Opinião

Mais um passo para o fim da polêmica sobre APPs de restinga

Autores

  • Juliana Flávia Mattei

    é advogada mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul (RS).

  • Édis Milaré

    é advogado professor de Direito Ambiental procurador de Justiça aposentado doutor e mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Foi um dos redatores da Lei da Ação Civil Pública coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

  • Rita Maria Borges Franco

    é vice-presidente da Comissão de Direito Ambiental do Iasp (Instituto de Advogados de São Paulo).

3 de setembro de 2018, 6h48

Transcorridos mais de seis anos desde a entrada em vigor do novo Código Florestal e da sua validação pelo STF, embora a polêmica quanto à caracterização de áreas de preservação permanente (APPs) de restinga permaneça, mais um passo foi dado para a sua solução, ao menos no estado de São Paulo.

Como se sabe, em 5/2/2016 chegou à 1ª Vara Federal de Caraguatatuba, depois de ter a competência deslocada da Justiça estadual de São Paulo, a Ação Civil Pública 0000104-36.2016.4.03.6135, movida pelos Ministérios Públicos Federal e de São Paulo contra a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). Nessa ação, os MPs buscam obrigar a Cetesb a "observar a Resolução 303/2002 do Conama, tendo em vista que continua vigente e aplicável, em todos os seus procedimentos, especialmente o artigo 3º, inciso IX, alínea a". Na ótica dos autores, a Cetesb estaria negando aplicação à mencionada resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), permitindo que sejam realizadas edificações em imóveis localizados em áreas protegidas no litoral paulista (dentro dos 300 metros a partir da preamar).

Aliás, ao analisar o pedido de tutela de urgência formulado naquela ação, a Justiça Federal de Caraguatatuba o deferiu, determinando, assim, que a Cetesb aplicasse a mencionada Resolução Conama 303/2002 em todos os procedimentos de sua alçada, o que significou, na prática, a paralisação da análise (se não o próprio indeferimento) de todos os processos de licenciamento que envolvessem intervenção nas faixas litorâneas de 300 metros, a partir da preamar, em que houvesse vegetação de restinga, independentemente de sua condição ou função.

Essa situação, ao nosso ver inadmissível e de absoluta ausência de segurança jurídica, perdurou até 15 de junho deste ano, quando foi julgada improcedente a citada ação civil pública e, por isso, revogada a tutela que de fato paralisava os processos de licenciamento nas áreas litorâneas de SP. Para o juízo federal de Caraguatatuba, numa análise mais profunda do tema, a resolução editada pelo Conama ainda em 2002 encontra-se, sim, revogada pelo novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), pelo que nem mesmo haveria de estar sendo considerada pelo órgão ambiental. Ademais, a sentença também reconheceu a impossibilidade de que a resolução inovasse no conceito fixado em lei federal (primeiro o Código Florestal de 1965 e depois o de 2012) para caracterização de APP, no caso, de restinga (do que resultariam sua ilegalidade e inconstitucionalidade).

Tal sentença, na mesma linha do que há muito e veementemente temos defendido, dá um novo ânimo para se aguardar o definitivo fim da celeuma.

De fato, a Resolução Conama 303/2002 é ilegal e inconstitucional, porquanto ao regulamentar o antigo artigo 2º, alínea f, da então vigente Lei Federal 4.771/1965, inovou e ampliou o seu conceito. Segundo o artigo da lei, caracterizavam-se como de preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação natural 'nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues". Enquanto isso, a resolução trazia como APP também o espaço situado nas restingas "em faixa mínima de trezentos metros, medidos a partir da linha de preamar máxima” (artigo 3º, inciso IX, alínea a, da resolução). Ou seja, se para a lei a condição para a caracterização de um determinado espaço como APP dependia da verificação da função — de fixação de dunas ou de estabilização de mangues —, para a resolução, além dessa hipótese, o conceito estaria alargado para todo e qualquer espaço dentro dos 300 metros litorâneos com presença de vegetação de restinga, independentemente da função de tal vegetação.

Ora, se a restinga (em seu sentido geomorfológico, de acordo com o texto da Lei Federal 12.651/2012) exerce função de fixação de dunas ou de estabilização de mangues, não há que se falar em APP apenas nos 300 metros a partir da preamar, mas em toda a extensão em que se apresentar. De outro modo, se a lei (e tanto o Código Florestal de 1965 quanto o de 2012 vão nesse sentido) vincula a existência de função de fixação de dunas ou de estabilização de mangues para a caracterização das chamadas APPs de restinga, não será uma resolução (ato normativo hierarquicamente inferior à lei federal) que poderá desvincular esse requisito, ampliando o conceito e, assim, criando novas restrições a direitos.

Além disso, o Conama ao inovar na ordem jurídica, desbordou de sua competência, pois, como órgão regulamentador, à luz da Constituição Federal, não lhe é dado editar normas com força de lei — o que é de incumbência do Poder Legislativo.

Por fim, há de se considerar a própria revogação da resolução em comento. Ocorre que, com a superveniência do novo código, instituído pela Lei Federal 12.651/2012, que regulamentou por completo as hipóteses de área de preservação permanente, houve expressamente a revogação do fundamento de validade da aludida resolução (conforme seu artigo 83) que apoiava o nascimento e a sobrevida do referido ato infralegal. Fato é que perdeu ela toda e qualquer eficácia, não mais subsistindo no ordenamento jurídico.

Não se perca de vista que a discussão sobre esse tema, bem como a pretensão de proibição de ocupação e até mesmo de demolição de edificações já erigidas em supostas APPs nos 300 metros litorâneos, não é objeto apenas da ação civil pública referida ao início, mas também em incontáveis casos em trâmite na Justiça estadual e na Justiça Federal por todo o Brasil, muitos deles por nós diretamente acompanhados.

Bem por isso a celeuma ainda está longe de ser em definitivo superada. Contudo, a muito acertada decisão proferida pelo juízo federal de Caraguatatuba é mais um importante passo para o fim da discussão, na medida em que devolve ao órgão ambiental (Poder Executivo) a competência — que a Constituição Federal lhe confere — para apreciar e decidir sobre o licenciamento ambiental, à luz dos princípios da constitucionalidade e da legalidade, sem paixões que desvirtuam os próprios propósitos dos bens que supostamente se tenta proteger.

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