Observatório Constitucional

Homeschooling e as três perguntas fundamentais na teoria da decisão

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27 de outubro de 2018, 8h00

Spacca
O Plenário do Supremo Tribunal Federal negou, no dia 12 de setembro, provimento ao Recurso Extraordinário 888.815, com repercussão geral reconhecida, no qual se discutia a possibilidade de o ensino domiciliar (homeschooling) ser considerado meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação. Ou seja, dispunha sobre o direito ou a possibilidade de os pais poderem ensinar os filhos em casa. Até então havia o voto do relator do RE, ministro Luís Roberto Barroso, que, no dia 6 do mesmo mês, votou no sentido do provimento do recurso. À época, escrevi sobre isso aqui.

Pois bem. Permito-me recuperar a trama. O recurso teve origem em mandado de segurança impetrado pelos pais de uma menina, então com 11 anos, contra ato da secretária de Educação do município de Canela (RS), que negou pedido para que a criança fosse educada em casa e orientou-os a fazer matrícula na rede regular de ensino, onde até então havia estudado. O mandado de segurança foi negado tanto em primeira instância quanto no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Para a corte gaúcha, inexistindo previsão legal de ensino na modalidade domiciliar, não haveria direito líquido e certo a ser amparado no caso.

Já no Supremo, em seu voto vencido, Barroso considerou constitucional a prática de ensino domiciliar a crianças e adolescentes, em virtude da sua compatibilidade com as finalidades e os valores da educação infantojuvenil, expressos na Constituição de 1988. Propôs, ainda, algumas regras de regulamentação da matéria, com base em limites constitucionais. Para o ministro Barroso, “o Estado brasileiro é grande demais, ineficiente e aplica políticas públicas inadequadas e sem monitoramento; a educação básica é insatisfatória; o Estado é paternalista”.

Por seu turno, a favor do homeschooling, apontou o ministro as motivações dos defensores da tese: desejo de conduzir diretamente o desenvolvimento dos filhos; fornecimento de instrução moral, científica, filosófica… que os pais entenderem mais adequada; a proteção da integridade física e mental dos filhos, retirando os filhos de ambientes hostis (incapacitadores, agressivos…) “nem todas as escolas ficam no sul de Brasília, ou no Leblon ou nos Jardins”[1]; descontentamento com a qualidade/eficácia do ensino público e privado; adaptação do ensino as peculiaridades dos filhos; a crença na superioridade do método de ensino doméstico; a dificuldade de acesso ao ensino formal (preocupação genuína com o bem-estar educacional dos filhos).

E concluiu:

– É constitucional a prática de ensino domiciliar a crianças e adolescentes em virtude da compatibilidade com finalidades e valores da educação infantojuvenil para evitar eventuais ilegalidades e garantir o desenvolvimento acadêmico e avaliar qualidade do ensino até que seja editada lei sobre tema com fundamento no artigo 209.

– Os pais ou responsáveis devem notificar secretaria municipal de educação a opção pela educação domiciliar de modo a manter cadastro e registros dessas famílias que adotaram a opção.

– Educandos domésticos, mesmo que autorizados ao ensino em casa, devem ser submetidos às mesmas avaliações periódicas a que se submetem os demais estudantes de escolas públicas ou privadas.

– As secretarias municipais de educação a partir do cadastro devem indicar escolas públicas em que a criança irá realizar avaliações periódicas com preferência em estabelecimento de ensino mais próximo ao local de residência.

– Secretarias podem compartilhar informações do cadastro com demais autoridades, como ministério público, conselhos municipais de direitos e/ou conselhos tutelares.

– Em caso de comprovada deficiência na formação acadêmica verificada pela avaliação periódica, cabe a órgão público competente notificar os pais e na hipótese em que não haja melhoria determinar a matrícula das crianças na rede regular de ensino.

Fiz, à época, uma série de objeções à tese do ministro Barroso, como “amicus curiae ad hoc do STF” (sic), que, na retomada do julgamento, foram trazidas à discussão pelo ministro Gilmar Mendes. Relembro — e transcrevo-as — aqui:

A primeira objeção: o fato de o ensino brasileiro ser ruim não justifica que os pais possam substituir a escola. A discussão que deve ser feita é se, de fato, há um direito de os pais não mais mandarem seus filhos à escola.

A segunda objeção: não se pode reduzir a educação fundamental e o ensino médio a um mero instrumento, esquecendo que a escola é o marco da socialização e da sociabilidade das crianças e adolescentes. Do contrário, seria ignorá-la como o espaço da sociabilidade e da inserção no âmbito da esfera pública, construindo uma linguagem pública (leia-se, um contexto socioprático). Vingasse a tese do voto proferido pelo ministro Barroso (vencido integralmente, assim como, parcialmente, o do ministro Luiz Edson Fachin), correríamos o risco de criar uma criança ou adolescente solipsista (Selbstsüchtiger), ou seja, um sujeito viciado em si mesmo, pela falta da linguagem pública. Que contexto, que mundo, afinal, esse educando compartilharia?

À margem desse ponto — e caminhando para a parte fulcral da discussão que considero nuclear —, a questão gira em torno da teoria da decisão. Considero que, para que uma decisão seja aceitável na seara jurídica, ou seja, para que seja “constitucionalmente adequada”, como de há muito venho propondo em obras como meu Verdade e Consenso (Saraiva, atualmente, na sua sexta edição) ou no Dicionário de Hermenêutica (Editora Casa do Direito), ela deve passar pelo teste das “três perguntas fundamentais”. Evita-se, assim, o ativismo, que, não é demais frisar, é ruim, sob qualquer aspecto, para a democracia.

A primeira pergunta, já contextualizada ao caso, é: não mandar os filhos à escola e lhes ensinar em casa é um direito fundamental exigível subjetivamente? Ou seja, mandar os filhos à escola é um direito fundamental ou um dever fundamental? Para mim, não se trata de direito e muito menos fundamental. Há, na verdade, um dever de mandar os filhos à escola, que não é mero instrumento. Da Constituição não se pode tirar esse direito que o ministro extraiu. No limite, a discussão é do legislador, como também lembrou o ministro Gilmar Mendes em seu voto, e jamais do Judiciário. Mais uma vez, vingasse a tese do ministro Barroso, teríamos uma decisão ativista, porque coloca o STF no lugar do Congresso.

A segunda pergunta que proponho em minha teoria da decisão, igualmente contextualizada, é: quaisquer pais podem exercer tal direito? Se pudéssemos tirar o direito de mandar os filhos à escola (o que não é possível), e a resposta caminhasse à universalidade, então não poderíamos concluir o voto do ministro Barroso como uma postura ativista. Mas, então, imaginemos que os pobres já não mandem os filhos à escola. Milhões deles. E os ricos também não, por razões diversas. Como responder a essa questão? Nem todos os filhos têm pais em condições de contratar professores. Quem pode fazer homeschooling? E com que critérios?

Frente a essas questões, é impossível não lembrar do caso Brown vs. Board of Education, dos anos 1950: não há cidadania sem educação escolar não segregada. E, no Brasil, a prosperar tal tese — a do homeschooling —, teríamos a paradoxal compatibilização entre igualdade e… segregação! Não dá. As crianças e os adolescentes têm direito à educação escolar! Esse é o verdadeiro direito fundamental que a CF estabelece. E os pais (agentes na concretização desse direito) têm o dever de não privá-los dela!

Como o “bom funcionamento” do homeschooling dependerá de cadastros e exames voltados à comprovação da eficiência da, digamos, “formação doméstica”, é possível dizer, ainda, que o tão criticado sistema público será a “medida de todas as coisas”. Paradoxalmente, a liberdade pelo ensino em casa (privado) dependerá do controle do poder público e por este subsidiado. Sim, porque os pais que colocariam seus filhos em ensino privado poderão ficar com os filhos em casa. E quem avaliará é o ensino público. Quem pagará essa conta?

Daí vem a terceira e última pergunta: podemos transferir recursos das pessoas que não optam pelo homeschooling para fazer a felicidade dos que optaram por essa comodidade sem ferir a isonomia e a igualdade? Ou seja: para fazer feliz o sentimento de liberdade dos pais optantes pelo homeschooling, o poder público terá que aumentar a sua estrutura, treinar professores para avaliar em uma tacada o conteúdo ministrado pelos pais ou dos contratados por eles.

Eis o ponto. Nenhuma das três questões recebe resposta afirmativa. E mesmo que se admita o “sim” à primeira pergunta, a segunda inexoravelmente recebe resposta negativa, pela impossibilidade de universalização, sob pena de discriminação dos pobres. Ou seja: por uma questão óbvia, se os pobres quiserem educar seus filhos em casa, não poderão fazê-lo pela total impossibilidade material, ficando o homeschooling como um inegável privilégio dos ricos, sob a contraditória “supervisão” da escola pública.

Em um país em que a escola é um refúgio para ganhar merenda, e em que os pais, na grande maioria pobres, não têm onde deixar os filhos (a não ser na escola), como é possível institucionalizar o direito de os pais não mandarem seus filhos à escola? Claramente uma medida a favor de quem pode pagar homeschoolars.

No fundo, o voto do ministro Roberto Barroso institui uma espécie de “medida provisória ad hoc” editada[2] pelo Supremo Tribunal Federal. Por todas essas razões, parece-me alvissareiro a adoção, no voto do ministro Gilmar Mendes, da tese das três perguntas fundamentais. Por elas, é possível fazer uma distinção entre ativismo e judicialização, como venho demonstrando em vários textos e livros.


[1] Se isso é verdade, o que farão essas crianças quando adultas? Ficarão em casa e pedirão “faculdade em casa”? E como sobreviverão nesse mundo violento depois?
[2] Há uma parte do voto em que o ministro diz: “Até que o Congresso Nacional edite lei específica sobre o homeschooling, que sejam adotados esses critérios…”. Seria uma medida provisória editada pelo STF? Como ficam os diálogos institucionais? Se não há lei e se houvesse um direito fundamental, caberia mandado de injunção. Mas, assim, o voto é mais uma demonstração de ativismo. Se alguém ainda tem dúvidas acerca do que é ativismo, eis aí um exemplo de sala de aula.

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