Direito Civil Atual

Smart legal contracts carregam consigo incontáveis benefícios

Autores

  • Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes

    é “perfezionato” pela Università di Roma I (La Sapienza) doutor em Direito Civil/Romano (USP) livre-docente em Direito Romano (USP) professor associado de Direito Civil e Direito Romano da Faculdade de Direito da USP e procurador federal (AGU).

  • Gustavo Marchi de Souza Mello

    é advogado do escritório Mattos Filho graduado em Direito pela USP com dupla diplomação pela Université Jean Moulin — Lyon III (França) e Zertifikatsstudium pela Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha).

29 de outubro de 2018, 8h01

ConJur
Inovações tecnológicas em setores como informática e meios comunicacionais dinamizam diversos aspectos da realidade. Hoje, por exemplo, existe uma tendência progressiva a substituir suportes de dados físicos por registros eletrônicos, já que esses atendem melhor às necessidades de uma sociedade cada dia mais complexa e dinâmica.

Nesse contexto, desempenha um papel revolucionário (nas áreas de segurança e preservação de direitos, privacidade e inclusão) a rede de transações e dados denominada blockchain, que tem como qualidades específicas a descentralização, a imutabilidade do registro das operações, a transparência e o predomínio de regras consensuais. Essa rede, em exponencial crescimento em setores da economia moderna, tem nas criptomoedas, como o bitcoin, sua mais conhecida manifestação. Todavia, por ser um sistema capaz de lidar com uma enorme diversidade de informações transacionais, as redes blockchain apresentam potencial de aplicação direta em âmbito maior que o simplesmente monetário.

O advento dessa tecnologia de rede aberta, fruto de décadas de pesquisa em criptografia, possibilitou aos usuários, pela primeira vez, transmitir a outros, de forma segura e direta (isto é, sem a presença de um terceiro intermediário), “bens” intangíveis e digitais. O sistema blockchain funciona de forma análoga a um livro-razão coletivo, compartilhado pelos participantes da rede, o qual registra as transações determinadas pelos usuários de maneira descentralizada e inalterável (exatamente nisso está não só o caráter inovador da tecnologia, mas também a sua legitimidade).

Antes dessa tecnologia, não era possível a validação, o registro e o controle de transações sem que houvesse um órgão centralizador que assegurasse a validade de determinada transação. É justamente por conta dessa capacidade de descentralizar (seja o armazenamento de dados, seja o gerenciamento de informações), com vistas a diminuir o papel do agente regulatório intermediário, que a tecnologia desponta como capaz de fornecer bases técnicas e econômicas para o seu emprego, por exemplo, no que diz respeito a sistemas de votações, registro de transações e cadeias produtivas empresariais, registro de propriedade, estruturas autônomas, moedas descentralizadas e novos e mais democráticos sistemas de governança; isso além, é claro, do foco do presente artigo: os chamados smart (legal) contracts.

De plano, deve-se ressaltar que a expressão “smart contracts” não quer indicar, necessariamente, “contratos” do ponto de vista jurídico. Trata-se, sobretudo, de um conceito “tecnológico”, que poderá se traduzir, ou não, em uma relação jurídica contratual. Em linhas gerais, smart contracts consistem em programas computacionais capazes de autoexecutar (con)sequências planejadas. Para isso, estipulam, através de uma série de instruções procedimentais, o conteúdo de determinada relação envolvendo predecessores e subsequentes. Posteriormente, são instruídos a autoexecutar a consequência programada uma vez efetivada a condição definida pelas partes. Nesse sentido, assemelham-se a uma proposição condicional da espécie “se A, então B”.

Isto posto, costumam os aplicadores dessa tecnologia indicar três possíveis situações: (i) “contratos” (na acepção jurídica do termo) que não envolvem smart contracts (ainda a grande maioria dos casos); (ii) smart contracts que não são “contratos” (“smart contracts não jurídicos” — caso em que não contam com a vantagem da proteção que o direito contratual, de construção milenar, ofereceria às partes) e (iii) smart contracts que são também “contratos” (“smart contracts jurídicos” ou smart legal contracts)[1]. Assim sendo, é perfeitamente possível determinar um arranjo contratual, seguido do acordo e do estabelecimento de normas contratuais, a partir da utilização dos smart legal contracts. Basta, em tese, programá-los de acordo com os requisitos legais para tanto (e.g. os genéricos requisitos de validade do artigo 104 do Código Civil), caso em que o smart legal contract é um contrato em sentido jurídico (os smart legal contracts não são um tipo contratual autônomo, podendo se amoldar a vários tipos contratuais já existentes, como a compra e venda, o mútuo etc., ou constituir um contrato atípico).

Tem-se, assim, a seguinte relação instrumental: os contratos descrevem os termos de uma relação obrigacional interpartes, enquanto os “smart contracts jurídicos” impõem e asseguram, por meio de linhas de código, a autoexecutabilidade dessas obrigações, garantindo a correta administração contratual de forma autônoma e independente de qualquer vínculo de confiança entre as partes contratuais (traduzem-se os smart legal contracts em um mecanismo viabilizador da autoexecutabilidade das disposições acordadas).

Concretamente, o processo de confecção de um “smart contract jurídico” terá o seguinte procedimento: (i) cláusulas contratuais são convertidas em um código executável computacionalmente (smart legal contracts adotam sempre a forma digital), (ii) as quais são registradas na rede coletiva (por emprego da tecnologia blockchain) e, (iii) com a ocorrência de certas condições preestabelecidas (e matematicamente determináveis), é produzido, sem a necessidade de intervenção humana, o evento que fora conectado digitalmente (até porque o código criptográfico, ao contrário de cláusulas contratuais, pode ser “lido” por não-humanos).

Um exemplo prático de aplicação dos smart legal contracts é o cenário que envolve o enforcement dos direitos dos consumidores. Diante da situação hipotética em que o individuo “X” compra passagem aérea da companhia “Y” e seu voo atrasa, pode-se pensar em estruturar a relação contratual entre as partes a partir do emprego de um “smart contract jurídico” a fim de automatizar o enforcement das disposições contratuais e garantir, dessa maneira, os direitos de “X” enquanto consumidor[2]. Para isso, “Y” disponibilizaria contrato no qual, além das condições padrões, haveria, por exemplo, cláusula relativa ao reembolso de determinada quantia paga por minuto de voo atrasado. Como em todo smart legal contract, há a conversão das informações em linguagem computacional apropriada e registro na rede blockchain. “X”, por sua vez, aceita o contrato ao comprar a passagem. Caso haja a constatação do atraso do voo, o “smart contract jurídico” é instantaneamente executado, reembolsando “X” nos ditames do acordado no “código” (de linguagem computacional).

Esse caso concreto de aplicabilidade dos smart legal contracts deixa clara a enorme eficiência que pode ser introduzida na dinâmica relação obrigacional. São automáticas, aqui, a verificação, a execução e a entrada em vigor de termos do negócio jurídico bilateral — contrato — ao mesmo tempo em que se garante sua estabilidade (porque não pode ser revogado), bem como sua transparência e publicidade. Tais características são de enorme valia uma vez que, em acordos realizados entre partes desconhecidas (anônimas ou não), tanto se eliminam a necessidade de intermediários e de confiança na contraparte, como se reduz, em grande medida, o papel de terceiros normalmente requeridos para gerenciar as informações negociais e resolver controvérsias sobre elas.

Outrossim, sobreleva-se, também, a maior segurança concedida às contrapartes em termos da linguagem empregada no instrumento contratual. Comparados aos contratos tradicionais, os “smart contracts jurídicos”, pelo fato de se estabelecerem através da linguagem de “código” (declarações de natureza “se A, então B”, com reduzido grau de dubiedade), auxiliam na remoção de possíveis ambiguidades linguísticas, as quais poderiam suscitar interpretações contratuais divergentes. De fato, no comércio internacional, questão tradicional é a da interpretação de contratos celebrados entre partes de nacionalidades diferentes ou instrumentalizados em documentos de línguas diversas ou em documentos redigidos em língua diversa da nativa das partes contratantes (casos nos quais se deve buscar o “significado comum” desejado por elas[3]): melhor do que estabelecer uma língua predominante (normalmente o inglês) é adotar um código em linguagem computacional (muito mais padronizado, objetivo e inequívoco do que qualquer idioma, sujeito a vicissitudes locais). Não se pode subestimar esses problemas em tempos de difusão de “contratos transnacionais”.

Ademais, é interessante observar que a ideia básica de smart contracts (centrada, desde ao menos a década de 1990, na automação e autoexecutabilidade[4]) é anterior ao conceito das tecnologias blockchain. Contudo, somente alicerçado na concreta possibilidade de dispor de um ambiente seguro, transparente e descentralizado, proporcionado por essas redes, é que passa a ser possível vislumbrar a efetiva adoção e execução desses programas automáticos de software. Por conseguinte, e voltada ao âmbito jurídico, a tecnologia blockchain abriu a possibilidade de automatizar as obrigações contratuais através de um mecanismo externo seguro e de baixo custo, munido dos atributos basilares da descentralização e da transparência.

O fato de estarem inseridos em plataformas descentralizadas faz com que haja maior garantia da integridade e da aplicabilidade dos smart legal contracts, visto que o armazenamento das informações relativas à execução dos programas não se dá de maneira concentrada em uma única entidade, mas sim difundida e arquivada em toda a rede, o que inibe a prática de fraudes. A transparência propiciada por essa tecnologia faz com que eventuais práticas fraudulentas sejam, ampla e imediatamente, averiguadas por todos, já que esses têm acesso às disposições que regem o contrato e às informações digitalmente armazenadas.

Resta evidente que, pelo caráter automático de sua execução, os smart legal contracts carregam consigo incontáveis benefícios e dão mostras de ter diversas aplicações potenciais no âmbito do Direito. Os pontuais problemas ligados às primeiras experiências revelaram algumas dificuldades concretas de sua aplicação, mas, a longo prazo e com o futuro desenvolvimento dessa tecnologia, espera-se que ela seja cada vez mais empregada (e com maior facilidade) pelo operador do direito e pela população em geral (ou seja, que passe a ser mais fácil transcrever uma cláusula contratual em um código criptográfico de linguagem de programação). Os problemas jurídicos derivados (de validade ou de eficácia) são e serão variados, mas somente a partir da dinâmica do dia-a-dia é que eles poderão ser solucionados. A sua existência, tal como a das criptomoedas, é um fato e já não se pode afastar. Mas isso não significa o “começo do fim do direito contratual clássico” (como pretendem alguns): smart legal contracts dão ensejo apenas a repensar uma categoria jurídica (o contrato) que, por séculos, vem sendo utilizada sempre sob novas perspectivas, sem jamais perder seu valor sistemático como instituto essencial do direito privado[5].

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA e UFRJ)


[1] R. Kadamani, Contratos X Smart Contracts, São Paulo, 2017, disponível [on-line] in https://blockchainacademy.com.br/contratos-x-smart-contracts [15/10/2018].
[2] Cf. M. Fries, Smart consumer contracts: The end of civil procedure?, in Oxford Business Law Blog, 2018, disponível [on-line] in https://www.law.ox.ac.uk/business-law-blog/blog/2018/03/smart-consumer-contracts-end-civil-procedure [15/10/2018].
[3] O problema existe inclusive com relação à interpretação de textos jurídicos: cf. R. Sacco (org.), L’interprétation des textes juridiques rédigés dans plus d’une langue, Paris, L’Harmattan, 2002, passim.
[4] Cf. N. Szabo, Smart Contracts: Formalizing and Securing Relationships on Public Networks, in First Monday 9-1 (1997), disponível [on-line] in http://ojphi.org/ojs/index.php/fm/article/view/548/469 [15/10/2018].
[5] Criticamente, cf. N. Lipari, Le categorie del diritto civile, Milano, Giuffrè, 2013, p. 141 e ss.

Autores

  • é “perfezionato” pela Università di Roma I (La Sapienza), doutor em Direito Civil/Romano (USP), livre-docente em Direito Romano (USP), professor associado de Direito Civil e Direito Romano da Faculdade de Direito da USP e procurador federal (AGU).

  • é graduando em Direito (USP) com dupla diplomação pela Université Jean Moulin (Lyon III) e período sanduíche na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU), bolsista FAPESP (pesquisa acerca dos "smart contracts") e membro da associação Lawgorithm.

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