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Opinião: O uso do QR Code em petições judiciais

7 de setembro de 2018, 6h38

Por Marcelo Mazzola, Vitor Galvêas

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A internet[1] contribuiu decisivamente para o desenvolvimento de novas ferramentas e tecnologias[2], permitindo uma maior integração entre as necessidades e as exigências da atualidade[3].

No plano jurídico, a inteligência artificial vem revolucionando o processo. Muitos robôs (como Victor, no Supremo Tribunal Federal, Dra. Luzia, na Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Alice, Sofia e Monica, no TCU, entre outros)[4] já executam tarefas antes inimagináveis (estruturação de dados, disponibilização de informações, seleção de matérias, conferências de dados etc.). Também já se debate acerca das decisões por algoritmos e a preocupação com a figura do “computador-juiz”[5].

Em razão das limitações editorais, faremos um recorte no tema para tratar especificamente do uso de QR Code em petições judiciais.

QR Code é a abreviação de quick response code (código de resposta rápida). Trata-se de um código de barras bidimensional[6] que pode ser escaneado por alguns aparelhos celulares equipados com câmera[7], com capacidade de codificar atalhos para endereços eletrônicos (URL e e-mails, textos, PDF, arquivos de imagens e vídeos em geral etc.).

Como explicam Antônio Carvalho Filho, Luciana Benassi Gomes Carvalho e Ana Beatriz Ferreira Rebello Pesgrave, “o QR code não é a tecnologia de inovação em si, mas apenas o caminho, o atalho, para acesso a determinadas informações paratextuais em ambiente extra-autos”[8].

A rigor, não vislumbramos vedação para sua utilização na esfera processual. Vale lembrar que o artigo 188 do CPC estabelece que “os atos e os termos processuais independem de forma determinada, salvo quando a lei expressamente a exigir, considerando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial”[9]. Por sua vez, o artigo 369 do diploma processual prevê que “as partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz”.

Nesse particular, muitos advogados vêm utilizando a ferramenta[10] e alguns juízes já proferiram decisões prestigiando o QR Code:

“Colacionou, ainda, interessante ferramenta para demonstrar sua alegação, consistente em um vídeo que pode ser acessado pelo link https://goo.gl/9iGZoT ou com QR Code, no qual tenta fazer ligação para o número (84 XXXXX 4170) e se ouve a gravação com a informação de que ‘este número que você ligou não recebe chamada ou não existe’”[11].

É inegável a utilidade e a potencialidade da ferramenta[12], mas a novidade disruptiva também traz a reboque muitas preocupações. O tema ainda não foi regulamentado pelos tribunais ou pelo Conselho Nacional de Justiça.

Em relação às vantagens, são muitas, valendo citar apenas algumas:

  • QR Code como elemento de persuasão. Basta pensar, por exemplo, na possibilidade de o juiz, no momento de apreciação de uma tutela provisória, examinar um vídeo ilustrativo ou slides — diretamente no celular — com explicações técnicas sobre o bem em discussão, inclusive em realidade aumentada (isso é muito interessante em ações envolvendo direitos de propriedade industrial, cujos temas são complexos. Muitas vezes a mera inserção de hiperlinks não assegura o mesmo resultado);
  • desnecessidade de acautelamento de mídias em cartório. Como o sistema do processo eletrônico não permite o upload de arquivos com material audiovisual, as partes, na prática, são obrigadas a acautelar o material em cartório. E isso quase sempre dificulta ou burocratiza a análise da prova pelo juiz;
  • possibilidade de despachos virtuais. O advogado pode, por exemplo, inserir um QR Code nos memoriais distribuídos em segundo grau, permitindo que o relator ou os vogais, diante da indisponibilidade ou ausência ocasional, possam “escutar”, ainda que virtualmente, as ponderações do causídico. Uma espécie de “sustentação virtual”. A mesma sistemática vale para audiências pessoais em primeiro grau (artigo 7º, VIII, da Lei 8.906/94), sobretudo quando se postula tutela provisória na petição inicial. Neste último caso, há até um reforço do contraditório, pois a parte contrária terá, na prática, acesso ao “conteúdo destacado no áudio/vídeo”, o que não é possível nos atendimentos individuais em gabinete;
  • otimização do tempo do juiz. Em vez de realizar uma inspeção pessoal, comparecendo ao local (artigo 381 do CPC), o magistrado pode eventualmente designar um oficial de Justiça para registrar determinada situação. Com a inserção do material objeto da inspeção em um QR Code, poder-se-ia atingir a “finalidade essencial” do ato (artigo 188 do CPC), evitando o deslocamento do juiz; e
  • praticidade e redução de custos. Com o QR Code, é possível, por exemplo, que uma pessoa grave o próprio depoimento, sem a necessidade de redigir um documento ou se dirigir a algum cartório local para fazer eventual declaração.

Poderíamos pensar em muitos outros exemplos. Mas também é preciso refletir sobre os riscos da tecnologia. De plano, podemos listar três:

  • preocupação com a autenticidade, integridade e temporalidade[13], já que, tecnicamente, o conteúdo acessado não está armazenado nos autos do processo (nem fisicamente nem em mídia digital), tratando-se, na verdade, de elemento “externo”;
  • ausência de controle efetivo sobre o conteúdo objeto do QR Code. Ainda que existam mecanismos para checar eventual adulteração (como, por exemplo, controle de data e horário da criação), isso pode gerar insegurança jurídica. Enquanto os códigos estáticos são mais difíceis de serem manipulados, os códigos dinâmicos permitem a alteração do conteúdo a qualquer tempo. Ou seja, existe, ao menos em tese, o risco de as partes e o juiz verem coisas totalmente diferentes em momentos distintos. Pode ocorrer, ainda, de o conteúdo ser suprimido do local em que estava hospedado (por exemplo, um vídeo que estava no YouTube ser deletado); e
  • falta ou déficit de isonomia entre os litigantes. Não se pode obrigar os advogados e as partes a adquirirem celulares modernos capazes de fazer a leitura do QR Code. Ainda que boa parte da população disponha de celulares, nem sempre os aparelhos possuem a tecnologia e as ferramentas necessárias. A questão se agrava quando o QR Code envolve uma prova[14] e não há como assegurar que ambas as partes terão acesso a ela, o que fere o contraditório e a paridade de armas (artigo 7º do CPC). Nesse compasso, é importante que a OAB acompanhe a evolução do assunto, fornecendo aos advogados toda a estrutura necessária para a fruição da tecnologia (assim como aconteceu quando da implantação do processo eletrônico, em que o órgão disponibilizou salas e instrutores para atender os causídicos).

Entre vantagens e desvantagens, questiona-se: estão os juízes obrigados a visualizar o conteúdo do QR Code?

Pela sistemática atual e diante da ausência de regulação, a resposta parece ser negativa. Os magistrados podem e devem prestigiar a tecnologia, mas não estão obrigados.

Primeiro, porque as partes, a rigor, não podem transferir externalidades para o Judiciário (custos com a aquisição de aparelhos modernos, onerando-se o aparato judicial). Segundo, porque, especialmente em matéria probatória, ainda há grande insegurança quanto à integridade e autenticidade do conteúdo, o que pode gerar nulidades no futuro. Talvez uma medida a se pensar seria a assinatura de protocolos institucionais entre OAB, Defensoria Pública, Ministério Público e o próprio Judiciário, com a previsão de se registrar em blockchain os conteúdos vinculados ao QR Code no momento de sua apresentação aos autos. E terceiro, porque cabe ao juiz garantir a isonomia e a paridade de armas (artigo 139, I, do CPC), o que, sem uma regulação específica e a cooperação dos operadores do Direito, ainda não é possível assegurar.

Nesse cenário ainda movediço, uma regulação seria muito bem-vinda para sistematizar o uso da tecnologia, indicando, por exemplo, a) se a parte deve indicar minimamente o conteúdo do QR Code na petição; b) se o juiz deve sempre intimar a parte contrária para se manifestar sobre o QR Code ou apenas em algumas situações específicas; c) se o Judiciário também pode usar a ferramenta, como, por exemplo, em mandados de citação/intimação; d) se o juiz pode utilizar seu aparelho pessoal ou somente o celular vinculado ao cartório; e) se o advogado pode ser punido pelo uso desvirtuado da tecnologia, entre outros.

Em suma, neste clima tecnológico, ousamos concluir o artigo em forma de QR Code (façam o teste, aproximando a câmera do celular e autorizando a abertura do arquivo).


[1] Agradecemos aos amigos Erik Navarro e Humberto Dalla pela leitura do artigo e pelas sugestões, muitas das quais acolhidas neste trabalho.
[2] No STJ, por exemplo, a ministra Nancy Andrighi atende os advogados através do aplicativo Skype. Além dos avanços trazidos pela Lei 11.419/06 (lei do processo eletrônico), o CPC/2015 positivou uma série de atos processuais eletrônicos (artigos 193 a 199), inclusive por meio de videoconferência (artigo 236, parágrafo 3º), como, por exemplo, sustentações orais (artigo 937, parágrafo 4º), depoimentos (artigo 385, parágrafo 3º) etc.
[3] Afirma-se que “entre os diversos impactos sofridos pelas relações sociais derivadas de tal revolução tecnológica estão, principalmente, o fluxo de informações disponíveis e acessíveis por meio de interconexões pelos computadores, bem como a necessidade de velocidade característica do cotidiano moderno”. SALDANHA, Alexandre Henrique Tavares; MEDEIROS, Pablo Diego Veras. Processo judicial eletrônico e inclusão digital para acesso à justiça na sociedade de informação. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 277, mar./2018, p. 542.
[4] Para uma análise mais detalhada, ver FERRARI, Isabela; BECKER, Daniel; WOLKART, Erik Navarro. Arbitrium ex machina: panorama, riscos e a necessidade de regulação das decisões informadas por algoritmos. Revista dos Tribunais online, vol. 995, set./2018.
[5] NUNES, Dierle; VIANA, Aurélio. Deslocar função estritamente decisória para máquinas é muito perigoso. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-jan-22/opiniao-deslocar-funcao-decisoria-maquinas-perigoso. Acesso em 25/8/2018.
[6] Código QR. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B3digo_QR. Acesso em 25/8/2018.
[7] Alguns modelos de telefone podem exigir o download de aplicativos para fazer a leitura.
[8] CARVALHO FILHO, Antônio; CARVALHO, Luciana Benassi Gomes; PESGRAVE, Ana Beatriz Ferreira Rebello. O uso do QR code nos processos judiciais. Por que não? Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, nº 102, abr./jun./2019, p. 106.
[9] Assim, não é possível, por exemplo, apresentar uma petição inicial, uma apelação ou um agravo em formato de QR Code, diante da exigência do texto legal de haver uma “petição”, inclusive para que a pretensão esteja bem delimitada.
[10] ROVER, Tadeu. Advogado usa QR Code em petição para facilitar comunicação com juiz. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-set-25/advogado-usa-qr-code-peticao-facilitar-comunicacao-juiz. A Defensoria Pública também já utiliza a ferramenta. Informação disponível em https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=35752. Acesso em 24/8/2018.
[11] Processo 0818389-98.2017.8.20.5004, 13º Juizado Especial Cível da Comarca de Natal (RN), decisão proferida em 2/10/2017.
[12] Já é possível gerar, de forma gratuita, um QR Code para petições. Vide, por exemplo, o site http://www.juscode.com.br/. Também existem geradores genéricos de QR Code (https://br.qr-code-generator.com/a1/?PID=1146&kw=qr%20code&gclid=CjwKCAjw5ZPcBRBkEiwA-avvk7Q-k4T2f_KtJUzXeZRLxP6uNxVq9HRurixLOZBwAk9iPNKz22JRfBoCdzIQAvD_BwE).
[13] Atributos que estão intimamente ligados ao processo eletrônico (artigos 2º, parágrafos 2º e 12, parágrafos 1º e 3º, da Lei 11.419/06). Sobre o tema, vale conferir CARVALHO FILHO, Antônio; CARVALHO, Luciana Benassi Gomes; PESGRAVE, Ana Beatriz Ferreira Rebello. O uso do QR code nos processos judiciais. Por que não? Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, nº 102, abr./jun./2019, p. 109.
[14] Como se sabe, a prova não é para o juiz, mas, sim, para o processo e sobre ela os sujeitos processuais devem ter ampla possibilidade de se manifestarem e influírem eficazmente na convicção do julgador (artigo 369 do CPC).