Opinião

Fernando Haddad e os desígnios insondáveis da acusação

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11 de setembro de 2018, 11h38

A verdade é sempre provisória. Assim caminham a ciência e o conhecimento. Valores éticos, sociais ou individuais desempenham papel importante na apuração dos fatos. Para afastar os valores, o ideal da imparcialidade requer vigilância constante. Até porque a isenção exige, à luz da realidade, a capacidade de examinar as evidências com a incorporação de todos os valores e de todos os interesses em disputa.

Será este exercício possível? O debate é inesgotável e está presente em diversas áreas. A indagação é procedente na ciência, na apuração dos fatos jornalísticos e no território — hoje minado e controvertido — dos “veredictos” do Judiciário e dos órgãos auxiliares da Justiça, em especial em relação à vida política brasileira.

O avanço do ativismo judicial, já amplamente denunciado por expressivos nomes do Direito, com merecido destaque para os professores Juarez Tavares, Pedro Serrano, Lenio Streck, Leonardo Isaac e Rubens Casara, mostrou mais uma vez sua face perigosa nos últimos dias. Na sequência do noticiário informando que o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad poderia ser o candidato do ex-presidente Lula no pleito de outubro, o Ministério Público de São Paulo passou a acusar Haddad de ter recebido pagamento para quitar dívidas de campanha. Contra, inclusive, a robusta prova de inocência produzida nos próprios autos. Denúncia inequivocamente dirigida a interesses inconfessáveis e circunstanciais, cujo destino esperado é o arquivamento por “falta de justa causa”, inépcia ou por excesso de criatividade e ausência de fundamentação jurídica.

Como escreveu o jornalista Alberto Dines (1932-2018), “a socialização do denuncismo não é prova de isenção, é a sua caricatura”. Os vícios de apuração da Promotoria — ausência de base empírica na ação, contradições no inquérito, entre outros mais graves ainda — raramente são captados imediatamente. Os equívocos podem perdurar anos, arrastando personalidades para o limbo político, com prejuízos pessoais e eleitorais irreparáveis.

Entretanto, a repercussão instantânea de suas investigações, ainda que amparadas na palavra suposta, é corrosiva para reputações. Uma vez que as acusações são levadas ao conhecimento da sociedade, os efeitos do tribunal midiático são implacáveis. Para a imprensa, é natural que a autoridade constituída dispense a presença vigorosa do contraditório. Assim, ao emprestar credibilidade para a versão das autoridades, o outro lado é contemplado de forma burocrática e formal. Ao atingir com velocidade uma ampla audiência, a acusação adquire notável peso simbólico — e o aspecto simbólico para o acusado, desprovido de mecanismos protetivos, tem muitas vezes a força de tornar a realidade insuportável.

Para os políticos, ingressar na arena disputadíssima das campanhas eleitorais sob a pecha de desaprovação do Ministério Público custa votos, alimenta dúvidas e é combustível para a rejeição dos eleitores. Em especial quando, frente à acentuada judicialização da política, fica difícil separar o “joio” do trigo.

A enorme responsabilidade de promotores diante do fato de que sua atuação desequilibra o jogo político deve merecer amplo debate. Sobretudo porque — como ressaltado no início — a premissa da imparcialidade esbarra no muro tênue das paixões, dos interesses, da coloração ideológica e da motivação política. Quando tudo se mistura — somos constituídos de “vastas emoções e pensamentos imperfeitos”, pegando emprestado o título do livro de Rubem Fonseca —, desvios são cometidos e investigações, às vezes pífias, como no caso em questão, são transformadas em atos políticos concretos, que transcendem a esfera jurídica.

Oculta sobre a blindagem do aparato da carreira de Estado — encorajada pela admiração da mídia, estimulada pela plateia ávida por “justiçamentos” e incensada por aqueles que confiam em órgãos tecnicamente “isentos” (sem a impureza das ideologias e das preferências políticas), a ação “moralizadora” de agentes de Estado segue colocando em risco a própria democracia.

O debate remete para a pergunta “Por que a Folha não assume?” (31 agosto de 2014), na qual uma jornalista indagava o porquê de o jornal não manifestar apoio explícito para candidatos à Presidência da República, como fazem publicações na Europa e nos Estados Unidos. O questionamento da então ombudsman Vera Guimarães Martins continua atual para toda a imprensa brasileira e pode ser estendido também para instituições e atores sociais que detêm o capital simbólico da credibilidade.

Para quem compreende a democracia como valor absoluto, a pergunta persiste como desafio: de que modo administrar as preferências e valores individuais e como fazer a boa gestão das prerrogativas sem influenciar o jogo político?

Imiscuir-se, sem transparência, nas preferências eleitorais, pode revelar sinal de força no presente. Infelizmente, entretanto, o enfraquecimento dos pilares constitucionais das instituições será o legado para o futuro.

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