Opinião

A Justiça nos programas de Haddad e Bolsonaro: entre a política e a polícia

Autor

  • Rafael Tauil

    é doutor em Ciência Política pela UFSCar/University of Bristol (UK) professor na Escola Paulista de Direito (EPD) e pesquisador do Laboratório de Política e Governo da Unesp.

26 de outubro de 2018, 10h50

Nos propomos nesta breve intervenção a uma análise comparativa das propostas no campo da Justiça expostas pelos presidenciáveis Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro (PSL) em seus respectivos planos de governo para as eleições deste ano.

Em primeiro lugar, é importante salientar que coletamos as informações para este balanço diretamente dos programas políticos dos candidatos. Entendemos, após a realização da pesquisa, que as formas através dos quais os programas foram apresentados foram, por vezes, mais importantes do que o conteúdo nele presentes. Embora os documentos tenham profundas divergências em relação às propostas, os formatos através dos quais são apresentados é que, de fato, chamam a atenção.

O programa de Fernando Haddad segue um modelo tradicional, um documento formal, sem muitos elementos gráficos (com exceção da capa) e sem palavras de ordem. Na introdução O Brasil Feliz de Novo, há uma citação do ex-presidente Lula e a apresentação dos candidatos a presidente e vice-presidente. Além disso, a afirmação de que o PT foi vítima de um golpe em 2016 e de que Lula vem sendo perseguido politicamente desde esse período.

O programa de Bolsonaro não segue um modelo tradicional. Assemelha-se mais a um fanzine moderno virtual, onde se encontram palavras de ordem (como a famosa frase inspirada pela máxima nazista “Deutschland über alles”: Brasil acima de tudo e Deus acima de todos), citações bíblicas, inúmeros elementos gráficos e algumas leis fundamentais que, ao que parece, regerão seu governo como uma espécie de constituição paralela. Algo muito semelhante aos Dez Mandamentos, A Lei das XII Tábuas ou mesmo Os Sete Pecados Capitais.

É também importante chamar a atenção para essas características, pois o número de laudas ocupadas por cada programa para se referir à questão da Justiça é bastante discrepante. Enquanto o documento de Haddad reserva duas folhas para o tema, o de Bolsonaro guarda aproximadamente 36. O texto do primeiro candidato é conciso e trabalha com elementos concretos e problemas objetivos a serem atacados ou transformados. Já a publicação do segundo candidato mescla propostas concretas a textos livres, que se referem a questões como as ameaças comunistas do petismo e os perigos de possíveis alianças entre facções políticas das esquerdas latino-americanas, entre outros aspectos.

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Fernando Haddad apresenta suas propostas sobre Justiça no subcapítulo Promover a Reforma do Sistema de Justiça. Neste âmbito, defende a retomada do debate sobre a necessária reforma do Poder Judiciário e do sistema de Justiça. Entre as principais demandas referentes a esse aspecto estão a facilitação do acesso dos mais necessitados à Justiça e a melhoria na prestação de serviços jurídicos à população, através da profissionalização da administração da Justiça, da simplificação de procedimentos, da ampliação dos serviços a regiões pouco favorecidas e da estruturação e qualificação dos servidores públicos que trabalham no sistema judiciário.

O programa fala também sobre a eliminação dos privilégios dos servidores públicos do Judiciário e da necessária abertura de oportunidades de carreira para as populações mais pobres poderem ingressar em profissões relacionadas ao sistema de Justiça brasileiro, propondo, além disto, maior transparência e controle social na administração da Justiça. Como diminuição dos privilégios, o candidato propõe o fim do auxílio-moradia para servidores do Judiciário que possuam residência nas localidades onde atuam, a regulamentação e aplicação segura do teto no funcionalismo público, a redução do período de férias de 60 para 30 dias em casos aplicáveis e a democratização da escolha dos órgãos diretivos do Poder Judiciário. Ademais, o programa petista propõe maior aproximação com o Poder Judiciário e com o Ministério Público, visando repensar o papel e a composição do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público.

O texto também se refere a algumas leis que foram criadas durante o governo Lula/Dilma e que são consideradas como desvirtuadas atualmente. Exemplo disso seriam as prisões de manifestantes enquadrados durante o julgamento na lei antiterrorismo, os acordos de leniência utilizados para a proteção de empresários corruptos e, por fim, o instituto da delação premiada, que, ao contrário de sua intenção inicial, segundo o programa, estaria sendo utilizado neste momento para punir bandidos confessos e condenar pessoas inocentes.

Por fim e talvez o elemento mais importante deste documento seja sua apreciação sobre a necessidade do estabelecimento de tempos de mandato para os integrantes do Supremo Tribunal Federal e das cortes superiores da Justiça brasileira, que não condizem com as demais esferas do governo no Brasil. Juntamente ao estabelecimento de tempo de mandato, o programa sugere alterações no modo pelo qual os integrantes do STF continuam sendo escolhidos.

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O programa político de Jair Bolsonaro apresenta diferentes propostas para a Justiça ao longo de 36 laudas, porém o conteúdo se perde em meio a diferentes proposições referentes a outras matérias não relacionadas ao campo da Justiça, inseridas, porém, no mesmo eixo temático. Em primeiro lugar, sob o enunciado Valores e Compromissos, são apresentadas três questões fundamentais para o candidato: o direito à propriedade privada, à liberdade e à fraternidade. Nesse mesmo eixo o documento apresenta em tópicos alguns direitos e deveres que devem ser seguidos pelo cidadão: a não admissão de diferenciação entre os brasileiros e a observação dos seguintes preceitos: não matar, não roubar, não participar de falso testemunho, não sonegar impostos e o direito de proteção a qualquer indivíduo em território nacional.

A linha programática de Jair Bolsonaro relacionada à Justiça tem como base temas como a criminalidade, o combate à corrupção, o legado da corrupção petista ao país e a soberania nacional, entre outros pontos. Seu programa diverge do de Fernando Haddad em relação à Justiça, pois não trata de questões institucionais, não leva em consideração a engenharia institucional do Judiciário, menos ainda as melhorias necessárias na prestação de serviços jurídicos e a própria ampliação do acesso à Justiça para a maioria da população.

Sua tônica está focada em elementos que buscam combater o “legado petista da corrupção” e o “comunismo”, afirmar seu compromisso no combate ao crime, na ampliação do encarceramento e no enrijecimento de penas aos criminosos (este último, através de uma espécie de programa político intitulado prender e deixar na cadeia) e ampliar seu comprometimento com um maior reconhecimento da polícia e dos integrantes das Forças Armadas. Com relação às conexões entre a criminalidade no Brasil e as ideologias de esquerda, o programa do candidato chega a vincular o número de brasileiros assassinados à criação do Foro de São Paulo, afirmando que o número de homicídios no Brasil passou a crescer a partir do 1º Foro de SP, no início dos anos 1990, quando teria também sido iniciado o bolsa crack em cidades administradas pela esquerda, como São Paulo.

Além dos fatos mencionados anteriormente, a questão do armamento tem grande destaque no programa do presidenciável. A famosa frase "As armas são instrumentos, objetos inertes, que podem ser utilizadas para matar ou para salvar vidas. Isso depende de quem as está segurando: pessoas boas ou más. Um martelo não prega e uma faca não corta sem uma pessoa" é mobilizada para justificar uma revisão no Estatuto do Desarmamento. Além disso, comparativos levando em consideração países onde a posse de arma é permitida, mas o índice de violência é baixo, também são utilizados para fundamentar uma possível reavaliação do estatuto.

De modo geral, as ideias e ações relacionadas à Justiça no programa de governo de Jair Bolsonaro podem ser elencadas da seguinte forma: investimento em tecnologia e inteligência para a capacitação das forças policiais, adoção da política prender e deixar preso, colocar fim a direitos como indultos e progressão de pena, redução da maioridade penal, reformulação do Estatuto do Desarmamento, garantindo ao cidadão a legítima defesa, retaguarda jurídica aos policiais através do excludente de ilicitude a ser garantido pelo Estado e tipificação de invasões de propriedades rurais e urbanas no território brasileiro como ato terrorista. Outra questão apresentada no documento é a promessa de que a Justiça em seu governo poderá seguir seu rumo sem interferências políticas.

Além dos elementos mencionados anteriormente, é importante destacar a importância dada pelo candidato em seu programa à defesa nacional, através da garantia da lei e da ordem. Nesse sentido, destacam-se no documento os ataques da esquerda aos heróis das Forças Armadas, que devem ser combatidos através da valorização e da proteção de seus integrantes. Ainda nessa senda, o projeto reforça a importância do papel que as Forças Armadas têm no combate ao crime organizado e a necessidade de integração entre os diferentes órgãos de segurança pública. Por fim, o documento reforça a importância da proteção das fronteiras nacionais e compromete-se com a inauguração de, no mínimo, um colégio militar em todas as capitais de estado.

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Pode-se inferir, através desta breve análise, que a Justiça para o candidato petista Fernando Haddad se apresenta como uma questão de política, ou seja, seu projeto passa por reformas institucionais das esferas do Judiciário e por uma possível ressignificação histórica de seus integrantes, que, segundo o programa do candidato, já deveriam ter deixado de ter acesso a privilégios e mordomias advindas ainda dos tempos do Império. Questões como a facilitação do acesso ao sistema Judiciário brasileiro e sua respectiva desburocratização são elementos de relevância em seu programa. Além disto, as menções referentes ao estreitamento de laços com o CNJ e com o CNMP são pontos importantes que devem ser considerados, pois como bem sabemos os processos de judicialização da política e de politização do Judiciário não são saudáveis para nenhuma democracia. Num período de instabilidade política, este aceno pode representar avanços nos arranjos institucionais que asseguram a estabilidade da República e do Estado Democrático de Direito.

Além disso, as discussões acerca da temporariedade dos mandatos dos integrantes do STF e demais cortes superiores da Justiça brasileira são importantes para termos a certeza de que a engenharia institucional do sistema Judiciário brasileiro esteja atuando em prol da sociedade civil e não em favor de interesses particulares ou de uma minoria de privilegiados. Também o modo pelo qual os integrantes do STF são escolhidos constitui tema central para se pensar a necessidade de uma possível reforma do Judiciário brasileiro.

Nos parece que para o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, a Justiça estaria mais identificada com uma questão de polícia, em outras palavras, a necessidade de ações objetivas imediatas, capazes de resolver questões como criminalidade, corrupção e crises institucionais de um dia para o outro, como se fosse possível a substituição da lua pelo sol no horizonte, num período muito inferior ao de 24 horas. Além disso, a questão ideológica está profundamente marcada neste documento, que teria como pressuposto discutir ideias, concepções e ações de longo prazo. Sabe-se que o imediatismo como característica de um estadista — principalmente quando se trata de questões referentes à Justiça, que muda muito lentamente ao longo dos anos, de acordo com as transformações nos hábitos, tradições e costumes de uma nação — não é sinal de virtude no ato de se governar um país.

Algumas das questões tratadas pelo candidato se apresentam enquanto importantes elementos de transformação. Não apenas pelo seu teor, mas também pelo fato de que se constituem enquanto respostas a demandas polêmicas, reclamadas pela sociedade no momento em que vivemos. Ocorre que questões como violência, criminalidade, combate ao crime organizado, encarceramento, policiamento, defesa/soberania nacional e corrupção não podem ser tratadas ao sabor das circunstâncias, sem que se reflita sobre projetos de longo prazo, como por exemplo a reforma das instituições que serão responsáveis pelas alterações mais profundas nestes campos de conflito.

O projeto do candidato do PSL não trata exatamente de Justiça. É, de certa forma, complexo compreender do que ele trata realmente. Isso porque a Justiça não está presente no projeto, mas, sim, o justiçamento, o ato de justiçar. Em outras palavras, não se trata de propor alterações, reformas ou mesmo a manutenção das bases do sistema jurídico brasileiro, mas, sim, de responder de modo imediato ao clamor da sociedade por uma Justiça que nem sequer existirá de fato se não for pensada com cautela e clareza a longo prazo.

Sabe-se que o campo virtuoso da Justiça não tem espaço para deslizes e que qualquer derrapada pode levar uma nação inteira para caminhos sombrios e obscuros, os quais, certamente, não queremos percorrer novamente. Deste modo, independentemente do candidato que for eleito — e do projeto a ser executado de certo modo —, ficará para a Justiça brasileira o desafio de se repensar e, se necessário, através de seus membros e integrantes, da mais alta à mais baixa corte, a tarefa de se reformar e se ressignificar para poder, de acordo com a Carta Constitucional de 1988, atender aos anseios reais da sociedade civil brasileira.

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    é doutor em Ciência Política pela UFSCar/University of Bristol (UK), professor na Escola Paulista de Direito (EPD) e pesquisador do Laboratório de Política e Governo da Unesp.

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