Segunda Leitura

A participação da sociedade civil e o incêndio do Museu Nacional

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

9 de setembro de 2018, 8h00

Spacca
No domingo passado, trágico incêndio destruiu o mais antigo e importante Museu do Brasil, localizado na Quinta da Boa Vista, bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, consumindo um patrimônio inestimável, no qual se incluíam peças de populações pré-colombianas, sarcófagos egípcios e outras tantas raridades, em 56 mil exemplares e 18,9 mil registros.

Entre as causas do infausto acontecimento, apontam-se a injustificável ausência de Certificado de Aprovação do Corpo de Bombeiros, irregularidade esta ao início negada pela direção do museu[1], negligência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que só estabeleceu medidas de combate a incêndios em bens tombados depois da destruição do Museu Nacional[2] e a omissão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no seu dever de cuidar do bem tombado.

Curiosamente, em 1990 a UFRJ recusou US$ 80 milhões do Banco Mundial para reformar o Museu, mediante a única condição de que sua administração passasse à sociedade civil[3]. Perdeu-se uma grande oportunidade de preservar-se o acervo para as futuras gerações.

Mas estas e outras causas da desdita serão examinadas ao seu tempo pelo Ministério Público Federal. Espera-se que os responsáveis, direta ou indiretamente, paguem um preço alto por seu comodismo, pouco caso e negligência.

Aqui, o foco será outro: qual o papel da sociedade diante do nosso patrimônio histórico-cultural.

O artigo 216 da Constituição Federal afirma serem nosso patrimônio cultural “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.

Este patrimônio é considerado meio ambiente artificial e, por isso, está protegido pelo artigo 225 da mesma Constituição. Este artigo afirma que o meio ambiente equilibrado é um direito de todos, “impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

O que se quer dizer com isto é que na questão ambiental, que inclui a preservação do patrimônio histórico-cultural, há um direito e um dever correspondente da sociedade. Dela se espera que apoie e incentive a ação do Estado.

Pois bem, como se comporta a sociedade brasileira na proteção dos nossos monumentos e da nossa história? A resposta é simples: omissa.

Na verdade, o amor e o interesse por nossa história deve começar em casa. Os pais devem incluir os museus nos seus passeios com os filhos quando pequenos, explicar-lhes a importância da preservação da memória, fazê-los cientes de que são parte do que está exposto. É preciso equilibrar as idas aos shoppings com visitas a museus.

As escolas do ensino fundamental também são essenciais na formação das crianças. Quantas levam seus alunos a museus? Tal iniciativa, rotineira na Europa, é rara no Brasil. Ao contrário do que se pensa, crianças e jovens têm interesse, gostam. Todos os anos levo alunos da graduação em Direito ao Museu Paranaense, em Curitiba. Geralmente, 90% deles nunca visitou e vão porque são obrigados. Mas, ao final, revelam grande satisfação, saem felizes.

Porém, é preciso mais. É preciso a sociedade organizar-se na proteção, enriquecimento e divulgação dos museus. Organizações civis de tal tipo são comuns nos Estados Unidos. Museus, fortalezas, centros históricos, sempre têm a sociedade civil dando apoio. Da mesma forma na França e na Espanha. Elas são decisivas, pois mesmo naqueles países, economicamente mais desenvolvidos, o Estado não consegue suprir todas as necessidades.

No Brasil, o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) vem tentando estimular a criação de tais entidades. Recentemente, o IBRAM reconheceu associações de “amigos dos museus Castro Maya (Chácara do Céu e Museu do Açude, RJ), Museu da Inconfidência (MG), Museu Lasar Segall (SP), Museu Victor Meirelles (SC) e Museu Histórico Nacional (RJ)”[4].

Tais medidas são de todo oportunas. Museus, mausoléus, centros históricos, muitas vezes ficam abandonados à sua própria sorte. É preciso mudar este mau hábito. Algumas iniciativas merecem referência.

Em Porto Alegre tive a alegria de encontrar uma servidora da Justiça Federal aposentada, prestando serviços no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli. Ela pertencia a uma Associação, a AMARGS, que desde 1982 “participa ativamente da vida do museu por meio da contribuição dos seus sócios, por doações e pelo aluguel dos espaços do MARGS”[5].

Em Curitiba, o voluntariado já foi parte importante da história do Museu Paranaense, tendo sua 4º sede sido construída por voluntários[6]. Atualmente, atua a Sociedade de Amigos do Museu Paranaense (SAMP), cuja missão é auxiliar o referido museu na sua manutenção e preservação do acervo, o que faz através de doações de associados e não por serviços voluntários[7].

Em São Paulo, o Museu de Arte Moderna, localizado no Parque Ibirapuera, tem um “Programa dirigido ao público escolar, da educação infantil à universidade. Por meio dele, o professor pode alinhar o conteúdo curricular de sua disciplina ao cronograma de exposições. O programa também proporciona acesso gratuito ao MAM a todos os membros da comunidade escolar parceira: alunos, professores, funcionários e familiares”, ao qual aderiram 34 escolas[8].

Retornando à perda irreparável do acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro: organizar manifestações de protesto ou de pura lamentação após a destruição, de nada adianta. No caso do Museu Nacional, se a sociedade civil estivesse organizada em torno daquele monumento histórico e de tudo o que nele se continha, a tragédia não teria ocorrido. Os administradores sentir-se-iam pressionados a tomar medidas de cautela.

Se algo pode ser extraído desse triste acontecimento, é a lição de que a sociedade civil não pode ficar apática diante dos acontecimentos, à espera de um messias que tudo proveja. É preciso participar. A doação de algumas horas por semana pode ser a solução de um problema que o Estado não consegue resolver.


[1] O Estado de São Paulo, 6/9/2018, A18.
[2] Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/iphan-publica-portaria-para-normatizar-combate-incendio-em-bens-tombados-23046955. Acesso em 6/9/2018.
[3] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/09/ha-20-anos-universidade-recusou-verba-para-reforma-de-museu-incendiado.shtml. Acesso em 6/9/2018.
[4] Disponível em: http://www.museus.gov.br/tag/associacao-de-amigos/. Acesso em 6/9/2018.
[5] Disponível em: http://www.margs.rs.gov.br/midia/associacao-de-amigos-do-margs-realiza-leilao-em-beneficio-do-museu/. Acesso em 6/9/2018.
[6] MARANHÃO, Maria Fernanda Campelo "CONTEXTUALIZANDO IMAGENS PARANISTAS (1940-1950)" pagina 17 http://www.museuparanaense.pr.gov.br/arquivos/File/mf.pdf , Acesso 06/09/2018)
[7] Disponível em: http://www.museuparanaense.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=10
[8] Disponível em: http://mam.org.br/escolas-parceiras/. Acesso em 6/9/2018.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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