Opinião

Crime permanente, um conceito errante à procura de seu significado

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4 de setembro de 2018, 14h29

Nos ordenamentos penal e processual penal brasileiros, há uma conceito desnorteante, na medida em que, de um lado, não apresenta definição legal e, de outro, se caracteriza por ser extremamente gravoso para o acusado.

Trata-se do chamado crime permanente, que, na perspectiva de Eberhard Struensee, “carece de determinação e reconhecimento legal e que tampouco encontrou esclarecimento suficiente nem na jurisprudência, nem nas ciências, sendo empregado em manifestações completamente heterogêneas”[1] e sempre a dano do acusado.

Diante de sua carência conceitual sob o ângulo legal, doutrina e jurisprudência objetivaram, sem sucesso, balizar os contornos do crime permanente, aderindo-o indiferentemente à formulação de tipos penais em abstrato. Assim, existiria crime permanente quanto a tipos penais que comportem a ideia de consumação final protraída no tempo.

Tal posicionamento conduz o juiz/intérprete a situações de difícil solução, correndo-se também o risco de um determinado nível de subjetividade, na medida em que a doutrina ou a jurisprudência aderem, com um certo grau de indiferença, em relação a figuras criminosas que lhes aprouver, o rótulo de crime permanente.

Por outro lado, fica clarificado o imenso gravame que representa para o réu o reconhecimento doutrinário ou jurisprudencial da presença de crime permanente. No inciso III, do artigo 111, do Código Penal, afirma-se que o termo inicial da prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr, no crime permanente, do dia em que cessou a permanência.

Destarte, o prazo prescricional é prorrogado no tempo: não mais é fixado a partir da data do cometimento do delito, mas, sim, do dia em que o estado de permanência se finalizou. Além disso, no campo penal ainda considera-se, de acordo com entendimento sumular, que a lei penal mais grave é aplicável ao crime permanente, se sua vigência é anterior à cessação da permanência.

Do ponto de vista processual, a locução crime permanente é empregada em dois momentos: quando se cuida de competência pelo lugar da infração penal e quando se cogita da prisão em flagrante. Na primeira hipótese, o artigo 71, do Código de Processo Penal, esclarece que, em se tratando de crime permanente, praticado em território de duas ou mais infrações, a competência firmar-se-á pela prevenção. Na segunda hipótese, o artigo 303 do Código de Processo Penal registra que nas infrações permanentes entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.

A carência de uma definição legal e o agravo representado para o acusado, em face do reconhecimento do crime permanente, devem conduzir a um exame mais aprofundado do seu conceito. E, sob esse enfoque, afirma-se, na dogmática penal, que, a respeito do crime permanente, há duas posições doutrinárias: a teoria bifásica e a teoria unitária.

Sem descer a uma avaliação crítica mais demorada de cada uma delas, vale, em síntese, afirmar que, pela primeira teoria, o crime permanente deverá ser decomposto em duas fases distintas, as quais teriam direta e imediata relação com a violação de dois preceitos: a) a primeira fase poderia provocar, de modo indiferente, uma conduta comissiva ou omissiva no que tange à concretização do fato típico; e b) a segunda fase, de obrigatória característica omissiva — e constitutiva da permanência —, resultaria da falta de remoção do estado antijurídico por parte de quem realizou a primeira fase, descumprindo, por isso, a obrigação jurídica de contra-agir a fim de pôr termo à permanência.

Já, pela segunda teoria, a unitária, o crime permanente seria um “conceito de realidade que, por si mesmo, não é objeto de incriminação: tal período, de fato, indica a duração da violação da norma ou somente o caráter eventual do crime e isso porque a figura criminosa descreve apenas o fato típico, dele delineia os elementos constitutivos, mas a duração dele, não é tomada em consideração e tampouco descrita”[2].

Portanto, não há nada que justifique dividir um crime único em dois ou mais delitos. Daí acentuar-se que, “no crime permanente, não há nenhuma nova conduta, nem nenhuma nova manifestação de dolo, nem nenhum novo evento a punir”[3], não sendo seccionável a conduta constitutiva do ilícito.

As consequências concretas da adoção de uma ou de outra dessas teorias são perfeitamente detectáveis. A acolhida da teoria bifásica acarretaria “uma contínua e sucessiva renovação do crime originário em todo espaço temporal de um protraimento de sua consumação. A protração da lesão pressuporia uma nova e indefinida verificação do evento típico causado pela conduta (legalmente) prevista e, portanto, a um novo e completo desenvolvimento do fato típico: numa palavra, a incessante e ulterior repetição do crime”[4].

Já a adoção da teoria unitária implicaria na afirmação de que o “crime permanente é crime único e não uma forma de conexão de crimes. Isso resulta do fato de que os elementos típicos do crime permanente são sempre os do crime único e nunca os da pluralidade de crimes. Os argumentos em contrário provam demais porque induziriam a considerar pluralidade de fatos todas as vezes em que a conduta constitutiva de um crime se prolongue no tempo”[5].

A doutrina e jurisprudência brasileiras, em sua grande maioria, sem uma análise mais prospectiva, manifesta-se pela acolhida da teoria bifásica. Com raras e abalizadas exceções, alguns penalistas, com absoluta razão, rejeitam a teoria bifásica e dão abrigo à teoria unitária.

A legislação, penal e processual penal, brasileira é, no entanto, totalmente silente a respeito, dando oportunidade, assim, à criação de situações injustas e de grande subjetividade.

A impropriedade de deixar para o juiz/intérprete a fixação aleatória do conceito de crime permanente, a partir da respectiva análise do núcleo do tipo, representa, além de invasão do terreno próprio do legislador, um verdadeiro arbítrio.

O raciocínio até aqui desenvolvido pode, em princípio, provocar a ideia de ruptura com a regra interpretativa de que a lei penal, como a de qualquer outro ordenamento jurídico, não contém palavras inúteis ou totalmente vazias de conteúdo.

Urge, portanto, preencher a locução crime permanente com um significado razoável e estrito.

Na falta de definição legal, mostra-se adequado o entendimento de que há plena coerência na doutrina e na jurisprudência sobre alguns tipos penais havidos como permanentes, como nos casos de sequestro, de cárcere privado ou a redução de alguém à condição análoga a de escravo. Nessas hipóteses, torna-se imperioso buscar o bem jurídico que o legislador considerou pertinente tutelar.

Afastar qualquer figura típica do bem jurídico protegido é criar, em verdade, um tipo vagante, pura abstração sem suporte que o vincule à realidade fática: um corpo em busca de sua alma. Se a doutrina e a jurisprudência são unânimes no reconhecimento de ocorrer permanência nos tipos já referidos, não há razão para que o juiz/intérprete, em prejuízo flagrante ao acusado, demarque arbitrariamente as balizas do crime permanente, ampliando-as quando em verdade deveria restringi-las.

É impertinente ao juiz/intérprete, na aferição do verbo contido no núcleo do tipo, etiquetar a seu bel prazer o crime como permanente. Assim, para que não se diga que a expressão crime permanente não tenha conteúdo algum, sendo uma locução inútil, é mister que ela se reduza pura e exclusivamente aos delitos acima apontados, sendo incabível — enquanto não houver definição legal da permanência — alargá-la a outros tipos penais ofensivos a bens jurídicos diversos.

Por todas as razões expendidas, torna-se imperioso que se verifique a nítida separação entre crimes autenticamente de feição permanente e crimes supostamente de índole permanente.

Na primeira classificação, acomodam-se exclusivamente os delitos que a doutrina e a jurisprudência consideram, sem nenhuma divergência, como crimes permanentes. Na segunda categoria, incluem-se os delitos decorrentes do alargamento inadmissível, por falta de definição legal, do conceito de crime permanente, dando ensejo a divergências manifestas na doutrina e na jurisprudência.

Isso evidencia a imperiosa necessidade de reanálise de tipos como os de formação de cartel, de organização e de associações criminosas, de lavagem de dinheiro, de crime ambiental, de crime previdenciário e mesmo de tipos constantes da própria tipologia do Código Penal.


[1] ZIPPER, Patricia S. La questión del concurso entre delitos permanentes e instantâneos. Dogmática Penal entre naturalismo y normativismo. Libro en homenaje a Eberhard Struensee. Buenos Aires: AD-HOC, 2011, p. 761.
[2] BARTOLI, Roberto. Sulla struttura del reato permanente: un contributo crítico. Rivista Italiana de Diritto e Procedura Penale. Milão, v. 44, n.1, jan./mar, 2001, p. 149-150.
[3] VALIENTE, Mario. Il reato permanente: aspetti sostanziali e problemi processual. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milão, ano XLIII, fasc. 1, jan./mar., l999, p. 215.
[4] Idem, ibidem.
[5] PAGLIARO, Antonio. Principi di Diritto Penale. 4.ed., Milão: Giuffrè, 1993, p. 497.

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