Opinião

O preocupante papel assumido pela intervenção penal no âmbito tributário

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6 de setembro de 2018, 6h13

Imagine a seguinte hipótese: embora tenha registrado tudo regularmente nos livros fiscais, o administrador de uma empresa deixa de recolher o ICMS das operações próprias realizada por falta de caixa — as vendas no período foram baixas e tinha que pagar a folha de salários. Tal situação, relativamente frequente em períodos de crise econômica como a atual no Brasil, constitui inadimplemento de obrigação tributária passível de execução fiscal.

Nos últimos dias, porém, chamou especial atenção o posicionamento firmado pela maioria da 3ª Seção do STJ, que, no Habeas Corpus 399.109, julgou o não recolhimento de ICMS em operações próprias devidamente declaradas ao Fisco como crime previsto no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90. Conforme o tipo penal, denominado pela doutrina de “apropriação indébita tributária”, constitui crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

O voto do ministro relator fundou-se na importância do bem jurídico protegido pela norma penal — a ordem tributária —, bem como nas consequências econômico-sociais especialmente negativas de sua ofensa para interpretar o alcance de sentido dos verbos “descontar” e “cobrar” de forma ampla, apta a alcançar casos diversos dos de substituição tributária. Assim, sob o argumento de que o termo “cobrado” não encontraria identidade com o técnico-tributário e tampouco seria equivalente ao conteúdo estrito da rubrica “apropriação indébita”, poderia ser associado às relações tributárias havidas com tributos indiretos, “mesmo aqueles realizados em operações próprias, visto que o contribuinte de direito, ao reter o valor do imposto ou contribuição devidos, repassa o encargo para o adquirente do produto”[1]. E se o autor do fato agiu ou não com a intenção de ofender o bem jurídico protegido, conforme se decidiu, seria questão estranha ao julgamento do HC, a ser identificada durante a instrução processual.

Não se pretende questionar a importância do bem jurídico tutelado pela Lei 8.137/90 para a consecução de políticas estatais voltadas à materialização de direitos fundamentais e ao desenvolvimento econômico e social. De outro lado, não se trata de discutir se houve ou não dolo na conduta praticada pelo agente. Na verdade, a discussão do caso há de centrar-se na verificação da tipicidade objetiva, estando vinculada ao complexo tema dos limites da leitura hermenêutica dos tipos penais em correlação com os tipos tributários. Em palavras mais simples, a questão central reside em estabelecer quais sejam as fronteiras de interpretação dos elementos normativos típicos “tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação", contidos no artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, no contexto de um Estado Democrático de Direito.

Ao proibir e punir determinados comportamentos, o Direito Penal expressa-se por meio de normas, correspondendo à lei sua fonte imediata de produção, em obediência ao princípio da legalidade. A fundamentação normativa do sistema jurídico leva, então, à necessidade de análise dos critérios determinantes para a desvaloração dos comportamentos incriminados e, portanto, da racionalidade valorativa dos enunciados jurídico-penais concretos, sob pena de se converter o Direito Penal em puro fenômeno de poder.

Afastando-se, porém, do romantismo iluminista, em que se acreditava, a partir de um positivismo legalista, ser possível definir toda a realidade por meio da narrativa clara de uma conduta, foi-se gradualmente tomando consciência de que a busca de uma descrição absoluta e inequívoca é insensata, porque impossível. Justifica-se, então, a presença dos denominados elementos normativos do tipo, tais como “tributo descontado” ou “tributo cobrado”, demandando especial valoração pelo intérprete.

Diante da denominada acessoriedade administrativa a caracterizar de forma crescente o Direito Penal, é bem verdade que ocorre uma especial “pulverização da lei”, que resta menos taxativa e mais dependente de complementação por outras normas. Nesse contexto, os juízes passam a desempenhar um papel central na própria definição do conteúdo dos tipos penais, projetando sua atuação em um espaço cada vez maior de discricionariedade, o que leva à erupção de uma dimensão judicial do Direito Penal e, assim, ao questionamento sobre a própria divisão de poderes no âmbito do Estado[2].

A substituição de um Direito legal por um Direito judicial revela-se bastante perigosa, na medida em que, por meio de uma atividade interpretativa excessivamente ampla e fundada em critérios pragmáticos e/ou subjetivos, podem ser inseridas na zona de proibição normativa hipóteses concretas que não correspondem ao seu enunciado original, sob a justificativa de uma intervenção penal pretensamente mais eficaz.

Retomando o caso em análise, há de se questionar como é possível transformar-se, por meio de interpretação, a inadimplência de operação tributária sob o regime de apuração normal do ICMS em um crime. Seguramente a decisão judicial fundou-se em uma interpretação econômica, que é insuficiente para a identificação do tipo penal. Poder-se-ia até discutir sua adequação tributária, embora com poucos adeptos; porém é inegável a inadequação interpretativa penal na presente hipótese.

A solução objetiva da questão está condicionada ao exame de critérios de deontologia hermenêutica, voltados a orientar e limitar a discricionariedade judicial[3].

Um primeiro critério fundamental de limitação à interpretação dos elementos normativos do tipo reside no próprio princípio da legalidade. De fato, no âmbito penal, a gravidade das sanções exige que os textos legais estabeleçam de forma precisa e clara os limites de liberdade de atuação dos indivíduos, sendo os limites da estrutura linguística do tipo penal insuperáveis e prevalentes sobre a ideia de flexibilidade das normas em relação aos fins sociais[4]. E os sentidos literais possíveis da norma penal são limitados não só por meio da linguagem, como também por seu conteúdo técnico-jurídico penal ou extrapenal.

Assim, em observância ao princípio da legalidade, a interpretação de elementos normativos do tipo penal não deve ir além do âmbito de referência jurídico a que aqueles remetem, o que, aliás, caso fosse permitido, constituiria uma sobreposição indevida da intervenção penal sobre outros mecanismos de controle social. Portanto, a vinculação do intérprete penal ao sentido jurídico original do elemento deve ser respeitada, não sendo possível que, na aplicação da norma penal, o julgador adote conceitos mais amplos do que aqueles reconhecidos pelo próprio campo jurídico extrapenal a que o tipo se refere.

Retomando o exame da decisão, no contexto de nítida acessoriedade administrativa a caracterizar a Lei 8.137/90, a interpretação dos elementos normativos dos respectivos tipos penais deverá logicamente ser buscada no âmbito do Direito Tributário. Assim, o tipo penal do artigo 2º, inciso II, do mencionado diploma legal não pode ser lido sem o necessário conhecimento da matéria tributária. Em primeiro lugar, verifica-se in casu que não há apropriação indébita, semelhante ao que ocorre nas operações envolvendo contribuições previdenciárias. E nada é descontado do contribuinte de fato, embora haja o fenômeno da repercussão econômica dos tributos indiretos, o que é outra prosa. Quanto à expressão cobrado, também deve-se ter muita cautela, em face da efetiva conta corrente mensal que se identifica no ICMS, pois tais registro podem estar a débito no final de um mês, porém, no outro, estar a crédito, sendo que nada deve ser pago nesta hipótese. Logo, a sistemática do ICMS é avessa ao tipo penal pretendido e utilizado pelo STJ no caso em apreço.

O segundo critério de deontologia hermenêutica inescapável é a orientação conforme à Constituição, que traz importantes valorações conforme o pressuposto político-social democrático. Na hipótese aqui examinada, impossível deixar de observar a vedação constitucional da prisão por dívida (CF, artigo 5º, LXVII) como critério fundamental de orientação da interpretação da norma penal. Nesse sentido, aliás, ao se posicionar recentemente sobre a constitucionalidade das normas incriminadoras contidas na Lei 8.137/90, o Supremo Tribunal Federal concluiu acertadamente que as condutas tipificadas naquele diploma não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas, sim, aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis[5].

Não é legítimo, portanto, punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco, como pretende o STJ, que simplesmente transforma uma inadimplência não ocultada em um crime, o que é um sentido não encontrado na lei, conforme acima exposto.

Finamente, deve se acrescentar um filtro teleológico específico de limitação da interpretação dos elementos normativos do tipo a partir dos princípios fundamentais que regem o Direito Penal, de forma a evitar que a interpretação constitucional leve a uma expansão punitiva, sob o argumento da pretensa defesa de interesses sociais ou do “bem comum”.

Em razão do enorme custo à liberdade que representa, a intervenção penal deve, em um Estado Democrático de Direito, limitar-se ao seu papel subsidiário, evitando a pretensão de assumir uma função promocional de desenvolvimento social que não lhe compete nem mesmo lhe seria possível concretamente desempenhar. A arrecadação tributária, como mecanismo fundamental de garantia dos cidadãos nas mais diversas esferas sociais, há de ser regulada pela lei, e atualmente há instrumentos de controle formal suficientes para tal fim.

Não é função do Direito Penal garantir o adimplemento de dívidas de qualquer natureza, muito menos de incentivar os indivíduos a serem bons pagadores. Sua missão está em evitar, sob ameaça de pena, a prática de condutas especialmente desvaloradas, porque voltadas a burlar a ordem tributária, o que não é o caso de meras dívidas com o Fisco. Esse é o único sentido possível de interpretação dos termos “tributo cobrado” e “tributo descontado”. Esse é o limite insuperável da política criminal, que não pode dr converter em mera política arrecadatória no âmbito tributário, mesmo sob a pretensa justificativa de busca de atenuação dos problemas econômicos do Estado.

Na verdade, o movimento político-criminal arrecadatório não é novo e está sempre a tentar se estabelecer em épocas de crise econômica. Ocorre que, para além de sua ilegitimidade, a criminalização da mera inadimplência tributária potencializa o problema, aumentando a crise; afinal, não se deixa de pagar tributos porque se quer, mas porque não se consegue fazê-lo, mesmo sob o risco das pesadas sanções monetárias estabelecidas, algumas das quais bastante superiores a 200% do valor do tributo devido. É de todos sabido que existe uma espécie de gradação empresarial no pagamento de suas dívidas, ficando sempre em primeiro lugar o capital humano, que deve ser valorizado e pago pontualmente. A criminalização da inadimplência tributária apenas aumentará a crise do desemprego, aumentando os 13 milhões de pessoas que já se encontram nessa situação. Coloque-se no lugar do empresário; com a criminalização da inadimplência tributária, qual pagamento será privilegiado? O do Fisco ou o dos trabalhadores? Se você quiser ver a cana bater na sua porta, permaneça pagando os trabalhadores.

Há mais de um século, já afirmava Franz von Liszt que o Direito Penal, entendido como Direito positivado, constitui a “barreira insuperável da política criminal”[6], deixando claro que a primeira tarefa da política criminal é configurar um Direito Penal altamente formalizado, de modo a impedir qualquer reação visceral ou conjuntural de caráter penal, que não seja a prevista previamente pelo legislador na lei penal como expressão da vontade geral.

A atribuição de responsabilidade penal ao indivíduo diante da prática de uma conduta delitiva não pode se perfazer a partir da mera decisão argumentativa do julgador, tampouco se funda em conceitos ou deveres jurídicos abstratos. O atraso ou descumprimento da obrigação de recolher tributo próprio que já foi regularmente declarado pelo contribuinte constitui inadimplência fiscal que configura ilícito administrativo passível de sanções pecuniárias e cobrável pelos meios cabíveis. E é só. Considerar de outra maneira, expandindo a intervenção penal, abre portas, de forma preocupante, a uma intervenção penal sem legitimidade material, fundada apenas na ameaça de pena como instrumento político de poder do Estado. E aí a passagem de qualquer um de nós à condição de criminoso é só uma questão de tempo.


[1] Cf. HC 399.109, 3ª Seção STJ, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 22.08.2018. Voto do relator disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa. Acesso em 24/8/2018.
[2] No mesmo sentido,v. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La interpretación de las leyes y la cultura de los juristas. In: MONTEALEGRE LYNETT, Eduardo; CARO JOHN, José Antonio (Ed.). El sistema penal normativista en el mundo contemporáneo. Libro homenaje al profesor Günther Jakobs en su 70 aniversario. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2008. p. 205-206.
[3] Sobre os limites de interpretação dos elementos normativos do tipo, v. BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos normativos do tip objetivo no Direito Penal contemporâneo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.
[4] Cf. VIOLA, Francesco; ZACCARIA, Giuseppe. Derecho y interpretación: elementos de teoría hermenéutica del derecho. Tradução de Ana Cebeira. Madrid: Dykinson, 2007, p. 287-293.
[5] STF, ARE 999425, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 2/3/2017.
[6] LISZT, Franz von. Über den Einfluss der soziologischen und antropologischen Forschungen auf die Grundbegriffe des Strafrechts. In: Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge. Berlin: J. Guttentag, 1905. v. II. p. 80.

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    é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor associado de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e livre-docente em Direito pela mesma instituição.

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    é professora titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

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