Opinião

A nova topografia penal, marcada por "injustiça extrema", ameaça o país

Autor

  • Thiago Turbay Freiria

    é mestre em raciocínio probatório pela Universitat de Girona (Espanha) e Università Degli Studi di Genova (Itália) mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) pós-graduado pela Universitat de Girona (UdG) e diplomado em Direito Probatório pela Universidad Alberto Hurtado (Chile).

27 de outubro de 2018, 7h31

A cena política atual corre de encontro a uma mudança substancial no Direito Penal. Há um prospecto criminológico em andamento no país, que inocula discursos de urgência e promove um estado beligerante. O Direito Penal é ferramenta e causa do raquitismo democrático que enfrentamos.

O excesso estatal se aglutinou em um prodigioso corpo institucional persecutório de nuances autoritárias, com exceção de audazes e qualificadas vozes contrapostas, o que resultou em uma terra em transe. A plasticidade do discurso exacerbado, que promove o excesso do Direito Penal ganhou as ruas e se fixa com tons de apoio, por mais paradoxal que pareça.

Discursos que enaltecem a vocação punitiva do aparelho estatal espelham a sociedade e movem, em média distância, o Direito Penal para um patamar de índole autoritária, sustentada por discursos que preconizam a valorização de riscos obtusos e indecifráveis.

Ganham simpatia social apelos a favor do extermínio de minorias e de prisões de opositores, o que desguarnece o Estado Democrático de Direito e confunde os contornos constitucionais que devem permear a política criminal. Há um ambiente próspero para um cenário de transformações legislativas que enrijecerão o Direito Penal, arqueando-o em prol da revanche pública e da compressão de garantias e liberdades individuais.

Toda a estatura dogmática e lógica do Direito Penal corre risco, ao passo que a seleção de inimigos públicos não se limita a renderizar porções estáticas, compostas por grupos sociais indesejáveis bem definidos, mas provoca uma ampliação da realização do poder persecutório que se tornará, à frente, desregulado e incontrolável. Hoje são eles, amanhã serão todos!

Jesús-María Silva Sánchez[1] assevera que a expansão persecutória do Estado aliada à ideia de elevação do risco à sociedade é marca do que nomeou de terceira velocidade do Direito Penal, ilustrada pela produção de encarceramentos em massa e perseguições, havendo para tanto “amplia relativización de garantías político-criminales, reglas de imputación y critérios procesales”.

Todavia, estamos em um estado mais crítico. Enxergamos o início de uma nova velocidade, que se sustenta por um revanchismo massificante, que poderá subsidiar a elaboração e interpretação jurídica penal, e servirá como espécie de metadados, promotores de condutas modeladoras e de decisões judiciais.

Quem não se enquadrar no novo establishment será posto em oposição e sujeitado às sanções penais extremadas. A operacionalização dessa nova topografia parece caminhar para a fragilização dos filtros probatórios e desnaturação da Constituição, privatizando-se interpretações. O ilícito penal será, majoritariamente, analisado por um senso de justiçamento, que abandona a racionalidade teórica. Passar-se-á permitir que o Direito Penal sirva um modelo ideológico.

O conflito social instalado durante as eleições nacionais provocará, ademais, transformações nos conteúdos da legalidade penal, o que se prevê pela nova legislatura do Congresso Nacional. Alysson Leandro Mascaro[2] aduz que “há um nexo íntimo entre forma política e forma jurídica, mas não porque ambas sejam iguais ou equivalentes, e sim porque remanescem da mesma fonte”. Para ele, o “contorno jurídico”, de forma simplista, é constituído pelo político, formando um “complexo funcional”. Esse complexo estará a serviço de um programa de vigília e do incremento artificial da segurança.

O que devemos revelar é que a dramatização social e o Estado opulento, irretratável, autoriza a atuação inflada de órgãos que integram a linhagem jurídica e persecutória do Estado, notadamente a polícia judiciária, o Ministério Público e alguns juízes, cuja atuação personalíssima visa reduzir o espaço de liberdades individuais.

Estamos prestes a inaugurar um estado de “injustiça extrema”[3], que será a marca da nova[4] topografia penal brasileira, apartada de direitos individuais de ordem constitucional e violadora de garantias fundamentais. A nova linguagem — presente nos discursos públicos mais exaltados — opera isolada da dignidade humana, tudo com um discurso pouco racional: restituir a ordem e crença em uma sociedade benevolente, utilizando-se, paradoxalmente, da autorização tácita de violência estatal.

Parece salutar voltar à lição de Zaffaroni, restituindo o alerta de que “não se resolve nada com escândalo e reações espasmódicas e contraditórias, sem uma prévia análise da realidade e uma tática de retificação adequada[5]”. Não parece suficiente o incremento da segurança, cujo valor esbarra — inarredavelmente — no valor da liberdade. É preciso restituir à democracia o seu valor essencial: a liberdade, e romper os velhos laços autoritários. O país precisa de uma retomada humanística.


[1] SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2ª ed. Madrid: Civitas Ediciones, 2011, pg. 163.
[2] MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, pg. 39.
[3] Refiro-me à tese de Robert Alexy, a qual declara que uma lei injusta afeta, sobretudo, a democracia. Leis que desnaturam direitos fundamentais são injustas. Conferência realizada pela Escola Alemã de Ciências Criminais, 2018. CEDPAL, Georg-August Universität Göttingen.
[4] Conceitualmente, considero um retorno ao modelo persecutório que vigeu nos períodos em que a democracia foi suprimida no país.
[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal / Eugenio Raúl Zaffaroni; trad. Sérgio Lamarão. 1.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013, pg. 310.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!