Opinião

Não há dúvida de que quem acusa tem a obrigação legal e moral de provar

Autor

  • Marcelo Nobre

    é advogado pós-graduado em Direito Societário pela GVLAW ex-conselheiro nacional de Justiça (CNJ) e ex-conselheiro e diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) e da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).

9 de setembro de 2018, 6h39

O que você acha de ser acusado, mas quem o acusa não prova?

No poema A Verdade Dividida, o genial Carlos Drummond de Andrade discorre sobre a impossibilidade de se chegar à verdade, já que esta possui muitos lados que não são coincidentes. Assim como na poesia, na Filosofia e até mesmo no Jornalismo, o Direito também questiona a busca da verdade.

Com a chegada da civilização e a sua evolução, as sociedades que se formaram incumbiram o Estado de ser aquele ente sem qualquer interesse e, portanto, com total isenção no resultado, pacificando os conflitos de seus cidadãos, com o poder de dizer por último quem é que está com o direito e com a Justiça naquele litígio. E é ele — Estado — que detém a força para fazer com que a decisão seja respeitada e cumprida.

Entretanto, tão fundamental quanto a prova é a fundamentação do pedido que gera a ação e que envolve as partes do processo. O ônus da prova, ao contrário do que pensa o leigo, nem sempre é só do acusador, o autor da ação.

O sistema jurídico brasileiro nos distingue dos países que adotam a common law, onde todas as autoridades envolvidas no processo podem se empenhar em obter provas, interrogar testemunhas e apresentar suas teses para que o juiz julgue ou para que o júri, nos casos criminais, decida. Em um processo judicial no nosso país, é o juiz quem autoriza a coleta de provas e é ele quem tem o poder para decidir quais são as desnecessárias, inúteis e até mesmo as inválidas, como, por exemplo, aquelas obtidas por meios ilegais.

O magistrado pode até julgar antecipadamente um caso, se entender que o conjunto probatório o satisfaz. Um dos problemas que se encontram nesse procedimento, conhecido como julgamento antecipado, é o fato de que as cortes superiores não reexaminam as provas constantes do processo, e isso tem consequências nefastas quando se condena o réu, pois, se não houve produção de provas em razão do julgamento antecipado de um processo, gera uma enorme dúvida sobre se a justiça foi feita, pois essa atitude, inegavelmente, impediu o exercício pleno da defesa, o que é inadmissível em um Estado Democrático de Direito.

Nos processos cíveis, a previsão legal sobre o juiz que presidiu a coleta das provas ser o responsável pelo julgamento do processo, nos termos do novo Código de Processo Civil, sofreu uma flexibilização, tornando-a, agora, facultativa. A percepção geral do homem médio brasileiro é a de que o magistrado que coletou as provas em um processo está muito preparado para o julgamento daquela lide e por isso deve julgar, por ser ele que conhece os meandros do quadro probatório daquela questão, já que foi quem ouviu pessoalmente as testemunhas, viu os seus olhos, o comportamento de cada um na inquietante cadeira destinada às testemunhas, formulou quesitos específicos para o perito, interrogou pessoalmente o próprio réu, tornando-se o mais preparado para decidir aquele processo.

Por outro lado, é inegável e indiscutível que esse mesmo magistrado está totalmente condicionado pelo que viu, ouviu e sentiu. Será que isso é bom? Para o processo que cuida de questões cíveis, ou seja, societárias, relações negociais, de locações de imóveis e tantas outras situações que envolvam discussões materiais, pode-se, talvez, aceitar uma decisão dada pelo mesmo magistrado que fez a instrução.

Por outro lado, no processo penal, existe grande controvérsia sobre a decisão final ser dada pelo mesmo juiz que colhe as provas. Esse papel de um único magistrado a conduzir todo o processo, sendo ele também o julgador (instrução e julgamento), tem sido colocado em dúvida. E por que no âmbito penal esse debate muda? Apesar de a discussão ainda ser relativamente nova no Brasil, ela é muito debatida e aplicada em vários países, aqueles chamados de evoluídos ou de “primeiro mundo”.

Na área cível, em regra, o ônus da prova cabe ao autor. Mas, em alguns casos excepcionais, o juiz, amparado na lei, pode inverter o ônus da prova, transferindo esse ônus ao réu, como, por exemplo, nos casos que envolvam questões atinentes às relações de consumo.

Já no Direito Penal, ao contrário, o ônus da prova cabe sempre e só a ele, o autor da ação, em especial quando o autor fala em nome da sociedade, como é o caso do Ministério Público. Nessa situação, é impensável a transferência do ônus da prova ao réu.

Diante do juiz, todas as provas feitas no âmbito policial ou no âmbito apenas do Ministério Público podem ser refeitas, e todos os depoimentos obtidos nessa fase pré-processual podem ser novamente colhidos. O juiz que faz a instrução pode determinar a realização de novas diligências a fim de dirimir dúvidas. Ou seja, ele pode tomar a iniciativa de buscar uma prova que não tenha sido produzida e da qual depende o convencimento daquele que julgará. Essa, sim, é a conhecida busca da verdade absoluta. Mas, como disse o grande poeta, será que a verdade pode ser alcançada?

No Direito brasileiro, as provas são divididas em quatro naturezas, sendo três delas bem conhecidas: a documental, a testemunhal e a pericial.

A quarta, que tem ganhado muita força no meio jurídico nos últimos anos, aparece de forma cristalina no julgamento que condenou várias pessoas do mundo político. É a chamada prova indiciária, ou seja, aquela que é baseada tão somente em indícios. É certo que o indício pode orientar uma investigação preliminar com o objetivo de se buscar alguma prova concreta que torne aquele frágil e duvidoso indício, antes imprestável para uma condenação, como sendo algo real, verdadeiro e retirando o aspecto duvidoso.

Portanto, neste novo Direito que estão construindo no Brasil, neste novo trâmite processual sem base legal, o magistrado passa a ter a possibilidade de condenar um réu apenas com fundamento em uma série de circunstâncias que deixou o julgador convencido de que aqueles indícios, apesar de não se saber se existiram ou não, são suficientes para ele condenar, pouco importando se é frágil e precipitado para esse fim.

A aceitação desse fenômeno, representado por um “tudo indica que aconteceu”, transforma o processo judicial brasileiro em um processo de “achismo” perigoso, podendo no final do processo levar alguém para uma condenação baseada somente em indícios sem qualquer confirmação concreta, tornando palavras e indícios frágeis em fatos incontroversos e inquestionáveis para a condenação de uma pessoa.

Você, leitor deste artigo, aceitaria que apenas a palavra de alguém ou um indício qualquer servisse como base para condená-lo? Você aceitaria assumir a responsabilidade de provar que não fez o que lhe imputam, já que quem o acusa não apresenta prova?

Parece que essas não são questões difíceis de se responder. Como alguém já disse, ninguém é injusto consigo mesmo. As dificuldades apresentadas nessa discussão da busca da verdade através de provas concretas, o processo judicial brasileiro oferece importantes garantias fundamentais a todos os cidadãos, como a ampla defesa e o contraditório. E é através dessas garantias que se oferece a esperança real de justiça nos inúmeros conflitos levados aos tribunais e que tanto têm convulsionado os destinos de nosso país.

Não se pode abrir mão dessas garantias — um processo justo — para aceitar que qualquer pessoa seja condenada. Aceitar que essas garantias sejam vilipendiadas porque não gostamos do acusado, além de uma enorme falta de comprometimento com a nossa evolução civilizatória, mostra uma inquestionável falta de isenção.

Portanto, não paira dúvida de que quem acusa tem a obrigação legal e moral de provar, como também todo e qualquer processo judicial deve cumprir as garantias inafastáveis da ampla defesa e do contraditório — de um processo justo —, sob pena de retornarmos à época da justiça feita com as próprias mãos.

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