Opinião

Uma proposta para o saneamento básico no Brasil (parte 5)

Autor

5 de novembro de 2018, 5h25

“Ao navio que não sabe a qual porto vai, nenhum vento é favorável”, diz a conhecida frase de Sêneca, filósofo romano do século I que nasceu onde hoje é a cidade de Córdoba, na Espanha. O significado mais profundo dessa sentença é que o planejamento, com a fixação de metas e objetivos, é fundamental para se obter resultados. Às vezes pode parecer que algo — quando visto de forma isolada — é o mais correto, mas, do ponto de vista do longo prazo, ou no confronto global de todos os interesses e informações, este algo pode não ser o melhor (ou prioritário), ou, ainda, pode ser até contraproducente.

No saneamento básico isso se mostra extremamente verdadeiro. Certa vez, acompanhei um projeto onde havia forte pressão para se construir uma nova estação de tratamento de água (ETA), distante da sede urbana. Porém, o planejamento mostrou que o prioritário era o tratamento de esgotos e outras medidas para preservar o manancial próximo à cidade, seguido da mera ampliação da ETA já existente. Essa opção viabilizou muito mais bem-estar com a mobilização de menos recursos. Se não houvesse o planejamento, teria sido efetuada a construção da ETA distante, um investimento equivocado, criando uma infraestrutura que oneraria os serviços permanentemente com o aumento desnecessário dos custos de operação.

O principal instrumento do planejamento do saneamento brasileiro é o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), previsto pela Lei Nacional de Saneamento Básico (LNSB) como um decreto presidencial. Contudo, o decreto expedido delegou a tarefa de aprovar o plano a uma portaria interministerial. E é neste nível subalterno que se encontra, atualmente, este importante instrumento.

Há um claro equívoco. A Constituição brasileira prevê que é competência comum “promover a melhoria das condições de saneamento básico” (artigo 23, IX) mediante a “cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” (artigo 23, parágrafo único). Como sabido, o saneamento básico é um serviço público de responsabilidade municipal, porém — ante a previsão constitucional — cabe à União e aos estados cooperar com o município, para que haja a “melhoria das condições de saneamento básico”.

Como assentando por diversas vezes pelo Supremo Tribunal Federal, apesar de ser assunto municipal, cabe aos estados e à União cooperar com os municípios. Há, portanto, um dever de cooperar. O Plansab serve, justamente, para organizar o dever de cooperação da União com os estados e com os municípios. Ou seja: por meio do Plansab, estados e municípios saberão o que devem fazer para receber a cooperação da União e quando e em qual medida ou volume haverá esta cooperação federal, seja técnica ou financeira.

Porém, há um equívoco aqui, porque a Constituição Federal prevê que a cooperação da União com os estados e com os municípios, para execução de competências comuns, como a de promover a melhoria das condições de saneamento básico, deve se dar mediante normas fixadas por lei complementar (artigo 23, parágrafo único). Evidente, assim, que o Plansab não poderia ser uma subalterna portaria, não pode ser um decreto presidencial ou, mesmo, uma lei ordinária. Como seu papel é disciplinar a cooperação federativa, somente poderia se revestir da forma de lei complementar.

O Plansab, em realidade, deveria ser uma lei complementar que veiculasse um plano setorial, previsto por diversos dispositivos da Constituição Federal, que prevê aprovação pelo Congresso Nacional (artigo 48, IV), o qual também deve apreciar os relatórios de execução (artigo 49, IX) por meio de sua comissão mista de orçamento (artigo 166, parágrafo 1º, II).

Como se vê, o sistema de planejamento estabelecido pela Constituição Federal, no que se refere ao saneamento básico, foi completamente ignorado, sendo a lei complementar prevista no texto constitucional substituída por uma portaria interministerial. É necessário corrigir, o que terá não poucas consequências.

Em primeiro lugar, parte do conteúdo do Plansab teria que ser adaptado para este novo formato, apesar de o seu conteúdo atual, em maior parte, ser perfeitamente compatível com o de uma lei complementar. Por exemplo, ao prever que os programas orçamentários de saneamento são apenas três: saneamento estrutural (criação de infraestruturas), saneamento estruturante (investimentos em gestão) e saneamento rural (ações vinculadas à saúde pública, em especial de combate de endemias).

Outro aspecto fundamental é que lei complementar exige quórum qualificado para sua aprovação (artigo 59, parágrafo único, da CF), bem como não pode ser modificada por medida provisória (artigo 62, parágrafo 1º, III, da CF). Isso asseguraria uma grande estabilidade à política de saneamento básico, deixando claro que se trata de uma política de Estado, e não, simplesmente, uma política de governo.

Afora isso, por se tratar de uma lei complementar, as normas do Plansab poderiam disciplinar matéria relativa às finanças públicas (artigo 163, I, da CF), vinculando a que os orçamentos públicos adotem organização uniforme ou adequada, por exemplo, com a criação de fundos de saneamento básico, viabilizando as transferências fundo a fundo, bem mais eficazes e simples e que têm funcionado bem no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

Também por poder disciplinar aspectos relativos às finanças públicas, as normas do Plansab veiculadas por lei complementar poderiam facilitar o acesso a recursos por parte dos municípios e dos estados com maior déficit sanitário, corrigindo um sério problema atual: as regiões do país com maior déficit sanitário são aquelas que não conseguem acessar os recursos federais para o saneamento básico, em um evidente contrassenso.

Em suma: com um Plansab sob a forma de plano setorial aprovado por lei complementar, o saneamento ganharia em estabilidade e em agilidade, bem como se permitiria que os recursos federais fossem melhor aplicados.

Porém, evidente que a melhoria do planejamento do saneamento básico no nível federal precisa ser acompanhada pela melhoria do planejamento do saneamento no nível local, no terreno onde os serviços e os investimentos devem se desenvolver. Por isso, são trágicos os resultados da pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros (Munic), divulgada em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), onde se mostrou que apenas 41,5% das 5.570 cidades brasileiras tinham elaborado o seu plano de saneamento básico em 2017.

Como investir com eficiência, utilizando melhor os recursos públicos, sem um planejamento adequado? Não custa insistir que o planejamento não é luxo, acessível somente aos que possuem mais recursos econômicos. Justamente o contrário. Quem possui menos recursos deve utilizá-los com a máxima sabedoria e, por isso, nesta situação o planejamento se torna ainda mais importante.

É claro que o governo federal deve atuar de forma decidida para viabilizar que o planejamento do saneamento se torne realidade em todos os municípios brasileiros. O saneamento exige que se saia dos gabinetes em Brasília e se atue lado a lado com os municípios e suas comunidades, porque muitas vezes um conjunto de pequenas iniciativas mudam muito mais do que uma grande obra, inaugurada com pompa e circunstância, porém sem produzir os benefícios esperados pelos elevados recursos que mobilizou.

Este é o último artigo da série sobre saneamento básico. Espero que os textos estimulem novas reflexões e propostas. Somente por meio do debate plural e democrático o Brasil conseguirá resolver seus graves problemas, dentre eles o do saneamento básico.

Autores

  • Brave

    é sócio do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques – Sociedade de Advogados e diretor da Divisão de Saneamento da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra (Portugal) e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Foi consultor do governo federal na elaboração da Lei de Consórcios Públicos (2005), da Lei Nacional de Saneamento Básico (2007) e da Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!