Opinião

Há um recurso no Supremo tratando de uma coisa chamada homeschooling

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10 de setembro de 2018, 7h59

Resumo: no artigo mostro que não há direito de os pais não mandarem seus filhos à escola. Mostrarei, a partir de Brown v. Board of Educacion, que as crianças e os adolescentes têm direito à educação escolar, sem segregação!

Tramita no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário 888.815, com repercussão geral reconhecida, tratando de homeschooling, isto é, o direito ou a possibilidade de os pais poderem ensinar os filhos em casa. Já há um voto a favor da tese, proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso. Eis o resumo dos argumentos (o voto foi transcrito por meu assistente Fred Pessoa):

– O Estado brasileiro é grande demais, ineficiente e aplica políticas públicas inadequadas e sem monitoramento; a educação básica é insatisfatória; o Estado é paternalista. No início aponta sete motivos que os defensores do homeschooling dizem ter: 1 – desejo de conduzir diretamente o desenvolvimento dos filhos; 2 – fornecimento de instrução moral, cientifica, filosófica…que os pais entenderem mais adequada; 3 – a proteção da integridade física e mental dos filhos, retirando os filhos de ambientes hostis (incapacitadores, agressivos…) “nem todas as escolas ficam no sul de Brasília, ou no Leblon ou nos jardins”; 4 – descontentamento com a qualidade/eficácia do ensino público e privado; 5 – adaptação do ensino as peculiaridades dos filhos; 6 – a crença na superioridade do método de ensino domestico; 7 – a dificuldade de acesso ao ensino formal (preocupação genuína com o bem estar educacional dos filhos).

Diz, em síntese, que a escola formal não é único padrão de ensino aceito pela CF; não é relevante o artigo 246 do Código Penal porque, nesse caso, os pais de crianças que estão em ensino domiciliar estão provendo educação e ensino aos seus filhos.

A conclusão do voto

Assim, na medida em que já não há precedentes e nem jurisprudência no Brasil e cada ministro fixa teses (que acabam sendo leis com caráter geral), o voto cria uma “lei” para introduzir o homeschooling nos seguintes termos:

– É constitucional a prática de ensino domiciliar a crianças e adolescentes em virtude da compatibilidade com finalidades e valores da educação infanto-juvenil
para evitar eventuais ilegalidades e garantir o desenvolvimento acadêmico e avaliar qualidade do ensino até que seja editada lei sobre tema com fundamento no artigo 209.

– Os pais ou responsáveis devem notificar secretaria municipal de educação a opção pela educação domiciliar de modo a manter cadastro e registros dessas famílias que adotaram a opção.

– Educandos domésticos, mesmo que autorizados ao ensino em casa, devem ser submetidos às mesmas avaliações periódicas a que se submetem os demais estudantes de escolas públicas ou privadas.

– As secretarias municipais de educação a partir do cadastro devem indicar escolas públicas em que a criança irá realizar avaliações periódicas com preferência em estabelecimento de ensino mais próximo ao local de residência.

– Secretarias podem compartilhar informações do cadastro com demais autoridades, como ministério público, conselhos municipais de direitos e/ou conselhos tutelares.

– Em caso de comprovada deficiência na formação acadêmica verificada pela avaliação periódica, cabe a órgão público competente notificar os pais e na hipótese em que não haja melhoria determinar a matricula das crianças na rede regular de ensino”.

Minha objeção e colaboração como amicus curiae ad hoc

A primeira objeção a ser posta: com a devida vênia, o fato de o ensino brasileiro ser ruim não justifica que os pais possam substituir a escola. A discussão que deve ser feita é se, de fato, há um direito dos pais não mais mandarem seus filhos à escola.

A segunda objeção é que o ministro reduz a educação fundamental e o ensino médio a um mero instrumento, esquecendo que a escola é o marco da socialização e da sociabilidade das crianças e adolescentes. O ministro não acredita que a escola seja o espaço da sociabilidade e da inserção no âmbito da esfera pública, construindo uma linguagem pública. Vingando a tese do voto, corremos o risco de criar uma criança ou adolescente solipsista (Selbstsüchtiger), um sujeito viciado em si mesmo, pela falta da linguagem pública.

Mas não preciso entrar nesses âmbitos. Minha questão é mais singela. Trata-se da teoria da decisão. Para que a posição do ministro seja aceitável no campo do direito, ele tem de responder três perguntas fundamentais que sempre devem ser feitas em decisões desse quilate, para evitar o ativismo.[1]

A primeira é: não mandar os filhos à escola e lhes ensinar em casa é um direito fundamental exigível subjetivamente? Ou seja, mandar os filhos à escola é um direito fundamental ou um dever fundamental? Para mim, não se trata de direito e muito menos fundamental. Há, na verdade, um dever de mandar os filhos à escola, que não é mero instrumento. Da Constituição não se pode tirar esse direito que o ministro extraiu. No limite, a discussão é do legislador e jamais do Judiciário. A decisão é, assim, claramente ativista, porque coloca o STF no lugar do Congresso.

Todavia, para argumentar, dou de barato que seja um direito de os pais não mandarem os filhos à escola. Então vem a segunda pergunta da teoria da decisão. Nas mesmas “condições de temperatura e pressão”, quaisquer pais podem exercer tal direito? Se sim, então Barroso está certo. Mas, então, imaginemos que os pobres já não mandem os filhos à escola. Milhões deles. E os ricos também não, por razões diversas. Como responder a essa questão? Nem todos os filhos têm pais procuradores, como o ministro teve e a minha filha tem. Quem pode fazer homeschooling? E com que critérios?

Lembro aqui do caso Brown vs Board of Education, dos anos 1950, quando o Chief Justice Warren disse, em outras palavras, que não há cidadania sem educação escolar não segregada. O voto do ministro Barroso defende, no fundo, a desigualdade, uma vez que pensa que a segregação é compatível com a igualdade. Só que os séculos XIX e XX mostraram que não, que não é compatível e que isso impede o pleno exercício da cidadania. O que deve ser dito é que as crianças e os adolescentes têm direito à educação escolar! Esse é o verdadeiro direito fundamental que a CF estabelece. E os pais têm o dever de não privá-los dela!

O ministro dirá que o poder público controlará isso tudo, conforme se vê na sua tese fixada. Diz que haverá cadastro, haverá exames de conteúdo e até mesmo “remédio” do poder público para corrigir os fracassos do homeschooling (veja-se: em caso de comprovada deficiência na formação acadêmica verificada pela avaliação periódica, cabe a órgão público competente notificar os pais e na hipótese que não haja melhoria determinar a matricula das crianças na rede regular de ensino”). Com a devida vênia, essa ode de excelência do privado vai depender sempre do público.

Assim, a liberdade pelo ensino em casa (privado) dependerá do controle do poder público e por este subsidiado. Sim, porque os pais que colocariam seus filhos em ensino privado poderão ficar com os filhos em casa. E quem avaliará é o ensino público (ou entendi mal?) E quem pagará essa conta?

Por isso, vem a terceira pergunta que deve ser respondida: podemos transferir recursos das pessoas que não optam pelo homeschooling para fazer a felicidade dos que optaram por essa comodidade sem ferir a isonomia e a igualdade? Ou seja: para fazer feliz o sentimento de liberdade dos pais optantes pelo homeschooling, o poder público terá que aumentar a sua estrutura, treinar professores para avaliar em uma tacada o conteúdo ministrado pelos pais ou dos contratados por eles. Já imagino como isso será…

Portanto, nenhuma das três respostas recebe resposta afirmativa. E mesmo que se admita o “sim” à primeira pergunta, a pergunta dois inexoravelmente recebe resposta não, pela impossibilidade de universalização, sob pena de discriminação dos pobres. Ou seja: por uma questão óbvia, se os pobres quiserem educar seus filhos em casa, não poderão fazê-lo pela total impossibilidade material (despiciendo dizer por que, em um país em que mais da metade da população nem esgoto possui nas casas), ficando o homeschooling privilégio dos ricos, sob a “supervisão” – paradoxal – da escola pública…!

Logo, o voto de Barroso é para pais das camadas superiores, e que, ao fim e ao cabo, dependerão da escola pública que terá de dar o aval final, como selo de legitimidade do que foi ensinado em casa.

Em um país em que a escola é um refúgio para ganhar merenda, país em que os pais, na grande maioria pobres, não tem onde deixar os filhos a não ser na escola (por isso a importância da escola publica em turno integral), como é possível institucionalizar o direito de os pais não mandarem seus filhos à escola? Claramente uma medida a favor de quem pode pagar homeschoolars (imagino a indústria que se formará em torno disso – como os pais não precisam de formação, é óbvio que os contratados para isso não necessitam de formação; logo, o homeschooling despreza a profissão de professor). Interessante é que os pobres também terão direito a não mandarem os seus filhos à escola, desde que optem pelo homeschooling. Como não podem e não têm condições, poderão ser processados por abandono material. Sim, o que faremos com os pais que não fazem homeschooling e não mandam os filhos à escola? Eis aí a aplicação seletiva do Código Penal.

Como disse, estou aqui “atuando” como amicus curiae do STF de forma ad hoc. Eis a minha singela contribuição ao debate. Como no voto há exemplos de primeiro mundo para justificar a tese, eu posso apenas dizer que falo de um país tipo Belíndia (Bélgica mais Índia), onde os belgas poderão educar seus filhos em casa e os indianos até poderão…, mas não poderão.

Creiam-me, quando eu era criança a escola me salvou. Eu odiava férias. Não queria ficar em casa. Porque tinha de trabalhar. Socializei-me na escola. Pública. Pequenina. Assim como o fiz com as crianças quando fui professor, por concurso público, aos 16 anos de idade. E assim como, quando promotor de Justiça, em cada comarca, mantinha programa de rádio para chamar os pais e, por vezes, ameaçava-os de processo por não mandarem os filhos para a escola. E constatava, entristecido, que nem isso eles podiam fazer, por falta de roupa e material escolar. Como procurador, pedi absolvição de pais, baseado no Direito e na peça Santa Joana dos Matadouros, de Brecht. Leiam aqui minha coluna Santa Joana dos Matadouros, rogai por nós. Será o Brasil o primeiro país de terceiro mundo a implementar o homeschooling? A ver.

Numa palavra final: meu receio é que o próximo presidente (dois candidatos já disseram que vão acabar com a escola pública), se for um liberal ou de extrema direita, adote a ideia do homeschooling e “resolva” o problema do ensino, dispensando todo mundo de ir à escola, deixando que, livremente, cada pai ou mãe eduque seus filhos em casa.

Post scriptum 1. Do homeschooling ao home staying
No item 3 dos motivos que os pais têm em defesa do homeschooling, lê-se que isso é bom para a proteção da integridade física e mental dos filhos, retirando-os de ambientes hostis (incapacitadores, agressivos…). “Nem todas as escolas ficam no sul de Brasília, ou no Leblon ou nos jardins”. Se isso é verdade, o que farão essas crianças quando adultas? Ficarão em casa e pedirão “faculdade em casa”? E como sobreviverão nesse mundo violento depois?

Post scriptum2. O problema final e mais grave no voto
Há uma parte do voto em que o ministro diz: "Até que o Congresso Nacional edite lei específica sobre o homeschooling, que sejam adotados esses critérios…". Seria uma medida provisória editada pelo STF? Como ficam os diálogos institucionais? Se não há lei e se houvesse um direito fundamental, caberia mandado de injunção. Mas, assim, o voto é mais uma demonstração de ativismo. Se alguém ainda tem dúvidas acerca do que é ativismo, eis aí um exemplo de sala de aula.


[1] As três perguntas fundamentais fazem parte da teoria da decisão que proponho em Verdade e Consenso (Saraiva, 2017, 6ª. Ed) e no Dicionário de Hermenêutica (Editora Casa do Direito, 2018), nos verbetes Resposta Adequada e Constrangimento Epistemológico.

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