Opinião

A distorção da teoria do domínio do fato e seu uso no combate à corrupção (parte 2)

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12 de setembro de 2018, 6h21

(Clique aqui para ler a parte 1 deste artigo)

Na esteira do ecoar dos efeitos do entendimento firmado pela corte constitucional, conforme publicado pela ConJur[1] no último dia 4, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad foi denunciado pelos crimes de corrupção passiva, associação criminosa e lavagem de dinheiro. Pelos mesmos crimes, foram igualmente denunciados João Vaccari Neto e Francisco Carlos de Souza. Ainda, Ricardo Pessoa e Walmir Pinheiro Santana por corrupção ativa, lavagem de dinheiro e associação criminosa e Alberto Youssef como incurso nestes dois últimos delitos.

O documento é mais um dos claros exemplos de como a desvirtuação da teoria do domínio do fato empreendida pelo Supremo Tribunal Federal há seis anos continua sendo utilizada erroneamente pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.

O Grupo de Atuação Especial de Repressão à Formação de Cartel e à Lavagem de Dinheiro e de Recuperação de Ativos do Ministério Público do Estado de São Paulo, órgão responsável pela elaboração da exordial em apreço, elaborou um capítulo à parte denominado “Domínio do Fato: Fernando Haddad”, em sede do qual consignou que:

“A teoria, já difundida e amplamente aplicada na Europa e em diversos Países civilizados pelo mundo afora, fundamenta a responsabilização penal para a pessoa do mandante do crime na condição pré-estabelecida de ‘senhor da situação’, ou aquele que detém o ‘domínio do fato’.

A ação típica não se entende unicamente como uma atuação com determinada atitude pessoal, nem como mera consequência do mundo exterior, mas como unidade de sentido objetivo-subjetiva. O fato aparece assim como obra de uma vontade que se dirige ao sucesso. Não é só determinante para a autoria, a vontade de direção, mas também o peso objetivo da parte do fato, assumida por cada interveniente. Resulta que pode ser autor quem, segundo a importância da sua contribuição objetiva, comparta o domínio do curso do fato. Por isso, o tipo, em certas condições, pode ser realizado também por aqueles instrumentos que, apesar de não executarem uma ação típica no sentido formal, possuem o domínio do fato e o compartilham”[2].

A este termo, faz-se mister pontuar os equívocos comumente difundidos e empregados a respeito da teoria do domínio do fato.

Como já extensamente afirmado, o desenvolvimento da teoria por Claus Roxin não permite sua aplicação às instituições que operem dentro da legalidade, como é o caso de partidos políticos.

Assim, não basta que o indivíduo apontado como autor seja, usando termos da própria peça vestibular, “mandante do crime”, “senhor da situação” ou que detenha “domínio do fato”. Para que se possa utilizar tal teoria, é necessário que a instituição opere à margem da legalidade.

É preciso, também, exprimir as três afirmações que usualmente são vinculadas à construção teórica de domínio do fato, mas ostentam, em sua dimensão, erros crassos. São elas (i) o enquadramento do mandante como autor, (ii) o enquadramento como autor pela afirmação de que o mesmo “possuía domínio do fato” e (iii) o domínio do fato decorrente da posição de líder do grupo.

Com relação ao primeiro ponto, excepcionalmente leciona Luís Greco[3]:

“A ideia de que, segundo a teoria do domínio do fato, ter-se-ia aqui autoria, de que o «mandante» [termo, diga-se de passagem, coloquial, de conteúdo jurídico obscuro] é autor, de que existiria um «autor intelectual» — é um grande equívoco cuja origem parece ser o pequeno livro de D. Jesus. A raiz do equívoco é uma confusão entre domínio do fato, autoria mediata por domínio da organização e instigação”[4].

No tocante à segunda provocação, com base nos mesmos ensinamentos acima apontados, concorda-se que “talvez o erro mais comum e menos observado é fundamentar o status de alguém como autor atribuindo-lhe o domínio do fato”[5]. Isso porque, “do ponto de vista da teoria e da metodologia do direito, a ideia de autor como figura central do acontecer típico, bem como a ideia de domínio do fato, não são conceitos classificatórios, ou seja, que postulam um conjunto de elementos sob os quais se podem subsumir as diversas formas de comportamento ocorridas na realidade, mas sim conceitos que Roxin caracteriza como abertos e Schünemann como tipológicos”[6].

Logo, “«não se trata de uma descrição da autoria, mas de um critério formal, um ponto de apoio metodológico». Com a teoria do domínio do fato, «não foi encontrada uma fórmula mágica, da qual se possa deduzir um resultado diante de uma qualquer situação». No dia-a-dia forense, isto é, no momento de resolver se, em um caso concreto, A é autor ou mero partícipe, de nada serve afirmar «autor, porque tem o domínio do fato» ou «partícipe, porque lhe falta o domínio do fato». Tais afirmações são vazias de conteúdo, na medida em que o fundamental é determinar quais circunstâncias concretas fazem do sujeito o senhor do fato”[7].

No caso da denúncia apresentada pelo órgão ministerial estadual paulista em face do ex-prefeito Fernando Haddad, careceu o parquet justamente da demonstração das circunstâncias concretas aptas a demonstrarem a vinculação do então chefe do Executivo municipal às práticas tipificadas pelos artigos 317, caput, 288, caput, ambos do Código Penal, e pelo artigo 1º, caput, da Lei 9.613/98.

Anote-se que, endossando o exposto até este ponto, de nada serve à fundamentação da adoção da teoria do domínio do fato a singela afirmação de que “houve solicitação e efetivo recebimento, direta/indiretamente para o PT – Partido dos Trabalhadores e para, João Vaccari Neto, Francisco Carlos de Souza e Fernando Haddad, em razão da função decorrente do exercício do cargo de Prefeito Municipal de São Paulo/SP, de vantagem indevida em dinheiro”[8].

E a afirmação supra exarada pelo Ministério Público serve, por derradeiro, ao esclarecimento do último equívoco correntemente empreendido no âmbito da aplicação da teoria em comento, qual seja “o domínio do fato decorrente da posição de líder do grupo”.

Em finalista observação, segue nos auxiliando as pertinentes lições de Greco, ao aclarar que “ocupar uma posição de destaque ou mesmo de comando em um grupo em que uma pessoa plenamente responsável pratica uma dessas condutas não faz de ninguém, por si só, autor dessas condutas. Aliás, tal não é o caso nem mesmo com base na leitura tradicional do art. 29, caput, CP: ter uma posição de comando não significa, necessariamente, concorrer, causar o fato. Confirmando o que dissemos, que a teoria do domínio do fato é, no geral, não mais extensiva e sim mais restritiva que o conceito extensivo de autor em que se baseia o art. 29, caput, CP, aqui só será possível falar em autoria se o chefe de um grupo emite uma ordem dentro de uma estrutura que atenda aos requisitos do domínio da organização (estrutura verticalizada, dissociação do direito, fungibilidade do executor, supra 3.2.) ou da coautoria (decisão comum, contribuição relevante [na fase da execução?])”[9].

Verifica-se, com base na abalizada doutrina trazida à baila, que, em primeiro lugar, a teoria a ser mencionada nestes casos é a do domínio da organização, que não pode, em nenhuma hipótese, receber a roupagem de domínio do fato e, em segundo, que igualmente não há que se cogitar a imputação de autoria àquele sujeito que simplesmente desempenha função de chefia em determinado grupo.

Ademais, a leitura atenta da integralidade da denúncia permite averiguar que não há vinculação de elementos probatórios concretos a nenhuma das imputações feitas ao ex-prefeito, mas apenas uma colaboração premiada — que, como é sabido, não pode ensejar, isoladamente, uma persecução penal — e afirmações vagas que igualmente apontam os descuidos no manejo da teoria em análise e, por sua vez, não detêm o condão de promover justa causa à inauguração de nenhuma ação penal — ao menos não em nosso ordenamento jurídico.

O parquet, reiteradas vezes, se vale de termos abertos como “indiretamente” e afirma que “não é possível interpretar que o tesoureiro do partido ou funcionário pudesse ter autonomia para representar o Prefeito Municipal em relação a qualquer futuro benefício de contrapartida sem que ele [Fernando Haddad] soubesse, admitisse, permitisse e/ou autorizasse” e que “tampouco é possível interpretar que um Prefeito Municipal de São Paulo, recém-eleito, receba R$ 2.600.000,00 de uma Empreiteira que tem ou pode ter negócios com a Prefeitura Municipal de São Paulo, por mera liberalidade, sem que a Empreiteira espere absolutamente nada em troca — em contrapartida”.

Fica claro, aí, que a ideia de responsabilização objetiva e, principalmente, de flexibilização dos requisitos do artigo 41 do Código de Processo Penal, tal como exposta pela ministra Rosa Weber quando do julgamento do mensalão, continuam presentes, mesmo que alguns ministros tenham categoricamente rejeitado a possibilidade de substituição da ausência de provas pela teoria do domínio do fato.

Ou seja, substituiu-se, no presente caso, provas de uma suposta corrupção passiva, associação criminosa e lavagem de dinheiro pela mera menção à referida teoria. Não basta o mero emprego da expressão domínio do fato para que esta, magicamente, promova a supressão da obrigatoriedade probatória, seguindo necessária, ainda assim, a apresentação de provas.

No mais, outros erros continuam reverberando nos tribunais, em especial a ideia de que a teoria desenvolvida por Roxin seria aplicável aos delitos próprios, como é o caso da corrupção passiva.

Como segue evidente, tal delito só pode ser cometido por funcionário público ou por pessoas a ele equiparadas. Veja-se que Fernando Haddad, na condição de prefeito, e João Vaccari Neto, na condição de tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, são considerados funcionários públicos, mas Francisco Carlos de Souza, controlador das gráficas para onde os supostos valores ilícitos teriam sido destinados, jamais poderia responder pelo crime de corrupção passiva como coautor, mas apenas — e no máximo, de acordo com tal teoria — como partícipe.

A denúncia deixa claro, assim, que há tentativa de responsabilização objetiva, bem como que perdura o entendimento de que o trivial fato de se ocupar posição de destaque, como é o caso de Fernando Haddad, então prefeito de São Paulo, resta suficiente para fins de punição por um crime, mesmo não existindo provas mínimas de seu cometimento.

Vê-se que ainda há, desta forma, aplicação errônea da teoria do domínio do fato, intensificada após seu desvirtuamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do mensalão, realidade esta que promove obscura negação das bases garantistas que devem nortear a aplicação do Direito Penal, como inclusive atestado pelo advogado criminalista Celso Vilardi: “A utilização da teoria do domínio do fato está verdadeiramente desvirtuada, uma vez que como qualquer pessoa que leu Roxin (Claus Roxin, jurista alemão) sabe que a teoria do domínio do fato é um elemento que apoia o garantismo, e não o refuta. Portanto, exige a comprovação cabal da participação do agente”[10].

Permite-se, por todo o exposto, concluir que a previsão de Alaor Leite de “que a criminalidade econômica se veja, a partir de agora, confrontada constantemente com o emprego equivocado da teoria do domínio do fato — o domínio da posição travestido de domínio do fato —, o que pode resultar em desalentadores resultados”[11] mostra-se dotada de potencial — e preocupante — assertividade.


[1] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-set-04/mp-denuncia-haddad-corrupcao-base-delacao-2015>. Acesso em 8/9/2018.
[2] Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2018/09/denuncia1.pdf>. Acesso em 8/9/2018.
[3] GRECO, Luís. O que é e o que não é a Teoria do Domínio do Fato, Sobre a distinção entre autor e partícipe no Direito Penal. In: GRECO, Luís, et. al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. pp. 37-42.
[4] Op. cit. p. 38.
[5] Op. cit. p. 39.
[6] Op. cit.
[7] Op cit. pp. 39-40.
[8] Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2018/09/denuncia1.pdf>, fl. 491. Acesso em 8/9/2018.
[9] GRECO, Luís. O que é e o que não é a Teoria do Domínio do Fato, Sobre a distinção entre autor e partícipe no Direito Penal. In: GRECO, Luís, et. al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 41.
[10] Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/lava-jato-usa-teoria-do-dominio-do-fato-para-pedir-condenacao-de-executivos-de-empreiteira/. Acesso em 8/9/2018.
[11] LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros. Os conceitos de autor e partícipe na AP 470 do Supremo Tribunal Federal. In: GRECO, Luís, et. al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 168.

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