segurança e um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Agora, como estão esses serviços? Basta ver o lixo em que se tornaram as instalações do Poder Executivo neste país. As políticas públicas, que deveriam fazer cumprir a Constituição para que fossem assegurados os direitos sociais, são frontalmente contrárias à efetiva prestação de tais direitos. Como se espera seja a Previdência em todo o Brasil se a sede do INSS incendeia devido a suas péssimas condições de conservação?

Uma curiosidade: por que, depois de 200 anos de sua fundação, o Museu Nacional resolveu incendiar no dia 2 de setembro de 2018? Haverá ainda investigações das causas do incêndio, mas se não for apurado ter sido ele criminoso, ou melhor, causado dolosamente pela ação de algum celerado, há grande chance de que a investigação chegue à mesma conclusão da que apurou o incêndio do INSS: a causa foi um curto-circuito em um aparelho de ar condicionado velho ou coisa parecida. E ainda que algum psicopata tenha iniciado o fogo, certamente o incêndio não foi debelado a tempo por falta de mínimas condições de segurança (nem sequer havia água nos hidrantes próximos ao prédio).

Além da "causa eficiente", lembrando Aristóteles, a resposta final, ou a causa final pode estar expressa, embora nas entrelinhas, em um acontecimento em que os destinos da Previdência e da cultura foram recentemente entrelaçados, para o azar da última, que atraiu a má-sorte que vem se abatendo sobre o pobre INSS: no apagar das luzes do governo Dilma Rousseff, no mesmo dia do afastamento da presidente pelo Senado, em 12 de maio de 2016, Michel Temer editou a Medida Provisória 726/2016, que extinguiu os ministérios da Previdência e da… Cultura. Houve comoção contra a extinção do Ministério da Cultura, com shows, cantores etc., e este foi ressuscitado… Mas debalde, pois a má vontade continuou, como deu para perceber no último dia 2. Sobre a pobre Previdência, no entanto, quase não houve reclamações, não obstante o INSS pague cerca de R$ 42 bilhões de reais… Por mês, estimando-se que os rendimentos previdenciários sustentam metade das famílias brasileiras hoje.

Aumentando o espectro da causa final de ambos os incêndios, do INSS em Brasília e do Museu Nacional na antiga capital, convém lembrar de Sérgio Buarque de Holanda. Seu Raízes do Brasil descreve, dentre outras, duas tradições herdadas do colonizador português: o desleixo e a tendência ao autoritarismo político-paternalista.

No Brasil colônia, quando D. João VI mandou fundar o Museu Nacional, evidentemente era muito forte o desleixo, enquanto o paternalismo era praticamente política oficial, já que o regime era o absolutismo monárquico. Mas por que, naquele tempo, conseguiu-se fazer um museu tão importante e só agora ele foi destruído? A resposta parece estar em que nosso antigo desleixo do português medieval evoluiu, em fins do século XX, para o mais abjeto esculacho. Não à toa, junto com esse desleixo radicalizado, ressurgiu, no cenário político, o autoritarismo a que nosso povo tende por não ter conseguido ainda superar a imaturidade política que pede um “pai” para nos dizer o que é certo ou errado, preferencialmente debaixo de pancada, como reza a cartilha da educação tradicional das crianças brasileiras.

Aqui, necessário fazer-se justiça aos portugueses colonizadores: eles eram limitados pelas condições de sua época, em que a imprensa de livros havia sido inventada poucas décadas antes de Cabral aqui aportar, havia menos de meio bilhão de pessoas no planeta inteiro, sua tecnologia nos faz rir hoje etc. Mas nossos antepassados, se vissem que, além de, hoje, repetirmos os erros deles, fazemos ainda pior, nos dariam uma camaçada de pau, como se diz na lusitana Florianópolis.

Por isso, caro leitor eleitor, cara leitora eleitora, cuidado! Nas próximas eleições e nas demais, desconfie! Desconfie de todos os candidatos e de toda a mídia que venham com essa ladainha de bater no serviço público e nos servidores públicos. Não dá mais para aguentar esse papo. Respondamos a eles com um brado retumbante: "Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação!".

Tal política de sucateamento dos serviços públicos tem um único objetivo: deixar o povo sem direitos sociais e economizar para gastar com finalidades que são mais do gosto das nossas elites econômicas, que não se importam se as pessoas morrem sem atendimento nos hospitais, se o INSS não consegue atender à população, se não temos segurança, se nossa flora e fauna são barbaramente devastadas, o que nos causa falta de água e eletricidade… Que dirá de se importarem com um museu!!! Ainda que tenha ele sido criado no início do Estado brasileiro pelo monarca que instituiu as bases de tal Estado, quando o liberalismo ainda engatinhava. Se os neoliberais brasileiros perdem para uma monarquia escravocrata, vão empatar com quem? D. João VI riria se não houvesse motivos para prantear muito.

De agora em diante, somos menos brasileiros, porque um ser não existe se não tiver história… E quanto de nossa história perdeu-se para sempre num domingo à noite juntamente com o prédio não por acaso chamado de Museu Nacional?

Autores

  • Brave

    é procurador federal, chefe da PFE/INSS/Florianópolis, especialista em Direito Previdenciário e Processual Previdenciário pela PUCPR e em Direito Processual Civil pela Faculdade Cesusc.

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