Ambiente Jurídico

Até quando vamos tolerar incêndios em nossos patrimônios culturais?

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8 de setembro de 2018, 8h00

Spacca
O dia 02 de setembro de 2018 entrou para a história do Brasil como a data de um dos mais tristes episódios de nossos mais de 12 mil anos de existência. A maior parte do acervo abrigado no Museu Histórico de nosso país, situado na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, se perdeu para sempre, sendo consumida pelas chamas de um incêndio cuja causa ainda não se conhece.

Considerada a mais antiga instituição científica e museológica do Brasil, ele foi fundado por Dom João VI, com a denominação de Museu Real, em 06 de junho de 1818. Durante mais de dois séculos foi tido como um dos maiores e mais importantes museus de história natural e antropologia do Continente Americano. Seu acervo compreendia mais de vinte milhões de itens em áreas como meteorística, mineralogia, petrologia, paleontologia, antropologia biológica, arqueologia e etnologia, provenientes de várias partes do país e do mundo.

Na área da arqueologia, por exemplo, o acervo compreendia mais de cem mil objetos, reunindo peças de diversas civilizações que habitaram as Américas, a Europa e a África, sendo subdivido em quatro coleções principais: arqueologia egípcia, arqueologia mediterrânea, arqueologia pré-colombiana e arqueologia brasileira.

O acervo de arqueologia nacional representava todo o Brasil pré-cabralino e abrangia alguns dos mais valiosos registros materiais produzidos durante aquele período. Um dos grandes destaques era o crânio de Luzia – considerado o fóssil humano mais antigo das Américas (com cerca de 12 mil anos) – descoberto na década de 1970, na Gruta da Lapa Vermelha, em Pedro Leopoldo – MG, pelos arqueólogos Anette Emperaire e André Prous, sendo posteriormente pesquisado e batizado pelo antropólogo Walter Neves, que abriu novas perspectivas sobre a possível origem dos primeiros povos das Américas.

Não bastasse, o museu estava instalado no Palácio de São Cristóvão, que serviu de residência à família real portuguesa de 1808 a 1821, abrigou a família imperial brasileira de 1822 a 1889 e sediou a primeira Assembleia Constituinte Republicana de 1889 a 1891, antes de ser destinado ao uso do museu, em 1892. O edifício, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 1938[1], foi extremamente danificado pelo incêndio, que gerou rachaduras, desabamento de sua cobertura, além da queda de pavimentos internos.

Enfim, as perdas decorrentes do gravíssimo desastre são de proporções imensuráveis e a maior parte dos danos causados tem natureza irreversível, considerando a irrepetibilidade ínsita aos bens culturais.

É preciso refletir que esse não foi e (infelizmente) não será o último incêndio a atingir museus e prédios históricos no país. O Hotel Pilão, na Praça Tiradentes, em Ouro Preto (2003); o Museu de História Natural da PUC, em Belo Horizonte (2013) e o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo (2015), são apenas alguns dos muitos casos de perda do patrimônio cultural brasileiro em razão de incêndios nos últimos tempos.

É fato consabido pela ciência e até mesmo pelo senso comum que a tipologia construtiva da maior parte dos antigos edifícios históricos brasileiros, com utilização de materiais com alta carga de inflamabilidade (paredes de pau-a-pique, assoalhos e estruturas de madeira, forros de esteira etc.) e a natureza combustível de muitos dos bens passíveis de musealização, como documentos antigos, artefatos de madeira, tecido e outros materiais orgânicos, aumentam significativamente o risco de início de focos de fogo que, se não forem debelados a tempo e modo próprios, se transformam em incêndios de consequências imprevisíveis.

Logo, se é fato previsível a ocorrência de incêndios em bens culturais, o Direito do Patrimônio Cultural deve atuar prioritoriamente de forma preventiva em tal cenário, interrompendo ou evitando o surgimento de situações configuradoras de riscos ou ameaças em detrimento de tal bem jurídico. Trata-se da aplicação do princípio da prevenção, que é basilar em sede de tutela do patrimônio cultural brasileiro e, inclusive, tem assento constitucional, pois nossa Carta Magna prevê no artigo 216, § 4º. que meras ameaças aos bens culturais devem ser punidas nos termos da lei.

Ante tal panorama, uma pergunta deve ser feita: temos, em nossa legislação vigente, previsões normativas que exigem o cumprimento de obrigações relacionadas à prevenção de desastres em bens integrantes do nosso patrimônio cultural ?

A resposta é positiva. Somos de convicção que o Brasil tem um arcabouço normativo capaz de proteger de forma eficaz e plena a integridade de nossos bens culturais, sendo despiciendas propostas mirabolantes e oportunistas no sentido de que nosso sistema jurídico é falho e tudo precisa ser resolvido por meio de novas leis.

O problema em nosso país não reside na falta de normatização. Somos prolíferos em leis. O que nos falta é a sua aplicação e cumprimento.

Já é tempo de deixarmos de cultuar o law-on-the-books, (o Direito legislado), e nos preocuparmos com o law-in-practice (o Direito aplicado), sobretudo por meio da utilização técnica de implementação legal (enforcement) de normas reguladoras de condutas (regulation), visando assegurar o respeito, obediência e cumprimento legal (compliance), contribuindo para que a ordem jurídica vigente transite do paradigma da normatividade formal para o da normatividade efetiva[2].

Com efeito, há mais de oito décadas o DL 25/37 (Lei do Tombamento) já estabelece que todos os bens culturais tombados ficam sob a especial vigilância órgão tombador[3], vigilância essa que deve ser efetiva, permanente e voltada para todos os aspectos relacionados à conservação do bem protegido. Ou seja, o órgão responsável pelo tombamento passa a compartilhar da obrigação de prevenir a ocorrência de danos à coisa tombada, inclusive, e sobretudo, em relação a riscos relacionados a incêndios.

Já a Lei 10.257/2003 (Estatuto da Cidade), norma de ordem pública que vincula todos os entes federativos, estabelece como diretrizes da política urbana a ordenação do uso do solo de forma a evitar o risco de desastres, buscando a proteção, preservação e recuperação do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (artigo 2º, VI, h e XII).

Temos ainda a Lei Federal 12.608/2012 que estabelece em seu artigo 2º que é dever da União, dos estados e dos municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre. E positivando o princípio da prevenção, aduz em seu parágrafo 2º que “a incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco”.

Não bastasse, a recente Lei 13.245/2017 (conhecida como Lei da Boate Kiss) estabelece diretrizes gerais sobre medidas de prevenção e combate a incêndio e a desastres em estabelecimentos, edificações e áreas de reunião de público, prevendo que cabe ao Corpo de Bombeiros Militar planejar, analisar, avaliar, vistoriar, aprovar e fiscalizar as medidas de prevenção e combate a incêndio e a desastres em estabelecimentos, edificações e áreas de reunião de público, sem prejuízo das prerrogativas municipais no controle das edificações e do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano e das atribuições dos profissionais responsáveis pelos respectivos projetos. A lei prevê nas atividades de fiscalização a aplicação de medias administrativas de advertência, multa, interdição e embargo, além de tipificar condutas como crime e atos de improbidade administrativa.

Logo, não é por falta de leis que os incêndios consomem nossos bens culturais ao longo dos anos.

Temos instrumentos processuais e extraprocessuais adequados para tratar do assunto[4] e o Poder Judiciário tem respondido com bastante firmeza quando instado a se manifestar sobre casos tais, a exemplo do que se extrai das seguintes ementas de acórdãos do TJMG:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MUNICÍPIO DE CONSELHEIRO LAFAIETE. MUSEU ANTÔNIO PERDIGÃO. CONDIÇÕES DE PRESERVAÇÃO E SEGURANÇA CONTRA INCÊNDIO DE PATRIMÔNIO PÚBLICO. PROCESSO DE SEGURANÇA CONTRA INCÊNDIO E PÂNICO (PSCIP). INEXISTÊNCIA. RISCO À SEGURANÇA DA POPULAÇÃO LOCAL. VERIFICADA. RECURSO DESPROVIDO. A prevenção e o combate a incêndio e pânico em edificação ou espaço destinado a uso coletivo devem ser feitos nos moldes da Lei Estadual nº 14.130/2001.. Reconhecidas a irregularidade do Museu Antônio Perdigão. Imóvel público municipal. por não possuir Processo de Segurança Contra Incêndio e Pânico (PSCIP), bem como a morosidade do Município de Conselheiro Lafaiete em tomar as providências que lhe são devidas, fica o Ente Municipal compelido à sua adequação. (TJMG; AI 1.0183.15.008268-7/001; Rel. Des. Alice Birchal; Julg. 25/04/2017; DJEMG 05/05/2017).

Em regra, é defeso ao Poder Judiciário adentrar no mérito dos atos administrativos de efetivação de políticas públicas, cabendo-lhe unicamente examiná-los sob o aspecto de legalidade e moralidade. Tal entendimento tem como fundamento básico o princípio da separação dos Poderes. Todavia, não constitui ingerência indevida a atuação do Judiciário quando impõe ao Executivo o cumprimento de obrigação constitucional e legal, relativamente à qual se posta manifestamente omisso o administrador. A elaboração de projeto de prevenção de incêndios e pânico em espaços públicos, bem como sua implantação, constitui imposição legal, prevista na Lei Estadual 14.130/01, da qual não pode o ente público se furtar ao argumento de que estava em período de transição da gestão. (TJMG; AC-RN 1.0521.16.012927-1/001; Relª Desª Áurea Brasil; Julg. 28/06/2018; DJEMG 04/07/2018)

Mas há necessidade, para a preservação do nosso patrimônio cultural, de mudarmos a nossa própria cultura, que é, infelizmente, de leniência em relação a medidas de prevenção de danos e de deliberada assunção de riscos em detrimento de um bem cuja titularidade não nos pertence, posto que o direito à sua fruição é voltado, sobretudo, às gerações que ainda estão por chegar.

As medidas para a mudança de paradigma não devem ficar a cargo somente das autoridades públicas, que são, é verdade, responsáveis por grande parcela da responsabilidade por tal estado de coisas.

Pensamos que há necessidade de uma atuação mais ativa, com cobrança diuturna por parte dos cidadãos, academia e parcelas organizadas da sociedade civil a respeito da adoção de medidas concretas, tais como a fiscalização permanente de bens culturais por parte do Corpo de Bombeiros, elaboração e implantação de projetos de prevenção e combate a incêndio, implantação e manutenção de redes de hidrantes em áreas de ocorrência de bens culturais, criação de brigadas voluntárias de combate a incêndio, entre outras.

Enfim, é preciso dizer um basta. Bens culturais destruídos não renascem das cinzas.

O Direito do Patrimônio Cultural pode ser um grande aliado na tarefa em busca da implementação das obrigações legais e de prevenção da ocorrência de novos casos de destruição do patrimônio cultural pelo fogo, como ocorrido com o Museu Nacional. Mas é preciso que cada cidadão se sinta corresponsável pelo alcance dessa meta e trabalhe para alcançá-la.

[1] O tombamento da Quinta da Boa Vista se deu em 30 de junho de 1938, no procedimento 099-T-38, e está registrado no Livro Tombo de Belas Artes sob o nº 154 e no Livro Tombo Histórico sob o nº 68. No interior da Quinta da Boa Vista está localizado o Museu Nacional, em cujo interior se encontrava a coleção arqueológica Balbino de Freitas, tombada por meio dos processos 0101-T-38 e 0154-T-38, segundo registros no Livro de Belas Artes nº 51 e no Livro Histórico nº 23, de 11 de maio de 1938.

[2] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcellos e. O Estado teatral e a implementação do direito ambiental. p. 20

[3] Artigo 20. As coisas tombadas ficam sujeitas à vigilância permanente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que poderá inspecioná-los sempre que fôr julgado conveniente, não podendo os respectivos proprietários ou responsáveis criar obstáculos à inspeção, sob pena de multa de cem mil réis, elevada ao dôbro em caso de reincidência.

[4] Já tivemos a oportunidade de escrever que, nas ações versando sobre o patrimônio cultural, o exame das liminares, considerando que o dano é muitas vezes irreversível, deve ser orientado pelo brocardo in dubio pro cultura, prevalecendo tal preocupação em detrimento dos interesses econômicos ou particulares. MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do Tombamento Comentada. Belo Horizonte: Del Rey. 2014. p. 95. Precedente nesse sentido: Pelo Princípio da Prevenção, todas as medidas protetivas ao bem cultural devem ser tomadas, posto que, por tratar-se de bem não renovável por assim dizer, uma vez configurado o dano, muitas vezes impossível será sua reparação material. (TJMG; AGIN 0551252-71.2009.8.13.0344; Iturama; Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Vieira de Brito; Julg. 12/08/2010; DJEMG 18/11/2010).

 

 

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  • Brave

    é promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural da Rede Latino-Americana do Ministério Público e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-Brasil).

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