Opinião

Precisamos repensar os juizados especiais federais na área previdenciária

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3 de setembro de 2018, 13h56

O Juizado Especial Federal (JEF) foi instituído pela Lei 10.259/01. Sucedeu a experiência dos juizados especiais cíveis e criminais instituídos a nível estadual, através da Lei 9.099/95, e teve como objetivo facilitar o acesso à Justiça e o ressarcimento das partes menos favorecidas nas disputas contra a União, autarquias, fundações e empresas públicas federais.

Desde o início de sua aplicação, os juizados especiais federais demonstraram forte vocação para demandas previdenciárias, e isto aconteceu porque havia enorme demanda reprimida nesta área, que na época carecia de um rito processual célere capaz de absorver a realidade de um sistema previdenciário universalizado na contramão de uma autarquia com inúmeras dificuldades em reconhecer os direitos prometidos.

Antes do advento dos JEFs, em sua grande maioria de casos, as ações previdenciárias tramitavam junto às varas estaduais, em face da competência delegada, considerando que não havia sede da Justiça Federal em boa parte dos rincões do país. Além disso, o tramite recursal, desde a época do antigo Tribunal Federal de Recursos, sempre foi muito dificultoso em razão de que pouco se conhecia sobre a matéria, e a autarquia sequer tinha um quadro de procuradores organizados em carreira.

Assim se deu o surgimento dos juizados especiais federais na área previdenciária. Nem mesmo a previsão contida no artigo 3º da Lei 10.259/01, que prevê a competência absoluta do rito sumaríssimo para causas de até 60 salários mínimos — restringindo, portanto, o acesso ao rito comum — mitigou a euforia com relação ao novíssimo procedimento judicial.

O mesmo pode-se afirmar com relação às novas regras que, então, passaram a flexibilizar garantias processuais, tais como aquela que dispensa a fundamentação das sentenças ou a intimação dos laudos periciais. Havia um clima de confiança quanto ao novo modelo de justiça inaugurado com a Lei 10.259/01 e a tão almejada busca da eficácia.

Nesse sentido, a exposição de motivos da Lei 10.259/01 justificava que “A Comissão constituída pelos Senhores Ministros do Superior Tribunal de Justiça pretendeu, com o anteprojeto apresentado, simplificar o exame dos processos de menor expressão econômica "facilitando o acesso à Justiça e o ressarcimento das partes menos favorecidas à Justiça e o ressarcimento das partes menos favorecidas nas disputas contra a União, autarquias, fundações e empresas públicas federais.” Ainda: “Como um dos pontos positivos de mencionada iniciativa, convém destacar que ela poderá ter o condão de facilitar, sobremaneira, a tramitação das causas previdenciárias.”

Ocorre que, no momento atual, em que os JEFs alcançam o marco de quase duas décadas de existência, a realidade retratada do tempo de sua instauração e dos seus primeiros anos de aplicação mudou completamente. Fortes críticas à condução dos processos, aos tramites recursais e a política jurisdicional fomentaram o entendimento acerca da necessidade de revisão da Lei 10.259/01.

Dentre os pontos críticos há uma forte constatação de que o Direito Previdenciário não está sendo realizado a contento nos juizados federais, seja pela dificuldade na produção das provas, pela discrepância entre os entendimentos das turmas recursais com relação aos tribunais regionais federais, e pela legitimação de um rito que não consagra a felicidade das partes, mesmo quando esta é descaradamente um direito líquido e certo.

Preocupado com esta situação, ainda em 2010, o Conselho da Justiça Federal realizou junto com o IPEA um estudo sobre os JEFs. Dentre muitas questões levantadas, o resultado revelou que 70,7% das pretensões apresentadas aos juizados especiais federais são de natureza previdenciária. Os debates que se seguiram ao estudo trouxeram o levantamento de inúmeras questões que necessitariam ser enfrentadas e a nítida percepção entre magistrados e servidores entrevistados de que estariam realizando, diariamente, uma tarefa que é função da autarquia. Ouvia-se pelos corredores da Justiça Federal que a impressão que se tinha era de que o Poder Judiciário havia se transformado num balcão de atendimento do INSS.

Foi a partir desse momento, entendo, que, tal qual uma tempestade surgida repentinamente, constatou-se uma cronificação dos problemas, que já eram elencados pelos usuários do sistema como uma nova realidade deste procedimento. Dali para hoje, os juizados especiais federais na área previdenciária têm se tornado cada vez mais instâncias formalistas, com mecanismos restritivos, de índole economicista, que parecem hoje serem aplicados com nítido caráter utilitarista, seja pela sobrecarga de trabalho dos gestores do sistema, seja em razão de restrições orçamentárias e discursos reformistas de toda a ordem.

As consequências não tardaram a vir: diante de um processo de primeira instância formalista, numa área essencialmente social, os escaninhos das turmas recursais viram-se abarrotados de processos, o que forçou o desenvolvimento de um sistema para julgamentos eficiente. O resultado foi o desenvolvimento de uma cultura de jurisprudência composta de entendimentos muito diversos, pouco flexíveis, que passaram a resolver os processos, mas não os problemas das pessoas.

Nem mesmo o advento do Código de Processo Civil de 2015, que trouxe consigo normas explicitamente contrárias ao culto da valorização das formalidades, serviu de ferramenta para amenizar a realidade atual dos juizados especiais federais em matéria previdenciária — bem antes da promulgação da nova legislação os principais órgãos colegiados que agregam representantes dos tribunais já delimitavam que boa parte o afastamento da aplicação da nova legislação aos processos sob o rito dos juizados.

Alguns poucos entrosados à realidade processual atual dos JEFs, talvez, possam concluir que, o momento atual destes juizados é fruto dos novos tempos vividos no Brasil, e que a forma anterior de jurisdição é que se encontrava descompassada, excessivamente benéfica. Sim, muitas questões precisaram ser enfrentadas no Direito Previdenciário nos últimos anos, tanto nos aspectos processuais, como os de índole material, mas o que se verifica nos juizados especiais federal é algo bastante distinto.

A fundamentar meu posicionamento, faço referência aos processos que tramitam sob o rito comum, que possuem uma realidade jurisdicional e jurisprudencial completamente distinta, mesmo vivendo-se o mesmo tempo e enfrentando-se as mesmas matérias. É este, sim, um paradigma fundamental a ser levado em considerado na análise e no debate sobre este tema.

A Justiça Previdenciária, assim, em pleno século XXI, incumbida de aplicar o direito fundamental aos casos concretos, semeia um solo verdadeiramente opaco, indeciso, aleatório, onde não há razoabilidade e clareza em seus procedimentos.

É justamente por isso que temos assistido situações limites, tais como conflitos em sessões de julgamento, uma jurisprudência perigosa ante a oscilação constante de seus entendimentos, pericias muito criticadas e juízes assoberbados sem conseguir dar conta da quantidade de processos para julgamento, pois as demandas se repetem continuamente. Isto sem contar o fato que muitos advogados e partes represam os processos visando a atingir o valor da causa que permita o acesso ao rito comum. Em algumas áreas do Direito Previdenciário, em razão da dilação probatória, isto tem se tornado quase uma obrigação.

Atualmente, alguns projetos de Lei tratam sobre alterações na Lei 10.259/01. Independentemente disto, o que parece mais importante, no momento atual, é que os atores processuais previdenciários dialoguem na busca da solução para os problemas enfrentados nos juizados especiais federais em matéria previdenciária, para que possa ser possível uma alteração legislativa de consenso.

Advocacia, procuradoria federal e magistratura, por meio de suas entidades, necessitam cooperar em prol de alterações nos juizados especiais federais, a fim de que o procedimento volte a agregar aquilo que sempre foi o seu objetivo principal junto a área previdenciária: a solução rápida e efetiva dos litígios, a pacificação social.

E parece-me que o momento atual está propício para isso, diante do reconhecimento, de forma quase unânime, de que precisamos repensar os juizados especiais federais na área previdenciária.

Autores

  • é advogado especialista em Direito Previdenciário. Presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB-RS e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP).

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